1. A Assírio & Alvim está em saldos. Há gatos malteses e “O Estúdio de Giacometti” a três euros, diversos volumes de “Páginas”, de Rubem A., Céline, Guérin, Kawabata, Holderlin, Hatherly, a “Lua Negra” de Terry Morgan e muitos mais, todos em bom estado. Além disso há um desconto de dez por cento nos restantes livros da editora.
2. Na Assírio & Alvim o ar é fresco e cheira muito bem. Não cheira a papel nem a mofo nem a ar condicionado, é um perfume adocicado que liga bem com as capas dos livros e com a música que se ouve em surdina.
3. Somos recebidos com cumprimentos e sorrisos, a tentação é inevitável.
livraria assírio & alvim | Rua Miguel Bombarda, 531| Porto
1. Preâmbulo: Kafka sempre hesitou entre publicar ou não o fazer. No seu testamento escrito a lápis (a estudar: a importância do lápis na obra de Walser e Kafka) pediu a Max Brod que queimasse tudo o que escrevera mas não publicara. Max Brod não obedeceu.
2. Contracapa: Nos seus quarenta anos de vida, Franz Kafka publica ao todo sete livros, número que, afinal, corresponde a muito menos de metade do que efectivamente escreveu e do que viria a ser publicado após a sua morte.
São esses livros que aqui se reúnem em volume, aos quais se acrescenta uma série de pequenas ficções saídas apenas em revistas e jornais sem terem sido na altura coligidas em livro.
As traduções (Álvaro Gonçalves, José Maria Vieira Mendes e Manuel Resende) dos textos seguem a recente edição crítica alemã da S. Fisher Verlag, responsável por uma criteriosa reorganização da obra de Kafka.
Depois de “Os Contos - textos publicados em vida do autor” (edição da Assírio & Alvim), serão publicadas as narrativas póstumas, dispersas por diários, correspondência e cadernos.
3. Desejo de se tornar índio: Oh, se fôssemos índios, já preparados e, em cima de um cavalo que corre, inclinados contra o vento, estremecêssemos repetidamente sobre o solo que treme até largarmos as esporas porque nunca houve esporas, até deitarmos fora as rédeas porque nunca houve rédeas e quase não víssemos a terra à nossa frente revelar um prado ceifado e liso, agora que o cavalo perdeu o pescoço e a cabeça.
Frank Kafka
Nota de Rodapé: Encontrei o Kafka mais um cão na Miguel Bombarda. Estava pálido e com frio. Trouxe-os para casa e tão cedo não os deixo sair.
Nell'ottobre del '91 Moretti inaugura la una sala cinematografica. Si chiama Nuovo Sacher e nasce dalla ceneri di un vecchio cinema ormai cadente. Battezza la nuova sala Riff Raff, meglio perderli che trovarli di Ken Loach. All'interno del Nuovo Sacher un bar (dove è sempre possibile acquistare una fetta di sacher, alla faccia dell'originalità) e una libreria cinematografica, 362 posti, sedie comode, proiezioni in versione originale con sottotitoli una volta a settimana, nessun intervallo tra il primo e il secondo tempo sia nella programmazione invernale che in quella estiva, all'aperto. Una festa per i cinefili romani e un'altra sfida vinta per Moretti, che cura personalmente il cartellone, con buona pace di Massimo Boldi...e degli incassi. Sono infatti ben dodici gli spettatori alla prima del film Close Up dell'iraniano Abbas Kiarostami. Il racconto della giornata, l'ansia dell'attesa e il catastrofico risultato diventano il cortometraggio Il giorno della prima di Close Up che proietterà qualche anno dopo, naturalmente nella sua sala.
Le film "Good bye, Lenin!" de Wolfgang Becker a révélé un aspect méconnu de l'histoire récente de l'Allemagne: le culte du souvenir de la RDA. Les Allemands ont même inventé un mot pour cela: "l'ostalgie". Sur quelles réalités se fonde cette nostalgie d'une époque révolue? Avec trois documentaires, "Thema" propose plusieurs aperçus sur la vie à l'Est avant la chute du Mur.
Albrecht Dürer | A Visão | Kunsthistorisches Museum | Viena, Áustria
«Schefer socorreu-se do camaleão de Tertuliano, esse bicho "que tem a virtude de mudar completamente sem deixar de ser o que é", para fazer desfilar em reproduções de qualidade desigual, mas todas oriundas de fabulosos originais, uma espécie de "museu bem pouco imaginário", onde, em grandes páginas, lado a lado, se "reorganizam por simpatia, malícia ou ingenuidade", museus bem reais, propondo associações que mais têm que ver com afinidades emocionais do que com escolas, épocas ou autores. A pintura tem um lugar predominante, mas as associações não são apenas entre quadros. Cristalografias e celestografias de Strindberg, baixos-relevos dos Templos de Luksor, pavimentos das Catedrais de Chartres, de Amiens ou de Otranto, o fresco do Mergulhador de Paestrum, fotografias de Deakin (o retrato de Bacon com as postas de carne) o pré-histórico "Painel dos Leões" da Gruta de Chauvet, desenhos de escritores, juntam-se à "perpétua instabilidade da pintura" na edificação desta singular casa-livro com paredes de papel».
[...]
O parrianismo, ou martin-parrianismo, é a classificação resultante da observação demorada das fotografias de Martin Parr e da aplicação dessa perspectiva aos mais variados fenómenos das artes e da vida em geral.
Por exemplo, um prato de batatas fritas caseiras, de aparência e sabor impecáveis, não é uma coisa martin-parriana. Mas um prato de batatas fritas congeladas a escorrer óleo de cheiro duvidoso, é uma coisa martin-parriana mesmo, e sobretudo, fora das fotografias.
posted by camponesa pragmática on 16:55
Parrianismo
NYC.
Coney Island.
Woman on beach pointing at a man near her.
Fotografia de estilo martin-parriano (embora o dedo apontado possa gerar alguma discussão) da autoria de Bruce Gilden.
É a minha hora de almoço, vou pois
passear por entre os táxis pintados
de ruído. Primeiro, pelo passeio
onde trabalhadores alimentam os troncos
sujos brilhantes com sanduíches
e Coca-Cola, usando capacetes
amarelos. Acho que os protegem
da queda de tijolos. Depois pela
avenida em que saias rodopiam
nos calcanhares e levantam voo sobre
os gradeamentos. O sol queima, mas
os táxis agitam o ar. Observo
pechinchas em relógios de pulso. Há
gatos que brincam na serradura.
Para
Times Square, onde o anúncio
sopra fumo sobre a minha cabeça e no alto
a cascata jorra suavemente. Um
Negro numa portada com um
palito, mexe-se langorosamente.
Uma corisca loura faz soar um estalido: ele
sorri e esfrega o queixo. De súbito
tudo buzina: são 12:40 de
uma Quinta-feira.
Neon de dia é um
grande prazer, como Edwin Denby
escreveria, como são as lâmpadas eléctricas de dia.
Paro para um cheeseburger no JULIET'S
CORNER, Guilietta Masina, mulher de
Federico Fellini, è bell' atrice. E chocolate com malte. Uma senhora que
em tal dia usa pele de raposa mete o cão d'água
dentro de um táxi.
Há vários Porto
Riquenhos na avenida hoje, o que
a torna bela e quente. Primeiro morreu
Bunny, depois John Latouche,
depois Jackson Pollock. A terra
está tão cheia deles, como a vida esteve?
Comeu-se e passeia-se,
passa-se pelas revistas com nus
e os cartazes de TOURADA e
a Manhattan Storage Warehouse,
que em breve demolirão. Antigamente
pensava que nela se exibia o
Armony Show.
um copo de sumo de papaia
e volto para o trabalho. O meu coração está no
meu bolso, é Poemas de Pierre Réverdy.
Quando lhe perguntaram quais os cineastas americanos que mais o atraíram Orson Welles respondeu: «... os velhos mestres. Isto é: John Ford, John Ford e John Ford... Com Ford no seu melhor, sentimos que o filme viveu e respirou num mundo real». (Playboy, Março de 1967)
Peter Bogdanovich, "John Ford: Poeta e Comediante", Catálogo da Cinemateca Portuguesa
Franz Kafka sumiu em Belo Horizonte. Em meados de Fevereiro de 2004, Franz Kafka desapareceu misteriosamente nas ruas de Belo Horizonte. O caso está a ser tratado com toda a minúcia. Há uma vasta equipa de peritos no encalço das pistas: Serenus, Vicente Gunz, Lucas Baldus, a Mulher da Aura Azul, Rubem Focs, Vicente Almas, Cida La Lampe (e tantos outros) buscam agora a chave do enigma. No relatório de domingo vem detalhado O SEGUNDO MISTÉRIO:
«Fazia música de Tom Waits, era noite a caminho, Strange Weather. Os espelhos d’água no asfalto, as sirenes distantes, o olho de um gato atrás de um vidro, um cheiro de chuva recente no corpo da cidade.
[…]»
Por estranho que pareça, a música atravessou o Atlântico. E Kafka? Há quem garanta que foi visto em Varsóvia…
Acordo muito bem disposto. É tarde e a casa parece deserta. Dormi demais, enrolado numa manta de cores excessivas. Uma mulher aproxima-se de mim. Os lábios dela são rouge absolu e pelo modo como se debruça parece querer beijar-me. Ora eu não beijo mulheres desconhecidas e nunca assim paramentadas. Senhora, digo-lhe, guardai os vossos beijos. O meu punhal nunca se levantará contra a Branca de Neve. Mas depois de bem acordado facilmente percebo que ela é afinal uma mulher afável e não incita a nenhuma violência reconhecível: Apenas quero que fales, não vão as tuas parcas palavras dizer demasiado. Isso eu percebo. Devo ser mais loquaz, até se perceber que não tenho quase nada a dizer. Aqui está uma coisa que posso fazer. Falarei, no meu sítio, que eu já não devia estar aqui. Espalharei palavras vãs, prometo. Ela senta-se à mesa de um branching memorável e como me parece conhecê-la há muito posso beijá-la antes de sair.
posted by Anónimo on 17:37
É meia-noite, o baile acabou.
A carruagem já virou abóbora. Que pena, Babette não apareceu para fazer a sopa de tartaruga ou os deliciosos blinis Demidoff.
Eles seguiram o rasto dos maltesers que o Alexandre cautelosamente espalhou. Nós, como na história, ficámos com um sapato a brilhar nas mãos…
— «Os vinte e quatro escravos negros da garbosa galé remavam, transportando o Príncipe Amgiad até ao palácio do Califa. Mas o Príncipe, envolto na sua capa púrpura, jazia abandonado no convés, sob o azul profundo do céu estrelado. O seu olhar…»
Até aqui, a pequena lera em voz alta. Agora os olhos fechavam-se-lhe, e os país entreolharam-se, sorrindo. Fridolin curvou-se beijando-lhe os cabelos de oiro e fechou o livro pousado sobre a mesa, ainda por levantar. A menina ergueu o olhar como que surpreendida.
— São nove horas — disse o pai. – É tempo de ires para a cama.
[…]
:: sorry but i have to run, although it's been so much fun* ::
é noite tardia em casa de estranhos. é a sonolência no aconchego constrangido do sofá. baixa-se o volume da música, levam-se os copos para a cozinha, entre bocejos disfarçados os silêncios cúmplices anunciam o momento da partida. o regresso a casa. sai-se com o corpo leve e o olhar carregado de histórias. é sempre bom passar dia de festa em casa de alguém. saber que se volta depois ao sossego, ao habitual, à preguiça e à descompostura que nos é permitida em casa que seja nossa – sabendo agora como se olha o mundo do lado interior da janela.
Dois como a retina dos teus olhos por onde arderão para sempre as tochas que acenderão a noite infinita. Dois como os tigres dente-de-sabre que guardam a secreta câmara onde se esconde a tua espera. Dois como os sinais que náufragos barcos vislumbram pela última vez quando pões o motor do carro a trabalhar e desapareces pela auto-estrada do norte em direcção ao sul. Dois como os poços onde me bebeste até à última gota, sempre até à última gota. Dois como o líquen que se formou nos meus ombros desde esse dia. Dois como uma aula que terminou antes de ter começado. Dois como os que agora sobem a colina e adormecem de mão dada nas encostas ensolaradas do teu peito. Dois como os dedos que ficaram presos ao teu cabelo. Dois como os faróis que ainda não apareceram por detrás daquela curva e desaparecem já, vermelhos de ausência, para além da curva seguinte.
Dois como a praia de madrugada, a esplanada onde tomávamos o pequeno-almoço, a estrada para a vila, a tua casa junto à rotunda, as frases de circunstância que trocávamos pelo caminho, a tua mão que procurava o meu joelho, a chama do isqueiro quando acendias o teu cigarro, o silêncio dos pinheiros lá fora, o voo rasante de uma asa delta, a música do auto-rádio, um carro que aparece desenfreado de um abismo qualquer na berma da estrada e os teus. Dois como os olhos que nesses instante olhavam os meus.
Dois como os minutos que faltavam para o fim.
trago entre os braços
um cesto de laranjas
para colocar em casa
ao pé dos gatos
assim contrapor-me ao azul
ainda não suficiente
para desmentir o inverno
nas magnólias que povoam as estradas.
No Brasil, usa-se a expressão "última flor do Lácio" para designar a língua portuguesa. Normalmente, é invocada ("Última flor do Lácio, inculta e bela") para defender o idioma ou dos maus tratos a que é sujeita pelos utilizadores ou dos ataques pelo abuso de estrangeirismos. E é curioso porque a expressão nunca é usada em Portugal, suponho que para a maioria dos portugueses ela não dirá nada.
Supostamente ela explica-se porque sendo o Lácio o nome em português da região de Itália onde fica Roma, a língua portuguesa foi a última das línguas derivadas do latim a formar-se, e daí ser a "última flor do Lácio".
Quem cunhou a expressão foi o poeta brasileiro Olavo Bilac, num soneto intitulado justamente LÍNGUA PORTUGUESA, e que é assim:
Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela.
Amo-te assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela
E o arrolo da saudade e da ternura!
Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,
Em que da voz materna ouvi: "meu filho!"
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O génio sem ventura e o amor sem brilho!
Não obstante a referência camoniana da última estrofe, não parece que Camões alguma vez tenha falado na "última flor do Lácio" e, por isso, e contrariamente ao que muitos brasileiros pensam (digo eu, sei lá) o 'pai da criança' é mesmo o Olavo Bilac.
Apesar dos portugueses não conhecerem a expressão, só por distracção nunca repararam nela, pelo menos os que gostam do Caetano Veloso. É que numa das mais conhecidas, carismáticas e amadas pelos portugueses canções do Caetano, a expressão é usada e repetida.
Falo, naturalmente, de LÍNGUA, o famoso rap do álbum Velô, de 1984. Uma canção que, curiosamente, ajudou a devolver a Portugal o gosto por Pessoa. E onde no refrão se fala da "última flor do Lácio". Que, afinal, também é o lugar da minha pessoana pátria:
Gosto de sentir a minha língua roçar
A língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar
A criar confusões de prosódia
E um profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior
E quem há de negar que esta lhe é superior
E deixa os portugais morrerem à míngua
Minha pátria é minha língua
Fala Mangueira
Fala!
Flor do Lácio Sambódromo
Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode
Esta língua
Vamos atentar para a sintaxe paulista
E o falso inglês relax dos surfistas
Sejamos imperialistas
Cadê? Sejamos imperialistas
Vamos na velô da dicção choo choo de Carmem Miranda
E que o Chico Buarque de Hollanda nos resgate
E Xeque-mate, explique-nos Luanda
Ouçamos com atenção os deles e os delas da TV Globo
Sejamos o lobo do lobo do homem
Sejamos o lobo do lobo do homem
Adoro nomes
Nomes em Ã
De coisa como rã e ímã...
Nomes de nomes como Scarlet Moon Chevalier
Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé, Maria da Fé
Arrigo Barnabé
Flor do Lácio Sambódromo
Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode
Esta língua
Incrível
É melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível filosofar em alemão
Se você tem uma ideia incrível
É melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível
Filosofar em alemão
Blitz quer dizer corisco
Hollywood quer dizer Azevedo
E o recôncavo, e o recôncavo, e o recôncavo
Meu medo!
A língua é minha Pátria
E eu não tenho Pátria: tenho mátria
Eu quero frátria
Poesia concreta e prosa caótica
Ótica futura
Samba-rap, chic-left com banana
Será que ele está no Pão de Açúcar
Tá craude brô, você e tu lhe amo
Qué que'u faço, nego?
Bote ligeiro
Nós canto falamos como quem inveja negros
Que sofrem horrores no Gueto do Harlem
Livros, discos, vídeos à mancheia
E deixa que digam, que pensem,que falem.
Neste momento, a minha maior preocupação prende-se com a necessidade de sair daqui antes das doze badaladas. Nesta imensidão, dirigir-me novamente ao ponto de entrada seria tarefa nada trivial. Felizmente, ocorreu-me ir espalhando Maltesers pelo caminho. Retroceder os meus passos será uma brincadeira de crianças. A minha colheita foi esplêndida. Esperava descobrir segredos profissionais, e eis que me surgem, em bandeja de prata, provas irrefutáveis de participação numa conspiração que visa desestabilizar todo o tecido social da Nação; um poema de Ingeborg Bachmann copiado com a mão canhota; os óculos escuros que Bibi Andersson usou em "Persona"; crisântemos em diferentes estados de decomposição; provetas com água dos principais rios da Europa. Não é difícil somar 2 e 2, e retirar as conclusões que devem ser retiradas.
(Os Maltesers vieram a calhar. Estava prestes a entrar em défice de glucose.)
posted by aa on 23:12
Há que pensar na posteridade, e é por isso que decidi entalhar um post meu na secretária de mogno do escritório, com a ajuda de um canivete suíço.
ISTO ANDA TUDO LIGADO:
1 - Uma canção de Tom Waits.
2 - Outra canção de Tom Waits.
3 - Outra canção de Tom Waits.
4 - Outra canção de Tom Waits.
5 - Outra canção de Tom Waits.
6 - Outra canção de Tom Waits.
7 - Dois pássaros a voar juntam-se a um que estava na mão.
8 - Uma canção de Aznavour.
9 - Outra canção de Tom Waits.
10 - Outra canção de Tom Waits.
11 - Outra canção de Tom Waits, sussurrada com ternura.
apercebi-me subitamente que sou uma escrevinhadora solitária. que o público que procuro é apenas um silencioso e anónimo, cuja presença não pretendo sentir senão na respiraço vagarosa das sombras. apercebo-me então – se ainda é de máscaras que falamos – que ao contrário de todos aqueles que procuram a solidão para se despirem das máscaras, é precisamente quando me encontro sozinha que coloco as minhas. não sei escrever observada por quem amo. só sei ser eu. é na cumplicidade deste silêncio – em que ninguém me olha – que livremente sou Nefertiti, Mata Hari, Sheherazade , Abelha Maia, pequeno ponto preto.
Acabo de encontrar uma riquíssima plantação experimental de bonsais, numa estufa dotada de um equipamento de controlo de temperatura e humidade do mais sofisticado que há. Está explicado um dos segredos dos autores da Janela: a sua familiaridade com as árvores deve-se a um empirismo premeditado e laboratorial, e não à frequência dos parques e jardins de Lisboa e Porto.
Logo em seguida, eis que topo com uma colecção privada de arte, de valor incalculável. Originais de Matisse, Picasso e Vermeer. Isto ajuda a compreender a abundância de referências às artes pictóricas, uma das imagens de marca deste espaço. A trama adensa-se!
Que outras surpresas me estarão reservadas? Resta menos de um par de horas.
posted by aa on 22:31
As horas passam; os resultados concretos tardam em aparecer. Vim em busca de provas, e nada encontro senão ecos e corredores labirínticos. Abundam as correntes de ar, como se cada convidado se tivesse esquecido da sua janela aberta. Por falar em convidados, onde estarão eles? Dissimulados no cenário? Terão sido esses convidados invisíveis os responsáveis pelos cristais de quartzo deixados aqui e além? Pelas setas quebradas em dois bocados? Sinto-me vagamente ridículo, no meio desta imensidão sem vivalma. Ensaio alguns golpes de esgrima para ganhar coragem.
posted by aa on 22:30
formas de aquecer as mãos para a ternura e literalmente
uma manta
um poema aflito
a dança das éguas
o hálito das flores
uma impressão
Thomas Pynchon aceita dar uma entrevista à Janela Indiscreta, desde que, desde que… as perguntas sejam feitas dum pátio exterior, num local a combinar, algures na quinta avenida, enquanto ele, no segundo andar, entre as gelosias, observa os entrevistadores e vai respondendo a uma pessoa da sua confiança, nesse momento ao seu lado, que, por sua vez com um megafone dá as respostas às diversas perguntas. mais, esta pessoa só repetirá as respostas ao megafone uma vez, só uma vez, isto, para não atrair as atenções alheias.
os entrevistadores deverão ir disfarçados, para não dar nas vistas, de James Stewart e de Grace Kelly. as perguntas deverão ser feitas via sms.
Mas felizmente nem todos os portugueses se deixam inebriar por tais excessos e dão a todos nós o exemplo de civilidade e decoro que é de bom tom manter.
Tal é o caso dos distintos praticantes da nobre arte do blogue. Embora recente entre nós, este "sport" depressa cativou adeptos ferverosos entre os nossos mais ilustres cidadãos.
Como já se vem tornando tradição, os bloguistas têm aproveitado esta época de folia desvairada para se reúnirem e tagarelarem sobre os assuntos que merecem a sua atenção.
E começaremos a nossa resenha pelos mais desvelados e insignes de entre todos eles. No cliché acima publicado poderão ver os membros do blogue Carta de Guia de Casados entregando-se aos deleites de uma elegante dança. Este blogue colectivo faz escola em todas as matérias de gosto e de civilidade, crescendo todos os dias os adeptos de tão prestigiosos portugueses.
Os nosso estimados leitores não deixarão de reconhecer os membros do blogue Página Gloriosa, perfilando-se orgulhosamente para a nossa fotografia. Os distintos jornalistas reúniram-se para debaterem entre si, qual a casa comercial que apresenta os objectos de maior qualidade para a sua prática diária. Após muita discussão, a Casa Barata & Simplício foi a feliz distinguida com a preferência de todos. Estamos certos que terá sido a extraordinária variedade dos seus blocos de notas Moleskine, o argumento decisivo para a decisão final.
Os empregados do referido estalecimento, sorrindo para a nossa reportagem, expressam a sua gratidão por tão alta distinção.
As simpáticas e graciosas senhoras que todas as semanas se reúnem para combinar os assuntos a abordar no blogue CemModa, decidiram em nossa intenção envergar os seus melhores trajes, certas que as suas leitoras poderão dessa forma apreciar toda a sua beleza.
A luta política empolga muitos dos varões da nossa terra, e graças ao tempo ameno que se tem feito sentir, decidiram os dois grupos mais numeros de bloguistas políticos antecipar o seu grande evento anual para esta quadra. Falamos claro está da grande festa da Contagem das Espingardas.
No cliché acima apresentado podemos ver a concentração da Coalização dos Blogues Conservadores, aguardando perfilados até que seja dada por terminada a referida contagem.
Já o campo dos Adeptos dos Blogues Revolucionários preferiu celebrar um almoço num restaurante da nossa capital, e em vez de espingardas contou pratos.
E para finalizar a nossa crónica desta semana, não podíamos deixar de fora o piq-niq que o Grémio dos Blogues D'Arte em tão boa hora primou por organizar. Ao longo de todo o dia de carnaval os inúmeros artistas disfrutaram dos prazeres da sâ vida campestre, realizando amenos jogos de sociedade e deleitando-se com um lauto repasto. No final foi realizado o cliché oficial do Grémio e cuja venda em leilão reverterá para custear a construção da Casa do Bloguista.
posted by Unknown on 21:32
O Trilho dos Currais
Estação primeira: Curral da Lomba do Vidoeiro
Chove mansamente. O saibro esboroa-se sob os pés. No início da subida uma gralha-de-bico-vermelho denuncia-nos com estridência. À nossa frente o enorme paredão granítico.
Uma vez mais testemunhamos a tortura universal dos azevinhos. Os carvalhos de fevereiro são cruzes alucinadas. Subimos em silêncio dos 400 aos 900 metros. Temos pelas costas um arco íris. Pisamos agora os tojais, a torga e o zimbro. Faz cada vez mais frio e começa a nevar, sem ameaça. Estranhamente, mais guiadas pela temperatura interior, as mulheres começam a despir-se
Estação segunda: Curral da Carvalha das Éguas
Caminhamos no planalto com as serras geladas de Espanha à vista, a menstruação escorrendo na neve e, à chegada ao curral, abrem-se as patas das éguas como magnólias pretas.
Estação terceira: Curral da Espinheira
Gelaram as mãos para a ternura e gelaram literalmente. Cantamos eufóricos e depois dançamos na clareira onde perpassa a memória dos celtas. Um tor granítico alinha-se como uma biblioteca onde todos os autores fossem clássicos. Na descida para a Pedra Bela alguém andou a fazer uma tosquia demencial ao pinheiro-negral.
Descida para o Gerês
Já dissemos quase tudo uns aos outros. Descemos aos pares, silenciosos. Somos como o musgo espesso, as trepadeiras no tronco dos carvalhos, os fungos lamelares nas bétulas. O sangue reflui aos vasos periféricos e dói-nos a reperfusão. Mas estamos em paz, momentaneamente poupados da maldição que atinge os carnívoros.
(Volto para a casa das meninas, hoje alegrada pelos okupas. Vou ficar sentado num cantinho. Alguém me arranja uma manta?)
Conheço quem trabalhe junto ao Parque Eduardo VII, sem trabalhar no parque - tendo assim a certeza de não encontrar qualquer ministro. Tal localização é muito importante na estratégia para as sucessivas visitas à Feira do Livro de Lisboa. No entanto, este ano, com as obras do túnel do Marquês, a feira de Lisboa poderá mudar de local: que significará essa eventualidade?
Eduardo Prado Coelho, EPC para os amigos e para os bloggers, aborda o assunto e espreme, cordialmente, o seu limão:
afinal, parece, que isto anda tudo ligado. pelo menos é o que dizem. nós concordamos. como não concordar? afinal isto anda tudo ligado. tudo. como não concordar? ligado.
…vêm alguns músicos cujo trabalho anima frequentemente o nosso Beco. Pedimos a um deles para se chegar à Janela e, já agora, para trazer também muitas imagens, as imagens possíveis para palavras tão fortes:
Ilusiones ópticas - a janela, abriu-se para fora ou para dentro?
¿Hacia dentro o hacia fuera?
"¿Está la ventana abierta hacia dentro o hacia fuera? La respuesta debería ser inequívoca, pero en este caso no es posible. Si miramos la parte superior de la ventana afirmaremos que los cristales están hacia fuera, pero mirando la inferior la conclusión es la contraria.
El secreto de tan increíble paranoia es en realidad la partición por la mitad de la realidad. Esto, que tan estrambótico puede sonar, simplemente implica unir la mitad de dos dibujos realizados sobre un único papel. En nuestro caso se ha dibujado una ventana abierta hacia adentro y otra hacia fuera para posteriormente hacer de los trazos verticales de uno la prolongación del otro. Un engaño con auténtica naturaleza artística."
Toda a gente sabe que é muito mais difícil dizer a verdade do que mentir. Dá muito trabalho, a verdade. E os bloggers são, de todos, os mais preguiçosos. E, por isso, mentem. Mentem a toda a hora e acerca de tudo. Mentem com quantos dentes têm. Mentem, mentem, mentem. Fala da morte como quem fala do preço das tangerinas. Falam do amor como quem fala de tabaco ou de vinho ou de outra coisa qualquer.
Caro leitor, repare neste exemplo: quando a juíza Savaleva perguntou a Brodskii, num tribunal soviético, qual era a sua especialidade como trabalhador, ele, a transpirar preguiça, respondeu “sou blogger”. Claro que Brodskii foi condenado a cinco anos de internamento numa quinta do Estado na região de Arkhangelsk. Obviamente, Brodskii era um mentiroso. Um mentiroso assumido e honesto, mas um mentiroso. E um dos maiores.
Sim, caros amigos, os bloggers sabem mentir como ninguém. Dominam essa arte com tanta facilidade como respiram. Pior: certos bloggers são capazes de pôr as piores mentiras a brilhar como Maio-florido. Por isso, podem ser perigosos. As suas mentiras podem soar a verdades. Dizem que sabem como o mundo é cheio de emboscadas, suspiram, batem no peito, irritam-se por dá cá aquela palha, falam ambiguamente ou quase não falam, e sempre por subentendidos.
Mas há mais. Os bloggers são capazes de acreditar nas suas próprias mentiras. Ainda ontem conheci um que, não tendo o que comer, escrevia posts e depois imaginava que os comia. E, acreditem ou não, ainda não morreu de fome. Mas podia referir muitos outros exemplos. Eu próprio… Enfim, usando as palavras do maior mentiroso que eu conheço “às vezes já não consigo arrumar tudo isso”.
“Conta Mia Couto (...)que o muro que circunda a casa de José Craveirinha na Mafalala é um verdadeiro muro de lamentações onde o povo se dirige para fazer os ais variados pedidos, na certeza, pelo menos, de encontrar no poeta um atento, interessado e compadecido auditor para os seus males (...) Diz Mia Couto que (...) «num mesmo bloco (ele, o poeta) aponta: dum lado, as penosas reclamações dos sobreviventes; do outro, as iniciais ideias de um verso». E algumas das histórias ouvidas serão certamente (...) histórias de desaparecimentos, de violência e de morte.
(...) O que, afinal, distingue os grandes poetas é essa capacidade de, ao falarem em nome de homens concretos, o fazerem em nome de toda a humanidade” (Fernando J. B. Martinho)
O resultado é ‘BABALAZE DAS HIENAS’, que suponho ter sido o último livro que José Craveirinha publicou em vida. Um livro de uma violência atroz, feito de corpos a apodrecer ao sol junto a linhas férreas dinamitadas, de bebés atravessados por balas e a boca ainda encostada aos ressequidos seios da mães, de membros decepados e gargantas desgoeladas pelo fio das catanas.
Craveirinha conta as histórias, nomeia as vítimas, descreve os crimes, não poupa nos pormenores sádicos e sanguinolentos. Tudo servido por um humor negro (negríssimo) que torna ainda mais absurdo o horror quotidianos da guerra.
GENTE A TROUXE-MOUXE
Gente a trouxe-mouxe da má sorte
calcorreia a pátria asilando-se onde
não cheire a bafo
de bazucadas.
Gente que gastronomiza
desapetitosos bifes de cascas
gusados de raízes ao natural
e sobremesas de capim seco.
Gente dessedentando martírios
nos charcos
se chover.
...
ou a pé descalço dançando.
A castiça folia.
Das minas.
MENUS
Leves
e frescas
camisas à sport
voltam a gozar o lazer
das cidades.
Entretanto aquelas tristonhas titias
aqueles macambúzios vovós-ninguéns
e aqueles mamparras mufaninhos
na cinegética rural
constam crus
em suculentos
menus das feras.
MINA ANTIPESSOAL
O avançado Jossias “Ponta Esquerda”
terror dos guarda-redes
agora já possui três pés
mas não chuta com nenhum.
Foi uma mina antipessoal
que o pé canhoto não driblou
num carreiro do mato.
Agora uma perna da calça oscila ao vento
enquanto duas pernas suplentes
são próteses de madeira.
As guerras dos homens
desenvolvem o desporto
com próteses para o povo.
Herói de golos de antologia
Jossias, o “Ponta Esquerda” de Fura-Rede
já não tem admiradores.
Palmas e autógrafos quando passa?
Do seu clube nem nada
e autógrafos só no hospital
ou quando o neo-realismo
do pé esquerdo de voz ausente
dá óptima compensação
com autógrafos no hospital
quando preenche e assina:
Jossias ex-Ponta Esquerda
Profissão: indigente.
Clube: Mina Antipessoal.
nebia voltou a atravessar a Avenida Blogesfera para chegar à beira desta janela nada indiscreta. e quando cá cheguei algo de muito estranho estava a acontecer. olhei bem. onde estava o carro alegórico da janela?- pensei. sim, aquele carro alegórico onde vão quase sempre o Tarkovksy, o Bergman, o César Monteiro, a Magnum e e e e . será que o repórter lírico o levou para outras bandas?
aguardei alguns instantes neste baile de máscaras, até que subitamente o repórter lírico (amigo assíduo das torneiras de freud) telefona-me a pedir que eu vá rapidamente ao Centro Blogger. prontamente, fui ao seu socorro ver o que se passava. quando lá cheguei, vi todos os indiscretos à porta do Centro Blogger, felizes e contentes, comentando " hoje ninguém vai picar o ponto." e e e e " vamos todos para uma baile de máscaras bem disfarçadinhos eheh" e e e
De longe, sem eles nos ver, saquei o moleskine ao Repórter Lírico e comecei a apontar por traços rápidos o que dirá o Bartbley, de uma forma mais dissertada.
Traços:
a indiscreta Cristina apresenta-se como uma sevilhana, com um vestido de cor de lacre, com bolas brancas e folhos nos ombros bem destacados. leva na cabeça uma flor que mais parece uma espiga. e nas mãos está bem apetrechada com um par de castanholas.
apresenta traços de inquietação, de tensão. citando-me, tensão nos cotovelos é falta de cinema. sugerir filme "pago para esquecer" do woo woo, na próxima vinda cá.
a indiscreta Ana encorpora a cantora Madonna do video "America Life". toda à tropa, com boina verde riscada mas sem o charuto-granada. e de hi-fi- cheio de autocolantes à martin parr- nos ombros, estilo hip-hop, cantava cantava cantava e e e
a indiscreta Lídia encontra-se poeticamente à futebolista azul, de jornal "record" debaixo do braço e lata de cerveja na mão, mas sem cachecol. mostrando grande ansiedade nas olheiras para que comece o Porto-Manchester já-já.
o indiscreto António dá corpo à fantasia do duo feminino Taiti, mostrando assim o seu lado esquerdo moreno e o seu lado direito ruivo, feminino. num ritmo mexido, quente e romântico rola-se ao som do que ele próprio canta "Mexe o Tutu" (certamente uma linha prática do seu programa filosófico "Sentadíssimo")
E muito menos deu para apontar no moleskine do Repórter Lírico, pois, de repente, chega um carro apressado, um MayBach 62, conduzido pela indiscreta Marta, e ao seu lado, ia um árabe, com um concertina na mão .... Todos os indiscretos entraram no carro e partiram... E vi, aliás, a indiscreta Ana a dizer adeusinho para o Centro Blogger... Para que bandas foram todos os indiscretos?
nebia não sabe dizer, nem Freud explica tais traços.
gosto do rosto escondido, o olhar adivinhado por entre os brilhos e as sombras, os sorrisos cúmplices no desconhecimento. o sentido de algo que se encontra para além de nós, atravessadas as fronteiras da pele.
afigura-se-me um mundo de penumbras e meros sussurros, mais próximos do silêncio que da palavra, visto que o valor da máscara está naquilo que não pronunciamos, que fica na margem do insuspeito. é sermos negros com a noite, caudalosos com os rios, vastos com o tempo.
gosto das máscaras pelo precário signo de eternidade que transportam. visto-me e revisto-me porque também eu tenho muita gente dentro. é ludibriar a memória, fazer de mim todas as pessoas que não me aconteceu ser.
assombro é
o quadrado azul da janela
hálito de verão feito interior
somos seres do sol
por isso existimos
num quadrado de chão
pleno de claridade excessiva.
De qualquer forma, preferimos participar nos bailes sem saber, como se não soubéssemos, quem ele é, que figuras escolheu para se fantasiar. Ignorar se fomos reconhecidos ou identificados como um alvo já abatido, ou ainda por abater. Assistir só aos movimentos dos outros melancólicos mascarados com que ele, ou alguém por ele, disfarçadamente interage, sem se comprometer.
posted by Alexandra on 14:46
Apenas uma coisa entre muitas
E por baixo dos disfarces e das palavras, no meio da música e dos pares que volteiam sem se conhecerem, e até por vezes sem sequer conseguirem recordar-se de quem eram antes da festa, suspeitar que há alguns que acreditam, pelo menos vagamente, que
«Amor significa aprenderes a olhar para ti próprio,
Da mesma maneira que olhamos para as coisas distantes,
Para ti és apenas uma coisa entre muitas.
E aquele que assim vê, cura o seu coração,
Sem o saber, de vários males [...]»
(Czeslaw Milosz, p.80)
*Todas as citações dos meus posts retiradas da antologia Qual É a Minha ou a Tua Língua? – Cem poemas de amor de outras línguas (Assírio & Alvim), que, por mero acaso, acabei de ler neste fim-de-semana de Carnaval.
assombro é
pressentir teu rosto entre as estrelas
agora que se evadiu do rio dos meus olhos
saber-te perdido na negra noite funda
e procurar-te entre florestas de sombras
– ao longo dos desertos caminharei
em cada grão de areia irei chorar-te
o ardor do sol será meu alimento
e os meus braços
refúgio para o teu corpo despedaçado.
A janela estava aberta. Deste lado, já só resistem as magnólias que não são brancas, ainda que neve. Do outro lado, a uma distância audível, uma valsa ou o tempo em cadência circular. Entro, por estas condições necessárias. Com os dois pés dentro da casa, não me prendo aos pormenores empíricos. Às estátuas sobram-lhes gestos e isso basta-me para não acreditar. Se ainda respiro, passo de uma sala para outra sala como de metáfora em metáfora – em diminuendos – e permito-me sentir, penduradas em cordéis puxados pela infância que não inventámos, as máscaras que me acompanham. Deambulamos juntas, se ainda respiro. Como se a solidão pudesse ser coisa, pedra, ar. Ou um livro aberto esquecido numa página qualquer.
a casa não tem fim
se ainda respiro
Num outro plano: «Move-se como uma personagem de India Song», ouço alguém a provocar-me.
contei hoje mil pessoas passando sob a janela. iam todas envergando fatos de cores garridas e cantavam e berravam felizes os desagrados da vida.
amanhã, novo dia, saberei sem certeza que esses desagrados são a própria vida de cada berrador e, meu deus, como será triste esse andor de anos interrompido por um dia a cada translação do planeta.
hoje, fico contente por saber que talvez tenhas passado sob a minha janela novamente, como antes fazias ainda vivente. ter-te-ás escondido atrás duma dessas máscaras elaboradas, dignas de um senhor e para puro sofrimento: auto-flagelação, como para a celebração pascal.
quando me vires de lenço negro numa mão e a outra agarrada ao varandim, coberto por uma manta carmim, poderás gritar acudam.
Para Sandra Costa, não julgue ela que estou a brincar com coisas sérias, um trecho de "Maria Nefeli" de Odysseas Elytis:
Maria Nefeli diz:
SOBRE A BELEZA
Temei
se quereis que vos desperte o instinto da Beleza;
e senão já que vivemos no século da fotografia
detende-o: aquele que a nosso lado
age sem parar com incríveis gestos:
o Inconcebível!
a) duas mãos formosas de mulher (ou de homem) que se tenham familiarizado com as pombas bravas
b) um fio cujas recordações provenham todas da corrente eléctrica e de insuspeitas aves
c) um grito que possa ter eterna actualidade
d) o fenómeno irracional do mar aberto.
Haveis de compreender o que quero dizer.
Somos o negativo do sonho
e por isso parecemos brancos e negros
e vivemos a destruição sobre uma realidade mínima. Contudo
Das Reine Senhoras e Senhores
kann sich nur darstellen im Unreinen und versuchst du das
Edle zu geben ohne Gemeines
so wird es als das Allerunnatürlichste*
diz o que teve de atravessar
as Sendas Celestes.
E algo devia saber.
Deus meu quanto azul desbaratas
para que não te vejamos!
Nota: * "A pureza só pode ser representada pela impureza e artificial em absoluto seria quereres compreender o nobre sem vulgaridade" (carta de Hölderlin a Ch. Neuffer, 12 de Novembro de 1798. O viajante das sendas celestes de que fala Elytis é este mesmo Hölderlin.
posted by Anónimo on 13:09
Garantiram-me que não haveria censura. Chegou a altura de aproveitar esta vasta tribuna para denunciar aquilo de que muitas pessoas de bem já suspeitariam. Existe uma conspiração, baseada em Lisboa (mas com ramificações por todo o continente e ilhas), de proporções gigantescas, capaz de mover cordelinhos com uma facilidade aterradora, nas mais importantes esferas do estado.
Os sinais estão por toda a parte. Será necessário enumerá-los? Um jogador de vermelhinha traz consigo para toda a parte um livro de Apollinaire. Acham isto normal? As nódoas de sumo de romã limitam-se às páginas com número primo, o que é também sintomático. O facto de um batoteiro de rua preferir Apollinaire a Breton é, no mínimo, suspeito.
No Príncipe Real, na Estrela, no Restelo, bastam algumas notas assobiadas para reduzir os agentes da autoridade à mais absoluta submissão.
Os distribuidores de folhetos de publicidade só tocam para as casas das pessoas em instantes bem definidos, prenhes de significado. Se estiver a ocorrer uma audição da "Paixão segundo São Mateus", a interrupção ocorrerá invariavelmente no meio de "So is mein Jesus nun gefangen". E querem-nos convencer de que é coincidência!
Vivemos submersos por lendas urbanas. Com o tempo, o nosso sentido da urgência embota-se. Mas nem tudo o que parece demasiado sinistro e grandguignolesco para ser verdadeiro é fictício. Ignorem isto por vossa conta e risco.
posted by aa on 12:20
he came in through the bathroom window
Esta é uma ideia deveras bizarra. Um baile de máscaras em que os anfitriões se ausentam. Que pensar disto? Apareço disfarçado de Príncipe de Homburgo. Foi o bom e o bonito, encontrar este disfarce. Fui forçado a improvisar. Nenhuma loja de carnaval em Lisboa especializada em personagens kleistianas! Estou farto desta parvónia! Sou eu e o Mourinho, ninguém nos compreende. Adiante. Percorro os corredores desta mansão com demora e atenção. Tudo deserto. Onde escondem eles a poção mágica? Terão todos caído no caldeirão quando eram pequenos?
Eis que tropeço na peruca da Kim Novak... Mas não! Não é esse o filme certo!
Sinto-me ridículo, com este uniforme militar, no meio desta sumptuosidade que, singularmente, tem o seu quê de espartano. A ponta da espada roça no chão de mármore, o eco faz-se ouvir, sinistro.
Em cada estátua vejo uma criatura que não espera senão um momento de distracção para fazer as suas negaças.
Inventário de objectos recolhidos até ao momento (para além da peruca):
1) sextante
2) pingalim
3) manuscrito original de "All's well that ends well"
4) o chapéu de Walser
5) cacos de vasos
6) berlinde
7) o aleph de borges
O que pensar disto tudo?
(Ter-me-ei esquecido de fechar a janela ao entrar?)
#1 | Conservar a máscara.
#2 | Assumir, em todas as linguagens, a personagem.
#3 | Ousar metamorfoses num banco de jardim.
#4 | Cobrir os olhos de estátuas.
#5 | Mover os lábios.
#6 | Reflectir o espelho.
#7 | Conservar o corpo.
Um dos introdutores do surrealismo na Grécia, sobretudo pintor, mas também poeta. Que alegria trazê-lo para a janela, do Quartzo onde dormia!
Ao amanhecer
o que em mim
comovia
as pessoas
– e ainda as comove –
é a minha flagrante parecença
com
Abraham Lincoln
de tal maneira que no dia em que ergueram a minha estátua de bronze
numa praça qualquer do Pireu
vieram depor
aos meus pés
em silêncio
alguma coisa
que se assemelhava
– de cima do pedestal não conseguia distinguir –
a um despojo
a um braseiro
de cobre
com carvões a arder
esperei que caísse a noite profunda
e depois aproximei-me
para ver
descobri
– que alegria –
que não eram mais do que
os olhos negros da mulher que amo
que
brilhavam
nas
trevas
Há esquecimentos que nos doem. Quase como se o desprezo nos fosse dirigido. Sim, e de certa forma é.
O Rui Knopfli é um dos maiores poetas da língua portuguesa do século que passou. Brilha lá em cima, nesse céu de palavras protector onde estão Pessoa, Belo, Drummond ou Melo Neto. O que há, como diria o Campos, é pouca gente a dar por isso. E é pena, porque por Knopfli passa não apenas alguma da melhor poesia em língua portuguesa, mas porque passa também um momento da história de um país, ou melhor, de dois países: passa a melancolia profunda de um império de que já só restam os pregos do caixão ou as sementes secas das casuarinas; mas passa igualmente a identidade e o futuro de um país que ainda não sabe o nome.
NATURALIDADE
Europeu, me dizem.
Eivam-me de literatura e doutrina
europeias
e europeu me chamam.
Não sei se o que escrevo tem a raiz de algum
pensamento europeu.
É provável... Não. É certo,
mas africano sou.
Pulsa-me o coração ao ritmo dolente
desta luz e deste quebranto.
Trago no coração uma amplidão
de coordenadas geográficas e mar Índico.
Rosas não me dizem nada,
caso-me mais à agrura das micaias
e ao silêncio longo e roxo das tardes
com gritos de aves estranhas.
Chamais-me europeu? Pronto, calo-me.
Mas dentro de mim há savanas de aridez
e planuras sem fim
com longos rios langues e sinuosos,
uma fita de fumo vertical,
um negro e uma viola estalando.
PROPOSIÇÃO
Falo de outro país singular,
do perfume aloirado
e desse sabor a pão matinal.
Falo, na distância,
de distâncias quietas
recortadas no zumbido oloroso
de casuarinas azuis.
Falo de paisagens tenras
e sombrias, simétricas,
como parques e losangos.
Trago notícias de outro clima
pairando em luz e pólen,
em suaves ardências de especiaria.
Falo de outras vozes estranhas,
de murmúrios e ruídos indiscerníveis,
dos pequenos ardis do silêncio.
Falo de corpos ágeis
e elegantes como gráficos
que se armam sem impaciência.
Falo de um céu onde estrelas
serenas navegam presságios
e do refúgio em uma outra
dimensão inusitada.
Falo da beleza das coisas
simples e elementares:
a água, o pão e o vinho.
Iludindo o espanto de viver
falo de estar vivo
e desse outro inventado país,
singularmente habitado, fora
da possibilidade de habitação.
ILHA DOURADA
A fortaleza mergulha no mar
os cansados flancos
e sonha com impossíveis
naves moiras.
Tudo o mais são ruas prisioneiras
e casas velhas a mirar o tédio.
As gentes calam na voz
uma vontade antiga de lágrimas
e um riquexó de sono
desce a Travessa da Amizade.
Em pleno dia claro
vejo-te adormecer na distância,
Ilha de Moçambique,
e faço-te estes versos
de sal e esquecimento.
Estou neste espaço como um ladrão. Apercebo-me agora de que é um espaço feminino. As cores de fundo, o tipo de letra, a formatação do espaço. Uma casa que as mulheres abandonaram. Uma prisão de homens decorada por mulheres que se ausentaram. No início estava a Sandra a receber. Agora não vejo ninguém. Aquele empregado de escritório do conto de Melville não existe, como era previsível. Tudo o que há em redor são botins femininos como os que Walser tanto gostava, livros, quadros, tapetes, roteiros de viagens. Se me mexo é quase certo que alguma coisa se vai partir. Vou sair daqui, devagarinho. Caminhar na neve. Longamente. Até que o dia nasça.
posted by Anónimo on 01:20
Não te dá vontade de chorar saber que toda a beleza do mundo está do lado de fora? Que, de verdadeiro, só existe a precaridade do teu olhar?
posted by Anónimo on 01:12
Neste baile de máscaras
A primeira máscara talvez sejam as palavras, «Toneladas de palavras/ velhas como pegadas/de um ornitorrinco na areia.» (Miroslav Hobub, p.75).
Ainda que se torne cada vez «mais difícil encontrar/Palavras ao mesmo tempo reais e simpáticas,/Ou não irreais e não antipáticas.»(Philip Larkin, p.123).
A segunda máscara são as imagens, «Porque o amor é nuvem, por cima de mim,/E, correntes, por debaixo,/E afunda-me os pés,/Ou cai sobre mim como um dilúvio.» (Abu Nuwas, p.64).
A terceira máscara são os corpos: «Ele era ela,/E ela era ele.//Ela era ela,/ e ele era ela também.» (Marin Sorescu, p.81).
A quarta, a quinta e a sexta máscara são o tempo, a memória e/ou o esquecimento: «Cresce musgo, agora, sobre os traços dos teus pés,/Tão profundo que não se pode arrancar.» (Li Bai, p.10). (A memória e o esquecimento podem fazer parte da mesma máscara, bifronte como a de Jano.)
A Janela Iluminada (um capítulo da Educação Sentimental)
A luz na janela era o sinal. Ela excluía os dias férteis, quase todos os fins de semana, as quintas feiras, reservadas às amigas, o final de cada período escolar e todos os dias em que ele não dava aulas na Universidade de A. Eu passava, via a janela apagada e continuava o caminho, sem hesitações. Às vezes encontrava um exibicionista com a sua gabardina e uma fogueira. Outras vezes ninguém.
Nos dias da janela iluminada podia subir. Ela nunca disse amor, amo-te, meu amor, essas coisas. Ao princípio, se surpreendia o meu espanto, mandava-me fechar os olhos. Eu que me guiava pela pulsação carmim : escarlate da cara dela, passei a concentrar-me nos círculos concêntricos da respiração.
Nem tudo pode correr bem todo o tempo, e é este o aviso que vos quero dar. Sabia que devia estar atento à janela iluminada, à flutuação da estação, à neblina da rua no bairro afluente, ao modo como o cão me acolhia quando saltava a sebe do jardim, à porta da garagem. Mas é ilusório supor que se controlam as múltiplas variáveis do amor, mesmo se as palavras se não se dizem e os gestos são só os gestos consentidos. Um dia, os estudantes da Universidade de A. fizeram greve sem pré-aviso e este tipo de greves causa sempre vítimas inocentes.
posted by Anónimo on 00:04
mascara da Mesopotâmia Os carnavais, época de inversão da ordem e festas de mundos às avessas em que se dava livre curso aos instintos, já existiam na Babilónia. No século III aC. Beroso, sacerdote babilónico de Baal, redigiu as Babyloniaka onde descreve as festas que decorriam no mês da Lua (possivelmente em Julho). Durante cinco dias o poder era invertido. O rei escolhia um condenado à morte e permitia que ele vivesse no seu palácio, usasse o seu trono bem como todas as suas concubinas. Mascaravam-se e embebedavam-se em conjunto e no último dia o condenado era chicoteado e no fim acabava empalado ou enforcado. Depois da ocupação da Babilónia pelos Persas, os judeus da diáspora passam a celebrar a festa do Pourim em memória da libertação do cativeiro da Babilónia. Pourim significava sorte, destino—recordando o dia em que Aman, conselheiro do rei, inimigo feroz dos judeus, tirou à sorte a data para exterminar da comunidade. O Pourim correspondia ao período que precede a Páscoa, reeditando o primitivo milagre de Ester, jovem judia que o rei havia tomado por esposa sem saber da sua origem hebraica. No dia da festa, quando todos se vestiam de loucos, bebiam e gritavam os nomes de Aman e Marduk até os confundirem, Ester teve a coragem de interceder pelos judeus junto do rei Ahashverosh, conseguindo a libertação do seu povo.
No mundo romano as festas das bacanais, saturnais e Lupercais têm função catártica idêntica, permitindo a crítica e sátira aos próprios governantes. As saturnais decorriam por altura do solstício de Inverno, em honra do deus do tempo, Saturno, instituídas, segundo a lenda, por Janus, seu companheiro que com ele aprendera a arte da agricultura. Invocava-se o poder mortífero do deus, para o superar, permitindo a continuação do ciclo da vida. Janus, o deus das duas caras: uma virada para o passado e outra para o futuro; representava a geração sujeita ao esforço e ao trabalho e o sonho mítico do regresso a uma primordial Idade de Ouro. Durante este período festivo os escravos tomavam igualmente o lugar dos senhores, jogando todos em conjunto as sortes em grandes folias e mascaradas. Os tribunais e escolas fechavam e o caos e desordem colectiva terminava num “corso” em que se oferecia um carro à protectora dos navegantes, o carrum navalis. Em Fevereiro ocorria a festa dos luperques (luperalia) em honra de Pã e dos faunos. Os sacerdotes banhavam-se em sangue de cabra e perseguiam as pessoas vestidos com peles de bode. As raparigas virgens acreditavam que seriam bafejadas pela fertilidade ao serem alcançadas pelos luperques. O festejo parece ter origem na lenda etrusca dos gémeos alimentados pela loba, o que explicaria o uso de máscaras de lobo bem como posterior associação aos lobisomens. da esquerda para a direita: mosaico de Pompeia, festejo carnavalesco; Pompeia, Casa dos Mistérios, cena de flagelação
Janus bifronte,cadeiral francês, séc.XVI A memória destes festejos pagãos não desaparece no mundo cristão, acabando por se entrosar com os festejos da Igreja. O uso das máscaras com figuras de animal tem igualmente origem nas antigas religiões primitivas, como é o caso dos festejos ao deus Cernunnos (veado) nos países celtas. A própria palavra máscara aparece referida pela primeira vez num texto lombardo da Alta Idade Média (643), relacionando-se com strige e também com o termo indo europeu mask significando fantasma negro; aparição demoníaca. No século XIII passa a designar falsa cara. O cristianismo vai associá-la ao diabo, mestre da máscara e da ilusão. O homem não deve modificar a sua imagem, já que foi feito à semelhança de Deus. Os festejos pagãos e carnavais vão ser criticados e mesmo proibidos pela Igreja mas, tal como acontecera com as interdições dos imperadores romanos, vão continuar a ser feitos, ainda que Savonarola instigue as procissões dos penitenciais, as vanitas Nestas “fogueiras de vaidades”queimaram-se publicamente jogos de cartas, músicas profanas, livros de poesia, máscaras; pinturas e escritos e no final entronizava-se o príncipe da vanglória. Mal saberia o inflamado pregador que viria a ter o mesmo fim...
O carnaval, cuja origem etimológica parece estar associada a carne levale colocar de parte a carne; no sentido do período que antecede a Quaresma, tem também uma remota ligação ao triunfo da Morte e às Danças Macabras. Na tradição germânica representava-se a vitória da Morte a cavalo, acompanhada de fantasmas que se penitenciavam em lamúrias de voz de falsete. Noutros casos triunfavam os mortos vingadores, como aparecem no Romance de Fauvel (1330) ou os festejos em torno de Santo Antão abade, patrono dos animais, em particular dos porcos, cujos pés se penduravam nos portais das igrejas de modo a esconjurar as almas penadas. Ordoric Vital, historiador normando do século XI, descreveu umadessas visões místicas, que teria ocorrido no 1º de Janeiro de 1091 (ver Mikail BAKHTIN, François Rabelais et la culture populaire au MoyenAge et sous la Renaissance, Gallimard, Paris, 1970, p. 388). " Regressando da cabeceira de um doente a uma hora avançada da noite viu "Armada de Arlequim" a desfilar na estrada deserta. Arlequim figurava armado de uma maça monumental, assemelhando-se a Hércules. À cabeça vêm homens vestidos com peles de animais que transportam uma utensilagem de culinária doméstica. Depois, outros homens transportando caixões sobre os quais estão encavalitados homens com cabeça enorme com várias canastras na mão. Seguiam-se dois etíopes com um cavalete de tortura, em cima do qual um diabo supliciava um homem, enterrando-lhe esporas de fogo no corpo. Depois vinha uma multidão de mulheres a cavalo, saltitando sem parar nas selas guarnecidas de pregos incandescentes. Entre elas destacam-se virtuosas damas que iam mais mortas que vivas. Seguiam-nas o clero. Para fechar o cortejo vinham guerreiros empunhando espadas de chamas... Era a procissão das almas errantes do purgatório que procuravam redimir-se".
O Romance de Fauvel (manuscrito na BNF), teve adaptação musical, podendo considerar-se a mais antiga representação de um charivari em cacofonia e sátira carnavalesca. O herói é um cavalo, de nome Fauvel, que se amantizou e está prestes a consumar a noite de núpcias, quando um bando de espíritos malignos irrompe em corso junto à porta de casa, num charivari demoníaco, estragando-lhe a noite. A procissão é composta por jograis que tocam bombos e outros instrumentos ruidosos, acompanhados de danças e gestos obscenos. Vêem-se judeus que mostram o rabo e bêbados desregrados. Nas ilustrações que acompanharam o texto, pode ver-se um carro cheio de crianças, conduzido por um gigante com um toucado em forma de asas. É o antecessor do Arlequim da Comedie dell'Arte o gigante que transporta as almas dos mortos no carro naval.
Romance de Fauvel
Os fastos carnavalescos medievais prendem-se também com outras festas populares como as dos Loucos, dos Inocentes ou a Festa do Burro e da Garrafa. Como refere Jacques Heers (Festas de Loucos e Carnavais), nestas festas tudo parecia permitido. Os clérigos celebravam os ofícios mascarados de mulher ou de loucos, dançavam pelo igreja de garrafa na mão e grandes presuntos debaixo do braço, cantavam todo o tipo de cantigas indecentes e rezavam missas às avessas, em louvor de uma garrafa do precioso líquido ou de um burro entronizado e a festarola acabava ao ar livre em monumentais patuscadas e jogatinas licenciosas. Estava implícita uma complacência para com os mais desprotegidos (crianças e loucos) e, apesar das directivas de Concílios, as festas continuavam a realizar-se. Elegia-se o papa ou o bispo dos loucos; invertiam-se os papeis sociais com frades mascarados de reis e duques e desfilavam todos, acompanhados da população, num autêntico corso carnavalesco.
Mãe Louca, séc. XV, Dijon. O carnaval era também a festa da abundância; uma espécie de País da Cocanha incarnado na Terça Feira Gorda. Desde o século XIII que era hábito teatralizar-se a alegoria no combate entre o Entrudo- gordo e folião e a Quaresma-velha esquelética e sorumbática. A picaresca disputa decorria na praça da cidade, geralmente junto ao mercado como Brueghel tão bem documentou. O jejum está para breve-vêem-se já os peixes a serem amanhados junto ao poço. Do lado do Carnaval o povo folião ainda goza os últimos momentos do desvario. Do lado da Quaresma o clero parece retomar o status quo com três tristes e secos arenques por refeição. Há que manter as aparências, que num nada se desforravam no regresso ao convento... Tudo isto tenderia a ser integrado pelo poder político em triunfos que mais serviam para enaltecer o príncipe que o povo, como no caso dos Médicis, em Itália ou na festa cortesã do Carnaval de Veneza. Depois a Reforma dará a maior machadada na irreverência da tradição popular e a partir do século XVII as Festas de Loucos tendem a cair em desuso.
Brueghel,Luta entre Carnaval e Quaresma, 1559.
Na Origem da Tragédia, Nietzsche glorifica diagnostica o mal da sociedade contemporânea como a perca da festa, da capacidade de conciliar a Ordem com o Caos; o espírito apolíneo com o dionisíaco. A moral cristã parecia-lhe a responsável por este triste ressentimento de uma cultura que se deixara ancorar em excesso do logos e da razão. É capaz de ter sido injusto no que respeita ao passado medievo da Igreja, mas o que não sabia é que aquilo que a moral não mata, acaba por se dissolver no laicismo da "festa" permanente dos media e da sociedade de consumo... E o problema não está no consumo, está mais no enjoo... Por mim tenho pena e gosto muito da bagunça nocturna do Carnaval e Torres, já que nem sempre dá ir até Orense... ";O)
Bibliografia: Mikail BAKHTIN, François Rabelais et la culture populaire au MoyenAge et sous la Renaissance, Gallimard, Paris, 1970 ; GAIGNEBET, Claude, Lajoux, J. Dominique, Art Profane et Religion Populaire au Moyen Âge, P.U.F., Paris, 1985 ;Jacques HEERS, Festas de Loucos e Carnavaispublicações D. Quixote, Lisboa, 1987..
posted by zazie on 21:05
— Que é que devemos fazer Albertine?
Ela sorriu, hesitou por instantes, depois respondeu:
— Acho que devemos estar gratos ao destino por termos saído ilesos dessas aventuras — tanto as reais como as que sonhámos.
— Tens a certeza disso? — interrogou ele.
— Sim, como também tenho a certeza que não é a realidade de uma única noite, nem a de toda uma vida que corresponde à verdade intrínseca de um ser humano.
— Nem sonho algum — suspirou ele calmamente, — é inteiramente sonho.
[...]
Carnavals.m. dias de folguedo anteriores à Quarta-feira de Cinzas; Entrudo; [fig.] orgia; folia (Do lat. carne, vale!, «adeus, carne!», pelo it. carnevale, «terça-feira gorda», pelo fr. carneval, «Carnaval»)
in Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora
Vamos fazer um baile de carnaval aqui na Janela. Não somos nós quem se disfarça é o próprio blog. A festa começa às zero horas de terça e termina no último minuto do dia, como a festa da gata borralheira. O que vai acontecer? Não faço ideia…
Somewhere over the rainbow
way up high,
there's a land that I heard of
once in a lullaby.
Somewhere over the rainbow
skies are blue,
and the dreams that you dare to dream
really do come true.
Para ouvir: Over the rainbow (trata-se de uma gravação de Dezembro de 1948, do programa de rádio "The Louella Parsons". É uma das raras vezes em que Judy Garland canta os versos de abertura da canção.)