terça-feira, fevereiro 24, 2004
Dois como a retina dos teus olhos por onde arderão para sempre as tochas que acenderão a noite infinita. Dois como os tigres dente-de-sabre que guardam a secreta câmara onde se esconde a tua espera. Dois como os sinais que náufragos barcos vislumbram pela última vez quando pões o motor do carro a trabalhar e desapareces pela auto-estrada do norte em direcção ao sul. Dois como os poços onde me bebeste até à última gota, sempre até à última gota. Dois como o líquen que se formou nos meus ombros desde esse dia. Dois como uma aula que terminou antes de ter começado. Dois como os que agora sobem a colina e adormecem de mão dada nas encostas ensolaradas do teu peito. Dois como os dedos que ficaram presos ao teu cabelo. Dois como os faróis que ainda não apareceram por detrás daquela curva e desaparecem já, vermelhos de ausência, para além da curva seguinte.
Dois como a praia de madrugada, a esplanada onde tomávamos o pequeno-almoço, a estrada para a vila, a tua casa junto à rotunda, as frases de circunstância que trocávamos pelo caminho, a tua mão que procurava o meu joelho, a chama do isqueiro quando acendias o teu cigarro, o silêncio dos pinheiros lá fora, o voo rasante de uma asa delta, a música do auto-rádio, um carro que aparece desenfreado de um abismo qualquer na berma da estrada e os teus. Dois como os olhos que nesses instante olhavam os meus.
Dois como os minutos que faltavam para o fim.