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Janela Indiscreta
 
terça-feira, fevereiro 24, 2004  

josé e as hienas

“Conta Mia Couto (...)que o muro que circunda a casa de José Craveirinha na Mafalala é um verdadeiro muro de lamentações onde o povo se dirige para fazer os ais variados pedidos, na certeza, pelo menos, de encontrar no poeta um atento, interessado e compadecido auditor para os seus males (...) Diz Mia Couto que (...) «num mesmo bloco (ele, o poeta) aponta: dum lado, as penosas reclamações dos sobreviventes; do outro, as iniciais ideias de um verso». E algumas das histórias ouvidas serão certamente (...) histórias de desaparecimentos, de violência e de morte.
(...) O que, afinal, distingue os grandes poetas é essa capacidade de, ao falarem em nome de homens concretos, o fazerem em nome de toda a humanidade”
(Fernando J. B. Martinho)

O resultado é ‘BABALAZE DAS HIENAS’, que suponho ter sido o último livro que José Craveirinha publicou em vida. Um livro de uma violência atroz, feito de corpos a apodrecer ao sol junto a linhas férreas dinamitadas, de bebés atravessados por balas e a boca ainda encostada aos ressequidos seios da mães, de membros decepados e gargantas desgoeladas pelo fio das catanas.
Craveirinha conta as histórias, nomeia as vítimas, descreve os crimes, não poupa nos pormenores sádicos e sanguinolentos. Tudo servido por um humor negro (negríssimo) que torna ainda mais absurdo o horror quotidianos da guerra.


GENTE A TROUXE-MOUXE

Gente a trouxe-mouxe da má sorte
calcorreia a pátria asilando-se onde
não cheire a bafo
de bazucadas.

Gente que gastronomiza
desapetitosos bifes de cascas
gusados de raízes ao natural
e sobremesas de capim seco.

Gente dessedentando martírios
nos charcos
se chover.
...
ou a pé descalço dançando.
A castiça folia.
Das minas.



MENUS

Leves
e frescas
camisas à sport
voltam a gozar o lazer
das cidades.

Entretanto aquelas tristonhas titias
aqueles macambúzios vovós-ninguéns
e aqueles mamparras mufaninhos
na cinegética rural
constam crus
em suculentos
menus das feras.



MINA ANTIPESSOAL

O avançado Jossias “Ponta Esquerda”
terror dos guarda-redes
agora já possui três pés
mas não chuta com nenhum.

Foi uma mina antipessoal
que o pé canhoto não driblou
num carreiro do mato.

Agora uma perna da calça oscila ao vento
enquanto duas pernas suplentes
são próteses de madeira.

As guerras dos homens
desenvolvem o desporto
com próteses para o povo.

Herói de golos de antologia
Jossias, o “Ponta Esquerda” de Fura-Rede
já não tem admiradores.

Palmas e autógrafos quando passa?
Do seu clube nem nada
e autógrafos só no hospital
ou quando o neo-realismo
do pé esquerdo de voz ausente
dá óptima compensação
com autógrafos no hospital
quando preenche e assina:
Jossias ex-Ponta Esquerda
Profissão: indigente.
Clube: Mina Antipessoal.




posted by Anónimo on 16:23


 
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