Wordsong é um projecto da autoria de três músicos,Alex Cortez dos Rádio Macau, pelo ex-Mler Ife Dada Pedro D' Orey e por Nuno Grácio, que deram, no seu primeiro trabalho, um registo pop-rock aos poemas de Al Berto, uma das vozes mais singulares da poesia portuguesa do século XX.
A digressão tem início hoje, em Sines, onde o autor passou muito tempo da sua vida, dedicando aliás um conjunto de sete poemas,"Mar-de-Leva", à vila de Sines (al berto nasceu em Coimbra e não em Sines, como diz hoje a notícia do público).
As outras datas e lugares são as seguintes: Lisboa (ZDB, 28 de Março), Alcobaça (Clinic, 29 de Março), Coimbra (Teatro Gil Vicente, 9 de Abril) e Guarda (Auditório Municipal, 23 de Abril).
Os poemas de Al Berto têm uma roupagem pop e rock, com os Wordsong. Penso que não poderia ser outro registo. É sabido que o rock e o punk ( mais nos primeiros livros) eram as preferências musicais de al berto, pois, em toda a sua obra poética, estão lá os nomes desses géneros de música. Com isto não quer dizer que o poeta não gostasse de outros géneros musicais, como de música clássica. A verdade é que Lou Reed, The Velvet Undeground, Joy Division, etcs são os nomes.
Agora se o resultado destas poemas-canções, nesse formato pop rock, dando assim liberdade a outros sentidos e significados é o mais feliz, cabe aos ouvintes dizer.
"Recado" é um dos poemas-canções dos Wordsong
Recado
ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte
vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer-vai por esse campo
de crateras extintas-vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite
deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo-deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração-ouve-me
que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna- o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite
não esqueças o navio carregado de lumes
de desejos em poeira-não esqueças o ouro
de marfim- os sessenta comprimidos letais
ao pequeno almoço
Ontem no pequeno auditório do Rivoli, Edgar Pêra queixava-se das coisas que estão a acabar em Portugal, referia-se ao recentemente extinto grupo de teatro O Olho ao qual pertencia João Garcia Miguel co-realizador de “Os homens toupeira”. Hoje vem no jornal mais uma má notícia: Encontros da Imagem de Braga Adiados Mesmo com o Apoio do Governo Podemos começar a encher uma página de necrologia!
posted by Anónimo on 13:12
Somos toupeiras a arranhar
roupas de anjos
Hoje não foi um grande dia para filmes. Remenbrance do grego Vassilis Mazomenos, apesar de ter sido considerado uma revelação no Festival de Salónica não me entusiasmou nada. A meio resolvi deixar de acompanhar as legendas em inglês e fiquei na sala a ouvir a música e as vozes em grego, o que é que posso dizer?
Atraksion do belga Raoul Servais começa com uma metáfora sobre a liberdade e termina com uma lição de moral: agrilhoados estamos todos nós. Também não gostei.
Valeram-me Os Homens Toupeira do Edgar Pêra, um verdadeiro filme psicadélico.
Vivemos actualmente num mundo de vigília, por oposição ao do sono. O nosso é cada vez mais um mundo vigiado - estar acordado é estar vigiado, e a única excepção é o sonho diz o realizador hoje em entrevista ao Público mas o pior é que nem aí estamos salvos pois sonhamos com as imagens que a televisão nos impõe, ao mesmo tempo reproduzindo e encenando a realidade, através dos documentários, dos 'talk-shows', mas também do teatro e da ficção.
O filme aborda temas quentes: a pedofilia, os big (neste caso giga)brothers, as estrelas da televisão (Jean Claude e Nicole, de van Damme e Kidman, obviamente), os patrocinadores dos programas (champô chaimite), os apresentadores dos programas, o próprio programa (Interessantíssimo!!) tudo sob o efeito de alucinogéneos potentes.
Não passamos de toupeiras a arranhar roupas de anjos…
Acabámos de receber notícias da revista portuguesa mais cosmopolita que conhecemos, a Periférica pois claro. O número quatro está prestes a aparecer nas bancas. Podem abrir o apetite no site deles mas não se esqueçam de a comprar, Vilarelho merece!
Do Portugal profundo, como se das profundezas do Inferno, regressa a revista improvável.
No número quatro, a Periférica não escutou os anseios do povo, não deu voz às massas.
Do mesmo modo se pode dizer que não escutou a voz da razão nem se deu ao bom senso.
Cedeu, sim, ainda mais, aos nobres princípios que a iluminam: não há nada à face da Terra que não possa ser olhado de viés (ok, o slogan precisa de ser melhorado literariamente).
- A edição inicia com Joe Sorren, ilustrador eventual da New Yorker. (Não, não aderimos à moda do plágio.)
- A secção de afectos, A Oeste Nada de Novo, reforçou-se e está quase na dimensão que o país necessita.
- Descobrimos e apresentamos as Sete Maravilhas de Portugal.
- Entrevistámos, candidamente, António Cabrita, crítico, autor, editor da Íman, director da Construções Portuárias.
- Aliciámos Onésimo Teotónio Almeida (crónica) e Sérgio Ranalli (fotografia).
- A Helena Barbas, na crítica literária, juntaram-se João Pedro George (romance) e Manuel de Freitas (poesia).
- Em Pulp Fiction, há novos colaboradores (José Prata e António Cabral) e reincidências (Rui Zink).
- Publicamos a lista de livros de Marcelo Rebelo Sousa. (Continua a não haver plágio, não insistam.)
- E o resto, que não é pouco (crónicas, ilustração, ficção, poesia), era capaz de pasmar a concorrência, assim esta lhe conseguisse botar as unhas.
Se o outro dizia que "Paris é uma Festa", com propriedade o leitor da Periférica dirá o mesmo de Vilarelho, verdadeira Terra do Nunca.
I arrived by ship to New York as a teenager, an immigrant, and like millions of others before me, my first sight was the Statue of Liberty and the amazing skyline of Manhattan. I have never forgotten that sight or what it stands for. This is what this project is all about.
When I first began this project, New Yorkers were divided as to whether to keep the site of the World Trade Center empty or to fill the site completely and build upon it. I meditated many days on this seemingly impossible dichotomy. To acknowledge the terrible deaths which occurred on this site, while looking to the future with hope, seemed like two moments which could not be joined. I sought to find a solution which would bring these seemingly contradictory viewpoints into an unexpected unity. So, I went to look at the site, to stand within it, to see people walking around it, to feel its power and to listen to its voices. And this is what I heard, felt and saw.
The great slurry walls are the most dramatic elements which survived the attack, an engineering wonder constructed on bedrock foundations and designed to hold back the Hudson River. The foundations withstood the unimaginable trauma of the destruction and stand as eloquent as the Constitution itself asserting the durability of Democracy and the value of individual life.
We have to be able to enter this hallowed, sacred ground while creating a quiet, meditative and spiritual space. We need to journey down, some 70 feet into Ground Zero, onto the bedrock foundation, a procession with deliberation into the deep indelible footprints of Tower One and Tower Two.
The foundation, however, is not only the story of tragedy but also reveals the dimensions of life. The Path trains continue to traverse this ground now, as before, linking the past to the future. Of course, we need a Museum at the epicenter of Ground Zero, a museum of the event, of memory and hope. The Museum becomes the entrance into Ground Zero, always accessible, leading us down into a space of reflection, of meditation, a space for the Memorial itself. This Memorial will be the result of an international competition.
Those who were lost have become heroes. To commemorate those lost lives, I created two large public places, the Park of Heroes and the Wedge of Light. Each year on September 11th between the hours of 8:46 a.m., when the first airplane hit and 10:28 a.m., when the second tower collapsed, the sun will shine without shadow, in perpetual tribute to altruism and courage.
We all came to see the site, more than 4 million of us, walking around it, peering through the construction wall, trying to understand that tragic vastness. So I designed an elevated walkway, a space for a Memorial promenade encircling the memorial site. Now everyone can see not only Ground Zero but the resurgence of life.
The exciting architecture of the new Lower Manhattan Rail station with a concourse linking the Path trains, the subways connected, hotels, a performing arts center, office towers, underground malls, street level shops, restaurants, cafes; create a dense and exhilarating affirmation of New York.
The sky will be home again to a towering spire of 1776 feet high, the "Gardens of the World". Whygardens? Because gardens are a constant affirmation of life. A skyscraper rises above its predecessors, reasserting the pre-eminence of freedom and beauty, restoring the spiritual peak to the city, creating an icon that speaks of our vitality in the face of danger and our optimism in the aftermath of tragedy. Life victorious.
Hoje, ao fim da manhã, passou, na antena 2, um programa dedicado ao poeta Ruy Belo, visto que é o 70.º aniversário do nascimento do poeta. De qualquer modo, perdi-o.
Por trás do nome Ruy Belo, surge-me uma maré de palavras. mar. terra. árvores. searas. praia. cafés. amigos. silêncio de Deus. ruas compridas. bilhetes de comboios dentro de livros. tempo detergente. igrejas e procissões. a sombra da morte. o transporte no tempo. povo. aquele grande rio. passeios. lugares. fazer habitar. tenho mesmo que cortar o fio aqui, porque se deixo cair as palavras continuamente, a janela perde as margens.
Porém, não se pode colocar à margem a poesia do Homem das Palavras.
A Multipicação do Cedro
O senhor deus é espectador desse homem
Encheu-lhe o regaço de dias e soprou-lhe
nos olhos o tempo suave das árvores
Deu-lhe e tirou-lhe uma por uma
cada uma das quatro estações
A primavera veio e ele árvore singular
à beira do tempo plantada
vestiu-se de palavras
E foi a folha verde que deus passou
pela terra desolada e ressequida
Quando as palavras o deixaram de cobrir
ficaram-lhe dois dos olhos por onde
o senhor olha finitamente a sua obra
Até que as chuvas lhe molharam os olhos
e deles saíram os rios que foram desaguar
ao grande mar do princípio
Aquele Grande Rio Eufrates
Minor White, Seascape
"Mesmo que não conheças nem o mês nem o lugar
caminha para o mar pelo verão "
Muito bom o artigo do José Pacheco Pereira no Público de hoje!
A primeira, segunda, terceira e milésima coisa que defendo é um debate público, aberto e o mais amplo possível, contínuo, sistemático, envolvendo todo o tipo de órgãos de comunicação social. Este debate deve ser societal e estender-se sob formas próprias a todos os principais mecanismos de reprodução social, como sejam as escolas. Nas escolas, insisto há muito tempo, deve-se ensinar a ver televisão, a ouvir rádio e a ler jornais, não podendo continuar a cegueira de um sistema de ensino que de há muito perdeu o principal papel na socialização das crianças para a televisão e que insiste em não a estudar, nem a ensiná-la.
"Every explosion has an area of calm, there are blind spots where you least expect them",
Traudl Junge
Bind Spot é um filme perturbante. Quase não é cinema, não há música, a montagem é vulgar, não há nada que nos possa distrair, apenas a voz e a presença de Traudl Junge, secretária de Hitler desde 1942 até aos últimos dias do ditador no bunker em Berlim em 1945.
Não é nenhum tratado histórico é mais um exercício de consciência, terror e remorsos. Junge fala-nos das coisas banais, das brincadeiras de Hitler com o seu cão ou do facto de não haver flores no escritório porque Hitler não gostava de coisas mortas, e toda essa vulgaridade é horrivel. Fala-nos de si própria, tão nova e inocente, sem se preocupar com o que se passa ao redor. E depois mais tarde, aqueles dias finais, de pesadelo, no bunker em Berlim. E mais tarde ainda a tomada de consciência, quando descobre que, em vez de dactilografar as cartas de Hitler, podia estar do outro lado. Porque é que não abriu os olhos?
O filme é essa mulher de 81 anos que nunca conseguiu perdoar a si própria.
Pode não ser cinema, mas é brilhante.
Continuando na Alemanha, Grill Point passa-se junto à fronteira com a Polónia e conta a história de dois casais mais ou menos acomodados mais ou menos com vontade de mudar, histórias vulgares onde se ouvem os horóscopos com fé e se escolhem cozinhas com paixão. Um rame-rame cinzento animado pela música dos 17 Hippies que transbordam boa disposição e, não se submetendo às regras clássicas da montagem, espalham a sua música pelo filme de modo anárquico.
Parece um filme de orçamento reduzido, com poucos actores, bastante grão, câmaras em movimentos irregulares, um bocado "à dogma", com uma perspectiva vagamente documentarista. O resultado é interessante e já lhe valeu o Grande Prémio do Júri na Berlinale 2002.
A noite passou-se em Londres na companhia de Doctor Sleep. O filme mistura o tom policial (a caça ao assassino) com o sobrenatural (a procura de um tal Paladine que apesar de ter morrido há 500 anos continua vivo e a praticar rituais sangrentos) mas não se sai bem da combinação.
Neste estabelecimento pode-se ler, estudar e fumar
Ontem, para matar saudades, resolvi visitar a zona antiga do Fantas. O Auditório Carlos Alberto deve estar a poucos meses da conclusão, não gostei muito do que vi, mas deve ser um problema meu; a Praça Carlos Alberto continua escaqueirada; o cosmopolita café Luso está fechado; o Progresso foi renovado: tem muita luz, está limpinho e cheio de madeira e continua a servir um óptimo café de saco.
Diz assim Manuel Porto num Tripeiro de 1958 e citado na ementa:
O Café progresso, estabelecimento em que, além do melhor “Moka” do universo, se vendiam “tabacos, jornais nacionais e estrangeiros e o Diário do Governo” abriu as suas portas num lindo domingo, 24 de Setembro de 1899, e foi fundado – afirma um cronista da época – por “meia dúzia de consumidores que, cansados de explorações, resolveram prescindir de quem lhes fornecia géneros avariados para eles os fornecerem, óptimos para si e para os outros”.
O referido café, tornou-se, mais tarde, muito conhecido por nele se reunir quotidianamente a fina flor do professorado portuense”.
Eram cinco da tarde, o café estava cheio de velhotes, dois rapazes que escreviam, um homem que olhava para lado nenhum, algumas mulheres a comerem miritas com meias de leite e eu a copiar a ementa
Nogo parece saído das páginas da Wallpaper*.
Tudo se passa em redor de uma estação de serviço. É aí que Maria conheçe Joe decidindo ficar com ele porque a estação é um lugar onde não se passa quase nada. Lisa e Tom querem ter a sua própria estação de serviço e a de Joe é perfeita, nem demasiado grande nem demasiado pequena. O problema é que chegam em má altura porque Rosa e Sam, uma prostituta e um ladrão com muito bom aspecto e que piscam constantemente o olho a Bonnie & Clyde, acabaram de assaltar um banco e precisam do carro de Rosa que está na estação de Joe à espera de ser consertado... a situação está prestes a explodir…
A música dos Sofa Surfers é quase uma personagem, com entradas e saídas de cena (numa boa montagem sonora) e às vezes até parece que são as imagens que andam a reboque do som.
É o tipo de filme que divide as opiniões, muito atraente para uns e deplorável para outros. Gostei muito.
O filme pouco tem de fantástico mas a especificidade do festival volta e meia perde-se, é o caso de Bug, uma comédia ligeira que aborda o tema das consequências, a acção x leva à acção y, numa cadeia vertiginosa de acontecimentos onde o avião pode ou não explodir por causa de um escaravelho esmalhado. A fita é engraçada e traz o Prémio do Público do Festival de Cinena de Santa Bárbara 2002 palmarés que se habilita a repetir aqui no Fantas.
Ao certo, não se sabe. Esta é a história de como há livros a mais no mundo e, todos juntos, não chegam para albergar alguns sonhos que, porque grandes demais ou, simplesmente, humanos demais, se recusam a sair dos homens onde nasceram, sendo dentro destes - pequenos, contraditórios, confusos, pobres, iludidos, enganadores, precários, mortais – que permanecem.
O sonho de Joe Gould, Professor Gaivota, era grande e consistia em escrever “Uma História Oral do Nosso Tempo”, na qual teria lugar apenas aquilo que tivesse presenciado ou ouvido, sendo pelo menos metade do livro “constituído por conversas reproduzidas literalmente ou resumidas; daí o título. «O que as pessoas dizem é que é história. Aquilo que considerávamos ser história – reis e rainhas, tratados, invenções, grandes batalhas, decapitações, César, Napoleão, Pôncio Pilatos, Colombo, William Jennings Bryan – não passa de história formal e em grande parte falsa», diz Gould. «O que eu faço é registar a história informal de gente em mangas de camisa – o que têm para dizer sobre os empregos, amores, comidas, pândegas, apertos e penas»”.
Só que, em vez de escrever a “História Oral”, Joe Gould, não se sabe ao certo se por preguiça (o que parece ter negado), se por incapacidade, se por não saber viver sem ela, acabou a ouvi-la, a guardá-la, a vivê-la e a sonhá-la indefinidamente. O que também não se sabe. Que, durante muito tempo, acreditou escrevê-la e nunca ninguém a leu é entendimento mais pacífico, pelo que esta pode ser, ou não, a história de uma não-verdade do tamanho da vida de um homem, morada possível de um sonho em forma de um livro com páginas que falam, ouvem, catam beatas pelos passeios da Village e sonham outra vez.
Além de grande, o sonho de Joe Gould era também grandioso. Joe Gould, o boémio, o vagabundo, o homem que apontava os maus poetas, que sabia que a ausência de sentido de humor nos torna rígidos e tristemente risíveis, que imitava gaivotas nas reuniões sociais, que recitava poéticas e sarcásticas barricadas ante o terror furioso dos burgueses anti-aburguesados pela roda das modas intelectuais, tinha um sonho que, a concretizar-se, lhe daria - a ele, marginal - direito a eterna glória petrificada em centro de praça na terra natal e que, apenas prometido, fez dele centro de incisiva admiração. Podemos mesmo viver sozinhos?
Não, nem sem memória, e Gould, o historiador, que a tinha em demasia para tudo mas descarnada e sem referências para si mesmo, acaba por transformar outro homem, o repórter e narrador, em fiel depositário da história da sua vida, bem como de abundantes segmentos da “História Oral”. Será este repórter, por fim, que, conhecendo bem os rótulos e as respostas que a justiça estereotipada guarda para todos os homens que ousam não separar realidade e fantasia, resiste à tentação da condenação e permite a Gould a continuação do sonho, seu ânimo e sustento.
Tudo isto, escrito por Joseph Mitchell de forma directa, sem sentimentalismo e com um humor implacável que nos faz rir do princípio ao fim daquela que é, também, uma história de abandono e impiedade, cabe em dois perfis – “O Professor Gaivota” e “O Segredo de Joe Gould”, publicados por Mitchell em The New Yorker em, respectivamente, 1942 e 1964 – e em 138 páginas, já que um livro como este, sobre o excesso de livros e com excesso de histórias, sonhos, limites e interrogações, não podia, obviamente, ser grande, ou careceria de brilhantismo e de ironia formal.
Sonhei com o livro nas duas noites em que, para dormir, tive de interromper a leitura e, em ambas as vezes, o meu sono foi sobressaltado e febril porque não consegui desligar. Apesar de me parecer que o principal está escrito acima, pelo menos da perspectiva da minha leitura, suponho que continuarei a pensar nele durante muito tempo. Até agora tinha lido livros fáceis na forma e na substância, livros densos na forma e na substância e livros densos na forma e simples na substância. Este é de forma fácil (a palavra invisível, que quase não se nota e permite um encontro natural com as histórias, parece-me ser outra das suas maravilhas) e de conteúdo denso. Lê-se num pestanejar, parece uma coisa de nada e, depois de se fechar, continua a dizer coisas, não se cala. Muito inteligente por muitas razões mas, enfim, por uma das minhas preferidas: o facto de ser um livro em que os livros são reduzidos à sua insignificância e reaparecem no seu - justo - lugar ao lado dos sonhos, dos dias, das refeições quentes e das muitas outras coisas de ser gente.
Ontem descobri que a editora Âmbar está a editar as obras de Nina Berberova. Já está disponível Os Últimos e os Primeiros, o primeiro romance da autora, publicado originalmente em russo sob a forma de folhetim em 1930, e só publicado em livro pela primeira vez em 2001, por ocasião do centenário do nascimento da autora. A tradução é feita por António Pescada (que traduziu Margarita e o Mestre de Bulgakov) directamente do russo. Seguir-se-à nova tradução de A Acompanhante.
É louvável este esforço, não sei se vão editar toda a obra da escritora (parece que a Actes Sud ainda não o fez em França) mas espero que divulguem o projecto para ver se é desta que a escritora é "descoberta" no nosso país, merece ela e merecem os leitores.
Há algumas edições em português da Nina Berberova (de finais dos anos oitenta, princípio dos noventa e geralmente encontram-se em saldos): A Acompanhante e O Lacaio e a Puta (este com tradução de José Colaço Barreiros) estão editados pela Dom Quixote; Astachev em Paris e O Mal Negro, pela Presença e o belíssimo A Ressurreição de Mozart (com tradução de Fernanda Botelho e capa de Noé Sendas) pela Contexto.
Fins de Fevereiro. Saí para te esperar. Vi folhas novas num arbusto da alameda – isso mesmo, aquele que dá os copos, que à noite cheiram alto – e senti-me rejuvenescido.
Voltei para casa e até me esqueci de ver o correio.
Relatório do Fantasporto:
A Snake of June, realizado pelo japonês Shinya Tsukamoto é sobre o amor (ou talvez a falta dele) o sexo e a morte, temas que combinam bem. O tom dominante é o azul e de facto o filme é frio que se farta, chove do princípio ao fim, as personagens quase não se tocam, falam por telemóveis, utilizam controles remotos para os seus prazeres, vivem em casas bem desenhadas com espremedores do Stark, são todos modernos e infelizes. O elemento mais sensual é um caracol que, como ensinou a senhora Highsmith, “manifesta uma sensualidade no seu acasalamento que não se observa em mais nenhum habitante do reino humano”.
Há referências evidentes a “Peeping Tom” e mais subtis a Cronenberg e a Bilal. Snake of June ganhou o Prémio Especial do Júri no Festival de Veneza 2002 e tem hipóteses de recolher um palmarés aqui no Fantas.
A Map of the Heart vem da Alemanha e anda mais ou menos à volta do mesmo: o amor. A história passa-se na Córsega e o mote é dado por um vendedor de bugigangas: os objectos vão ditando a construção da trama e o fim tem de se entrelaçar com o princípio. Intimista, diz no programa, sim mas um bocado entediante.
L.I.E. a estreia cinematográfica de Michael Cuesta, um dos realizadores da série “Sete palmos de Terra”.
As iniciais significam Long Island Expressway, a autoestrada onde a mãe de Howie (Paul Franklin Dano) morreu num acidente. A partir daí tudo corre mal a este miúdo de 15 anos: o seu melhor amigo (se assim podemos chamar ao rapaz que o desafia para uns assaltos) abandona-o, os outros rapazes gozam a sua sexualidade ainda não definida, a escola é uma instituição distante que apenas que lhe oferece um número de telefone para o caso de surgirem sarilhos em casa e o pai é preso por corrupção.
Surge então Big John (Brian Cox), uma personagem respeitada pela comunidade, que oscila entre um velhote paternal e um verdadeiro predador sexual.
"Lanes go West, lanes go East, Lanes go straight to hell." diz Howie no fim.
Excelentes interpretações de Dano e Cox e um filme inteligente. Michal Cuesta promete!
Daniel Blaufuks expõe
"Collected Short Stories" na Gulbenkian
"Collected Short Stories" é o mais recente trabalho do fotógrafo Daniel Blaufuks que a partir de quinta- feira vai estar exposto no Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian, em Lisboa. A mostra vai estar patente até ao dia 27 de Abril e é acompanhada da edição de um livro com o mesmo título.
"Collected Short Stories" é constituída por 20 fotografias e um vídeo e constitui o desenvolvimento natural do trabalho que o fotógrafo tem vindo a desenvolver. Sugerir uma história com duas imagens é a proposta de Blaufuks ao optar pela utilização do modelo mais curto da sugestão sequencial.
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Tudo se passa dentro de um carro, há uma mulher que o conduz (através de atalhos, de ruas sem saída, de ruas com muito movimento) e ao lado vão-se sentando o filho, a irmã, uma velhota religiosa, uma amiga e uma prostituta.
O carro é uma mistura de diva de psicanalista e confessionário onde se expõem os problemas destas mulheres, onde se discute, berra e chora.
É a primeira vez que o Kiarostami filma intensamente as mulheres, exceptuando o rapazinho há apenas um homem (o pai) que está sempre longe (dentro de um jipe) e de quem quase nada sabemos. Veio-me à memória um livro do Edward T. Hall (A Linguaguem Silenciosa) em que ele nos fala dos iranianos:
Os iranianos lêem poesia; são sensíveis, têm uma intuição desenvolvida e, a maior parte das vezes, não se espera que façam grande uso da lógica. É frequente vê-los a abraçarem-se e a apertarem as mãos. Em contrapartida, as mulheres são consideradas seres frios e práticos. Possuem muitas das características que nos Estados Unidos se associam aos homens. Um funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros, muito perspicaz, que passara numerosos anos no Irão, comentou:”Se inverter os papéis emocionais e intelectuais que atribuímos ao homem e à mulher dar-se-à muito bem aqui.”
Estes homens já os tinha encontrado em filmes anteriores sendo talvez o melhor exemplo aquele que se faz passar por Makhmalbaf em Close Up, mas as mulheres têm andado encondidas por detrás do chador e de uma timidez imposta e é a primeira vez que as descobro assim, a dizerem o que pensam sobre os homens, sobre a sua própria vida, sobre a religião e sobre o sexo.
Mania Akbari erradia uma energia surpreendente e é com muito humor que insinua ao filho que o grande problema entre homens e mulheres passa pelo aconchego da barriga.
Os diálogos e os actores são magníficos e a economia de meios é notável.
O Augusto Sócrates, que também gosta muito de Tarkovsky, mandou-nos uma das histórias para uma noite da calmaria, a número 30:
A Poesia Mais Bela
Lá para os lados de Torre Pedrera, um poeta de província, na tarde de 14 de Julho de 1969, adormeceu numa praia. Sonhou que Dante lhe mostrava o seu poema mais belo.
Sou um homem solitário
como uma árvore
dentro de uma árvore sentado
Era um poema que nunca tinha escrito
Tonino Guerra
Evening Red Tree de Piet Mondrian
O livro é muito bonito, as histórias lembram-nos filmes. Ontem no Mil | Folhas o Sérgio C. Andrade juntou três livros com cinema dentro, as histórias do Tonino é um deles:
Um bom exercício que a leitura de "Histórias para uma Noite de Calmaria" poderá proporcionar será, aliás, imaginar como é que a câmara de Antonioni recriaria as suas atmosferas e histórias. Como a do texto "Amou tanto": "(...) Até que se enamorou pela fachada de uma igreja de Assis, decidindo mudar-se para aquela cidade. Era Inverno, e durante os temporais nocturnos saía com o guarda-chuva para fazer companhia à igreja, plena de uma luz amedrontada (...)."
Hoje foi o meu primeiro dia oficial de fantas. Duas incursões ligeiras: 13 Campanadas, nada de especial, uma história de esquizofrenia nem sempre bem contada, a participação do Diogo Infante, Santiago de Compostela, o Museu desenhado pelo Siza, e acho que mais nada a realçar.
Secretary de Steven Shainberg é uma história de amor que desmonta com humor os clichés das relações amorosas. Ganhou o Prémio Especial do Júri do Festival de Sundance e no programa dizem que é um dos “mais tórridos e provocadores filmes da temporada”, mas não acreditem nisso, é bastante inocente. Gostei dos actores, James Spader faz de advogado mauzão mas bom rapaz e Maggie Gyllenhaal é a jovem que afinal só quer é casar.
A música é do Angelo Badalmenti e anda pelo filme algo do Lynch, mas é apenas um fiozinho.
O rivoli está em festa, gente por todo o lado, lotações esgotadas, é bonito de se ver.
Ainda na senda do Giacometti, deixo aqui, na janela, um poema de Mário Rui de Oliveira, do seu livro " O Vento da Noite" (Assírio & Alvim).
Em estado puro
Numa das esculturas de Giacometti, tocadas ainda de fogo, um homem caminha, em movimento solitário e eterno. Não sabemos se entra, se sai da morte, mas conseguimos reconhecer, na nobreza do cobre, a própria condição humana. Como benção ou danação, o escultor devolve- nos a vida em estado puro. Viver é também isso. Percorrer um campo de anémonas, quase com vergonha do que trazemos escondido, na mão.
Na origem da beleza está unicamente a ferida, singular, diferente para cada qual, escondida ou visível, que todos os homens guardam dentro de si, preservada, e onde se refugiam ao pretenderem trocar o mundo por uma solidão temporária mas profunda. Fora de miserabilismos. A arte de Giacometti parece querer revelar essa ferida secreta dos seres e das coisas, para que nos ilumine
O estúdio de Alberto Giacometti de Jean Genet é um livrinho imprescindível. Pertence à colecção Alfinete da Assírio & Alvim, a tradução é de Paulo Costa Domingos, as fotografias de Ernest Scheidegger e vai na segunda tiragem.
Jean Genet visita o estúdio do escultor, conversam, Giacometti desenha-o (sozinha na tela, não media mais de sete centimetros de altura por três de largos, tinha porém a força, o peso e as dimensões da minha autêntica cabeça), falam de escultura, dos materiais e de coisas vagas: Genet fica enfeitiçado.
Vamos beber um copo. Ele toma café. Pára para melhor captar a beleza penetrante da rua de Alésia, beleza suave, por causa das acácias cuja folhagem pontiaguda, acerada, à transparência do sol, mais amarelo que verde, parece derramar sobre a rua uma poalha dourada.
Ele – Que bonito, que bonito…
Recomeça a andar, coxeando. Conta-me como se sentiu feliz ao saber que a operação – depois do acidente – o deixaria coxo. Vou arriscar o seguinte: as estátuas dele dão a sensação de no limite se refugiarem não sei em que secreta enfermidade protectora da solidão.
…
Acerca da solidão dos objectos:
Ele – Um dia, no quarto, ao olhar uma toalha em cima da cadeira tive vivamente a impressão de que além de estarem sós, os objectos tinham um peso – melhor, uma ausência de peso – que os impedia de assentar sobre os outros. A toalha estava só, de tal modo só que eu tive a sensação de poder pegar na cadeira sem a toalha se mexer do sítio. Tinha o seu lugar próprio, o seu peso, e até um silêncio próprio. O mundo era leve, leve…
…
Uma afirmação de Giacometti constantemente repetida:
– É preciso valorizar…
Julgo que nem uma única vez na vida ele encarou os seres ou as coisas com olhos de desprezo. Tudo se lhe depara na mais preciosa solidão.
Ele – Nunca conseguirei pôr num retrato a força toda de uma cabeça. Só o facto de viver exige desde logo tal vontade e tal energia.
É assim o livro, escrito de um modo impressionista, uma homenagem a um homem extremamente sensível, um homem que se comove com a beleza da poeira que cobre as garrafas de terebentina.
A Academia de Cinema Europeu entregou-lhe agora o prémio para o conjunto da obra. Apenas natural para quem escreveu tantas obras-primas para outros filmarem. Dias antes do prémio, Tolentino de Mendonça visitou à casa italiana de Tonino Guerra. Conversa entre dois poetas. Tem 82 anos, o poeta que escrevia argumentos para os filmes de Antonioni, Fellini e Tarkovski. Reparte hoje as estações entre o seu apartamento de Moscovo e a casa, em Pennabilli, nas montanhas onde a paisagem italiana é uma perfeição carregada de silêncio. De Rimini há um autocarro (um autocarro de província) que parte para lá, passando por lugares que, dos livros de Tonino Guerra, se reconhecem facilmente: San Leo, Santa Ágata, Marecchia... Depois, o autocarro pára junto a uma praça. A porta de casa dele não fica longe.
PÚBLICO - Há dias, ao telefone, falava da necessidade de redescobrir a pobreza... Tonino Guerra - Devo dizer que em muitos momentos me refugio na memória desses dias em que as estradas eram feitas de pó, e os cavalos eram ainda utilizados para se chegar aos lugares, e a neve estava repousada nas soleiras, e se comia o que havia (que era quase nada e nos parecia bastante). Tenho a impressão que o consumismo nos conduz a grandes perdas, ao mesmo tempo que nos sufoca de objectos. Para mim, refugiar-me no passado significa reencontrar os prazeres da pobreza. A pobreza ajuda à fantasia. Na pobreza vive-se sob uma chuva de desejos suspensos.
P. - Mas este seu discurso comporta um preço de solidão face à maneira como o mundo se organiza. R. - A mim não me interessa nada como o mundo se organiza: interessa-me o modo como me estou organizando. Páro a escutar que chove; ofereço o olhar a cada entardecer e sou feliz, como ontem fui, ao aprender que as flores da cerejeira alcançam o máximo da sua brancura um instante antes de cair e morrer.
P. - Para si a Arte é o quê? R. - Não sei o que é a Arte. A Arte é uma coisa que nos faz companhia, uma coisa pobre que nos enriquece, embora se saiba que o mistério nunca é iluminado completamente.
P. - O Tonino Guerra argumentista, novelista, pintor, poeta, construtor de jardins, artesão de mobiliário... que se considera afinal? R. - Sou um poeta. Um fulano qualquer que caminha ligeiramente levantado da terra e que, de vez em quando, cai, estatelando os tacões e enchendo-se de infelicidade.
P. - Se lhe pedisse para falar da poesia... R. - A poesia é, sem dúvida, um caminho. Uma espécie de chamamento a ir mais longe para encontrar a proximidade escondida.
P. - A poesia escrita por outros também lhe faz companhia? R. - Estou sempre no encalço de Dante, Francisco de Assis, Pu_kin, até aos últimos (e refiro-me apenas aos italianos), Montale, Ungaretti... E de alguns camponeses que não escreveram nada, mas deixaram, no mundo, um pouco da sua alma.
P. - Para quem o lê, soa muito natural essa referência a um mundo campesino, quase em desaparecimento. R. - Estou muito ligado a essa outra civilização, o que não quer dizer que não tenha consciência de que a atmosfera presente, tão carregada de ciência, não produza ainda, e por tanto tempo, luminosidades poéticas. Sabe... um artista tem sempre os olhos na sua infância. Eu mantenho sempre que nós comemos a nossa infância... Se, por trinta anos, comi os 'involtini' da minha mãe isso é uma droga: são os 'involtini' melhores do mundo; tal como o 'spaghetti' que comia às sextas-feiras; tal como o salame... Estamos ligados a coisas tão remotas.
P. - Como é que decorreu a sua infância? R. - Teve os seus dias de tristeza e sofrimento, certamente, mas o tempo cancela as coisas tristes e deixa apenas o que foi belo.
P. - Isto é? R. - Uma relação difícil de descrever, de tão intensa, com a natureza, com os rumores, com os nevões...
P. - Que faziam os seus pais? R. - Meus pais saiam às quatro da manhã de Santarcangelo e vinham, pelas povoações da montanha, vender fruta e verdura. Minha mãe era de pequena estatura e analfabeta. Desde menina, vendeu peixe frito nos mercados, e quando entregava a porção de peixe a um cliente assinalava, com traços, numa folha de papel: uma linha vertical se fosse um homem magro, uma bola para uma pessoa gorda. Assim os reconhecia para o pagamento. Meu pai falava pouco. Não era de elogios ou beijos. Quando voltei da Alemanha, depois de um ano em que me acreditaram morto, ele tirou o cigarro da boca e perguntou-me "já comeste?", e foi-se embora. Mas quando eu estava sentado em casa, vejo chegar um homem com uma pasta. Perguntei-lhe: "procura alguém?". "Procuro-o a si. Sou o barbeiro". Meu pai viu-me de barba e foi chamar o barbeiro. Por isso sei que o amor tem muitas expressões. É teatral e imediato, mas pode dar-se, igualmente grande e caloroso, ainda se com atraso.
P. - A sua experiência no campo de concentração... Sabe, custa-me muito formular uma pergunta. R. - Era muito jovem e olhava para os sofrimentos com curiosidade. Nesse lugar terrível comecei a escrever poesia em dialecto (o romagnolo), pois essa era a língua dos operários, meus companheiros. Não tinha papel e todas as noites dizia os poemas para os manter na memória. No dia de Natal de 1944 não nos serviram o 'bròdo' (uma espécie de sopa) que era de tradição comer. E os meus companheiros pediram-me que falasse das comidas de Natal. Eu com palavras e gestos criei uma ceia de Natal, longa e deslumbrante, cheia de coisas saborosas que todos fingiam apreciar. Quando acabei de servir, de fingir que servia a 'tagliatèlla', deu-se uma cena comovente: um companheiro perguntou-me se podia comer um pouco mais.
P. - E isso no meio daquele inferno. R. - Lembro-me dos bombardeamentos, do barulho ensurdecedor, do medo... E de me pôr a pensar em qual seria a coisa que mais pena me fazia abandonar no mundo.
P. - Mas aconteceu a libertação. R. - No dia da libertação os portões do campo apareceram abertos e tinham desaparecido os jovens soldados alemães. Fomos todos até aos portões e faltava-nos a coragem de sair. Um prisioneiro avançou dois passos e voltou para trás de novo. A um certo ponto, três ou quatro desatamos a correr em direcção a um bosque. Foi ali que tive uma das maiores alegrias da vida. Depois de todo aquele horror, fui capaz de olhar para uma borboleta sem vontade de a comer.
P. - Que idade tinha? R. - Vinte e dois ou vinte e três anos.
P. - Veio, depois, a Universidade e a publicação do primeiro livro. R. - Licenciei-me em Urbino, em Pedagogia. O reitor da Universidade, o reputado crítico literário Carlo Bo, tendo lido os meus poemas, insistiu muito que os publicasse. Ele fez o prefácio e eu mandei fazer o livro, às minhas custas, a um tipógrafo de Faenza.
P. - Por essa altura, chega também o cinema. R. - Comecei por ajudar na preparação de um filme com Mastroianni, porque precisavam de alguém que conhecesse a cultura da região da Emilia Romagna.
P. - E, pouco depois, vai viver para Roma. R. - Fui, à procura de não sei que fortuna, para ter de suportar dez anos de fome (risos). E aconteceu esta coisa fantástica de que me lembro. Num mês de Agosto, eu e minha mulher estávamos em casa, sem nada para comer. Eu falo-lhe então de uma rapariga que nos atirava pão, às escondidas, no campo de concentração, e assim nos ajudava. E digo: "se voltar a encontrá-la um dia, ponho-me de joelhos diante dela". Tocam à porta nesse preciso instante. Era ela. Era essa rapariga que se tinha casado e vinha a Roma, em viagem de núpcias. Para esconder-lhe a minha miséria, invento que há uma gripe asiática muito perigosa em Roma, que não deverão comer absolutamente nada ali, mas escapar, logo que possam, para outro destino. Uma semana depois recebo um postal dela, da Suíça. Dizia: "Obrigada, tu salvaste-nos" (risos).
P. - Em que consiste o trabalho de um argumentista? R. - Um argumentista participa na estrutura de palavras que serve ao realizador. E, por vezes, pode chegar a sugestões que definem também o estilo ou a alma do próprio filme.
P. - Pedia-lhe que definisse, com uma frase, alguns dos importantes realizadores do cinema contemporâneo com quem trabalhou. Antonioni... R. - Um homem que torna preciosa até a imundície.
P. - Fellini... R. - Um olhar dentro da sua infância.
P. - De Sica... R. - Recolhe os gestos poéticos expressos pela realidade e pelas palavras de Zavattini.
P. - Rosi... R. - Um entendimento exacto da realidade italiana.
P. - Angelopoulos... R. - Um olhar lento e longo.
P. - Tarkovski... R. - Uma nuvem de espiritualidade.
P. - Em Tarkovski há também o seu fundamental encontro com a Rússia. R. - Sim, Andrei (Tarkovski) é um encontro perfumado nessa magnífica terra, plena de espiritualidade, que é a Rússia, que eu considero a minha segunda pátria. A Rússia, para lá do seu 'respiro' europeu, tem também valores orientais que me enchem de curiosidade e me fazem caminhar sobre sentimentos de uma extensão enorme. Porque, sabe, os pontos de fuga que me interessam são os interiores.
P. - Pontos que nos transportam, para usar palavras suas, "às portas do silêncio". R. - Na Rússia ou fora da Rússia é isso que me fascina. Conheci um homem, neste vale do Marecchia, que vivia numa grande solidão. Chamava-se Eliseu. Um dia perguntei-lhe: "Eliseu, Deus existe?". Ele ficou, primeiro, um pouco embaraçado e, depois, respondeu: "Dizer que Deus existe pode ser uma grande mentira. Dizer que não existe pode ser uma mentira maior".
P. - E Tonino Guerra o que diz? R. - Há, por certo, alguém que crê profundamente e todas as vezes que encontro pessoas assim, abandonadas a uma convicção, sinto-me em grande dificuldade. Conto uma história que se passou comigo e com Antonioni. Numa região remota da Ásia, caminhávamos por uma espécie de caminho de pedras e de silêncio. Subimos a uma pequena colina e vimos, no vale, um camponês que arava aquele desterro com um bocado de madeira. Imprevistamente parou, pegou num tapete desfiado e rezou voltado para oriente. Naquele deserto absoluto, aquele homem oferecia a sua solidão, os seus pensamentos. E nós virámos as costas, impressionados, na tristeza das nossas dúvidas.
(Faz um longo silêncio)
Vivo cheio de perguntas. Na vida, uma coisa que me atormenta, por exemplo, é pensar na perfeição de um olho. Como é que pode ter surgido sozinha uma perfeição assim? Para mim, Deus é esta pergunta misteriosa.
Por cima de Casteldeci há uma igreja sem tecto e as paredes têm entre os braços uma cerejeira que cresceu no chão e cujos ramos tocam o céu.
Em Abril floresce e a brancura desliza da árvore até ao fundo do vale, depois nascem os frutos e comem-nos os melros e os pássaros bravos; entretanto as folhas ficam vermelhas e uma de cada vez caem ao chão.
Se alguém assoma àquelas paredes com o desejo de pedir um milagre e há uma folha que cai nesse momento é sinal que de lá de cima terá uma resposta boa.
Tarkovsky passou lá em Novembro e precisava de fazer um pedido grande, mas as folhas já tinham caído todas e serviam de cama a duas ovelhas que dormiam.
Para quem já sabe o que é viver na cabeça de John Malkovich, afundar-se no cérebro em pânico (devido a bloqueio artístico) de um argumentista é mais seguro? Continua a ser inclassificável. Como em outros argumentos de Charlie Kaufman ("Queres Ser John Malkovich?" ou "Human Nature"), esta é a história de um grupo de seres a braços com a sua condição... humana. Temos não um, mas dois argumentistas, gémeos (Nicolas Cage) - um aflito, o outro seguro, ambos barrigudos e carecas -, uma jornalista obcecada por orquídeas (Meryl Streep) e crocodilos esfaimados. Spike Jonze, o realizador, lida com este carnaval com o mais selvagem dos realismos. V.C.
O cancioneiro musical de inspiração inesiana contaminado pelas novas possibilidades electroacústicas e recriado por quatro compositores portugueses contemporâneos. «Cousas de folgar e gentilezas» no Salão Nobre do Teatro São João. Um concerto mutante com dispositivo cénico de António Lagarto e som de Francisco Leal.
Inez + Eléctrica A decomposição do título escolhido para baptizar o concerto de formato músico-cénico que, durante 21 e 22 de Fevereiro, se instala no Salão Nobre do Teatro São João é a chave para decifrar as partes de que é feito o todo. A grafia antiga de “Inês” denuncia a componente de música portuguesa renascentista, e o prolongamento “eléctrica” dá conta da recriação dessas partituras pela mão das possibilidades tecnológicas dos dias que correm. O resultado é um original exercício de reanimação de sonoridades feito à custa de verdadeiros choques eléctricos.
Imagine-se uma guitarra eléctrica a improvisar sobre Canto Gregoriano ou a transcrever o som que, originalmente, sai de um alaúde e ter-se-á uma ideia aproximada da identidade sonora de InezEléctrica. O concerto vive da fusão e coabitação entre composições de música antiga fielmente interpretadas, e objectos sonoros criados a partir da intervenção da contemporânea mesa de som nas partituras originais dos cancioneiros dos séculos XVI e XVII. A possibilidade de identificar qualquer tipo de heresia está condicionada à partida. «Uma das características fascinantes da música antiga é que não é nada impositiva e permite uma grande liberdade de abordagens», esclarece João Henriques, comissário do projecto. E o que começa por prestar-se às experimentações mais improváveis, acaba por legitimar as assumidas transgressões e subversões. «A música antiga deixa tantas hipóteses de interpretação que podemos perfeitamente “brincar” com ela, tentando preservar aquilo que é a sua essência».
Justificado o conceito, importa desvendar o método. Primeiro passo: exaustiva incursão no arquivo das palavras e partituras com cinco séculos. O resultado trouxe pistas para duas possibilidades distintas que acabaram por ser exploradas em paralelo e transformar-se nas duas partes em que InezEléctrica se apresenta. A primeira convoca a ópera Inês de Castro, de Ruy Coelho (1927), com libreto feito das palavras da Castro, de António Ferreira – as mesmas que dias depois ocuparão a sala do Teatro São João na encenação de Ricardo Pais dos amores de Pedro e Inês –, para fio dramatúrgico condutor. Até aqui nada a salientar não fosse a opção de entrecortar a ópera com as cantigas, vilancetes e vilancicos dos cancioneiros recolhidos. Mais: subtraindo essas palavras ao contexto original para as colocar na voz das personagens. «Como tudo é lírica renascentista, as temáticas são de tal forma comuns que os textos que encontrámos podem perfeitamente ser ditos por qualquer uma das personagens», defende João Henriques. Um exercício de copy/paste sem costuras à vista, pode depreender-se.
Mas o trabalho arqueológico de pesquisa pôs também a descoberto vários cancioneiros que preservam a escrita, mas cuja música se perdeu pelo caminho de uma transmissão oral incapaz de lhe assegurar a sobrevivência. Fraquezas que acabariam por revelar-se forças. «Se a ideia é fazer um jogo entre a música antiga e as possibilidades tecnológicas actuais, nada melhor que convidar compositores contemporâneos a escrever música original para “reanimar” os textos da altura.» Desafiados, Fernando das Neves Lobo, Pedro Faria Gomes, Carlos Azevedo e Eurico Carrapatoso escreveram – em registos tão distintos que vai ser possível ouvir sonoridades próximas do jazz ou do fado – as composições inéditas encarregues de fechar o concerto. Pelo meio haverá um intervalo em que o bar do Salão Nobre estará aberto, sinal do carácter lúdico da iniciativa e, como defende João Henriques, da música em geral. «A função principal da música é ser entretenimento, sem nenhum tipo de pretensões. A música pura, tal como os maiores artistas a concebem e interpretam, é puro divertimento».
Cerca de cem mil livros, com descontos que podem atingir os 70%, estão a partir de sexta-feira à disposição na feira de livros em fim de edição na Gare do Oriente, no Parque das Nações até ao dia 9 de Março.
Esta feira alberga diversos géneros literários para todas as idades e dispõe de edições raras de diversas editoras portuguesas.
Em fim de edição, os livros têm preços baixos podendo sofrer descontos significantes.
A feira decorre entre as 10h00 e as 23h00 na Gare do Oriente, no Parque das Nações em Lisboa.
É um livro pequeno, editado pela & etc em 2001, que reune algumas Fábulas, “Três histórias animalistas”, “Páginas de um diário” e um episódio de “A Consciência de Zeno” (através do qual podemos ver como é difícil a vida de um fabulista).
Svevo viveu sem fama nem proveito e só começou a ser conhecido quando Eugenio Montale (aconselhado por James Joyce) elogiou a sua obra. Mas Svevo não estava talhado para a fama e, qual personagem das suas fábulas, morreu três anos após a sua “descoberta”, destruindo o que poderia ter sido uma bonita história de louvor e glória.
Gostei particularmente desta história:
Sem que de modo algum fosse culpa sua, um homem perdeu todos os seus haveres e ficou na mais cruel das indigências. De idade já bastante avançada, não tinha a menor esperança de algum dia voltar a levantar a cabeça. Todavia continuou vivo. Muitas vezes desejou morrer, mas apesar de tudo nunca o desespero foi suficiente para armar a mão contra si próprio.
Um dia, encontrou por acaso Herbert Spencer que lhe explicou porque é que o seu infortúnio era consequência evidente da incapacidade própria, e por que razão não merecia compaixão nem ajuda, pois esta, a ser-lhe dada, teria corrompido a lei social, que exige a eliminação do vencido.
Então, à laia de conclusão, o pobre homem matou-se imediatamente.
Trieste, Dezembro de 1897
O livro foi traduzido por Célia Henriques e a capa e os desenhos (muito bons e tão acutilantes como as histórias) são de André Ruivo.
Infelizmente as Fábulas não devem ser fáceis de encontrar nas livrarias. O autor é pouco conhecido, a editora é pequena e um livro editado em 2001 com estas características está condenado a apodrecer num armazém. Eu salvei este exemplar...
Teatro Nacional de São João lança publicação mensal
O Teatro Nacional de São João (TNSJ), no Porto, lançou uma nova publicação mensal. O primeiro número do jornal "Duas colunas" destaca, entre outros assuntos, o regresso de Ricardo Pais à instituição.
Em entrevista, Ricardo Pais defende que "um teatro nacional tem de ser crítico e implacável" e aponta dois dos principais objectivos do seu mandato à frente do TNSJ: a criação de uma academia informal de novos encenadores e o desenvolvimento de um fórum de críticos de teatro."Exportar pequenos grupos regulares de bolseiros para a aprendizagem do teatro e da formação teatral no estrangeiro" é uma das propostas de Ricardo Pais.O desenvolvimento de um fórum de críticos de teatro, que será publicado como suplemento do jornal "Duas Colunas" e que se chamará "Inteligência artificial", visa, segundo o director do TNSJ, "suprir o esvaziamento crítico e o analfabetismo teatral para que estamos a deslizar".No primeiro editorial do "Duas Colunas", o coordenador da publicação, José Luís Ferreira, explica que o conteúdo do jornal assenta no princípio da comunicação com os públicos. "A ideia de tornar transparente o fluxo contínuo de notícias geradas na casa do teatro anima-nos essencialmente pelo que nos permite em aprofundamento do nosso próprio trabalho".A publicação desenvolve ainda outros assuntos, como os ensinamentos do encenador Eimuntas Nekrosius, a génese da edição cénica da obra "Castro" e o renascimento do Auditório Nacional Carlos Alberto.Com uma tiragem de dez mil exemplares, o "Duas Colunas" será distribuído gratuitamente.
Câmara de Lisboa Garante Centro de Artes Aos Artistas Unidos
A Câmara Municipal de Lisboa (CML) garantiu aos Artistas Unidos (AU) que o Centro das Artes A Capital iria avançar. E propôs à companhia que apresentasse as suas produções no Teatro Taborda, enquanto as obras de recuperação daquele espaço não estivessem concluídas. Ontem, em comunicado, a CML disse que o arquitecto Pedro Maurício Borges (prémio Secil de Arquitectura) será o responsável pela reconversão d' A Capital num espaço polivalente, e que Silva Melo apresentará um programa artístico até final de Março, que, acrescentam, será discutido com a vereação da Cultura da autarquia "e outras personalidades e entidades representativas do meio artístico".
As obras n' A Capital, de onde os AU e outras produtoras foram despejados em Agosto, vão arrancar brevemente. O acordo surge depois das garantias dadas pelo presidente da CML, Pedro Santana Lopes, de que o projecto ia avançar, e de uma reunião, que decorreu na segunda-feira, entre as vereadoras da Cultura, Maria Manuel Pinto Barbosa, e da Reabilitação Urbana, Eduarda Napoleão, com Silva Melo e Pedro Maurício Borges. O encenador, que ficou "muito satisfeito" com a "atmosfera de relançamento" do projecto, está no entanto a estudar a hipótese do Taborda. "Não sabemos se temos orçamento para aguentar uma temporada com novas produções. Fiquei de apresentar um plano na segunda-feira", disse.
Não acredito que o Pedro Santana Lopes seja tão “distraído” que deixe ir por água abaixo um projecto com a energia dos Artistas Unidos. Foi buscar um bom arquitecto (a arquitectura sempre agradou aos governantes) e que melhor prémio depois de um prémio senão desenhar? Óptimo, o Jorge Silva Melo parece que também gosta, o único entrave que vejo é a lentidão portuguesa, noutro sítio o assunto estaria arrumado, aqui ainda há pano para mangas e até pode voltar tudo ao ponto zero.
Enquanto isso, esfrego as mãos à espera de BAAL
A primeira peça longa de Bertolt Brecht é a história da vida de um poeta e cantor bêbedo, rude e mulherengo. Com o seu amigo músico, Ekart, Baal deambula por toda parte bebendo e lutando. Engravidada por ele, Sophie segue-o e acaba por se afogar. Baal seduz ainda a amante de Ekart que acaba por assassinar. Perseguido pela polícia, morrerá sozinho numa floresta. Apesar de ser um retrato anti-heróico, não há dúvida de que muito da imagem romântica do poeta-fora-da-lei se aplica a este Baal cuja linguagem descende directamente de Rimbaud e Villon.
BAAL aparece como resposta a O SOLITÁRIO de Hans Johst, onde se relata a história do poeta alemão Grabbe dando-lhe um significado expressionista contra o qual Brecht se quis insurgir. Inspirando-se na vida do poeta francês, escritor medieval de baladas, François Villon, Brecht pretende em Baal mostrar a natureza elementar do indivíduo que se alimenta do prazer e não pensa sequer em pagar as despesas da vida burguesa. Mas ao longo da escrita, Brecht encontra também Verlaine, Rimbaud e Büchner. Com Baal, Brecht revolta-se contra o pathos expressionista, contra os artistas endeusados, contra o tradicional conflito, por ele repudiado, entre a vida e a arte. Brecht procurava o escândalo e encontrou-o. Pouco depois da estreia, o presidente da câmara de Leipzig proibiu a continuação da carreira da peça.
Em Portugal foi estreada no Teatro da Trindade numa versão de José Fanha e João Lourenço e encenação de João Lourenço com Mário Viegas, João Perry, Virgílio Castelo e Irene Cruz nos protagonistas.
Perdoem-nos a expressão e as palavras atabalhoadas que se seguem mas os nossos vizinhos blogianos são tão amáveis que não conseguimos escapar a estas emoções. Obrigado pelos elogios (piscadela à direita e, já agora, as melhoras do senhor Providêncio Canhoto – e piscadela à esquerda), vamos continuar a fazer por merecê-los.
Aproveitamos a maré intimista e, uma vez que ainda não apresentamos as nossas intenções, definições, regras etc. e tal, vamos girar o espelho ligeiramente para nós.
Este projecto surgiu subitamente no dia 2 de Fevereiro, criou-se uma pequena equipa e decidimos que o melhor era ir fazendo e inventando (um work in progress blogiano). Nas nossas conversas “e-mailianas” (somos do Porto e de Lisboa e nem sequer nos conhecemos todos pessoalmente) ficou mais ou menos determinado que a janela seria uma espécie de corredor onde afixamos noticias e comentários sobre os filmes, os livros, os discos, os quadros, as fotografias, que gostamos. Diz a Ana que parece um jornal de parede e tem razão, eu acrescentei que o blog deveria ter uma personalidade colectiva (apesar de não saber como é que isso se faz).
Paralelamente gostariamos de enredar este blog noutros, locais mais sossegados e temáticos. Para já, criamos a nossa sala de esposições temporárias boogie woogie onde abusamos de fotografias.
Vamos tentar tornar a janela mais interactiva, não sabemos ainda como, mas se alguém quiser dizer alguma coisa, tem o mail, aceitamos sugestões, elogios e porque não? Estamos tão bem dispostos que sim, também aceitamos críticas negativas.
A Janela Indiscreta somos nós: Ana Alves, António Rebelo, Cristina Fernandes, Lídia Pereira e Luís Rei.
Agora reparo que podemos ser aqueles cinco lá em cima à esquerda, só nos falta o cão!
quarta-feira, fevereiro 19, 2003
A Egoísta colecciona prémios!
A Society of Publication Designers (SPD) distinguiu a revista portuguesa «Egoísta» com três prémios. Entre 7500 concorrentes, a «Egoísta» recebeu a Medalha de Prata Design, para a edição de Março do ano passado, a medalha de Mérito Design, referente à edição de Setembro de 2002, e a Medalha de Mérito Ilustração, que distingiu «Um Homem em Três Andamentos», da autoria de Rodrigo Saias.
Os vencedores de 2002 nas categorias em que a «Egoísta» foi este ano premiada foram publicações de renome: «Esquire», «Rolling Stone», «New York Times Magazine» e jornal «The Guardian».
As páginas distinguidas na revista portuguesa serão incluídas num livro e exibidas em Nova Iorque, onde também se realiza a entrega dos prémios, em 16 de Maio.
A "Egoísta" já tinha vencido três prémios internacionais atribuídos, pela APEX – Association for Publication Excellence – uma organização norte-americana que distingue, anualmente, as melhores revistas do Mundo. Conquistou, ainda, o Prémio Inovação de "O Primeiro de Janeiro".
A revista lançará, no próximo dia 27, uma edição especial, no qual se propõe reflectir sobre Portugal. Pensar o futuro para o País que somos, à luz do conhecimento, sensibilidade e cultura de um conjunto de notáveis.
Estou desconfiada. O filme já foi anunciado tantas vezes na rtp2 e nunca passou...O ano passado Serralves chegou a agendá-lo mas também desapareceu misteriosamente do ciclo...
Esperemos que seja desta!
The Mirror for me is in general the most complicated of my films — as a structure, not as a fragment considered separately but precisely as a construction; its dramaturgy is extraordinarily complex, convoluted. Andrei Tarkovsky
Ora aqui está um Ministério da Cultura interessante que luta pelo bem estar emocional do público e dá bons conselhos aos artistas: as paixões devem ser à vez. Claro que sim, têm razão!
Da China com amor
O novo filme protagonizado pela estrela do cinema chinês Gong Li, que estreou na China, está a dar que falar no país, pelas cenas de amor mais ousadas, que desta vez foram autorizadas.
"Zhou Yu´s train" ("O comboio de Zhou Yu") é um filme sobre o amor, fala da paixão de uma mulher (Gong Li) por dois homens, com cenas envolventes a que o público chinês não está habituado a ver em filmes com o aval do Ministério da Cultura. "Antes, qualquer filme de amor, bastava que tivesse uma cena em que os corpos se tocassem que se achava impróprio, e por isso as cenas eram cortadas. Não acho correcto. O amor é uma coisa saudável," defendeu a actriz Gong Li.
A censura considerou um atentado à moral a versão original, na qual Zhou Yu (Gong Li) se apaixona por dois homens ao mesmo tempo, de forma que o guião teve de ser modificado de modo a que a protagonista tivesse um de cada vez...
A Associação Abril em Maio organiza este mês um ciclo de cinema, intitulado Secretos de Porco Preto dedicado ao cinema de animação e à banda desenhada.
Dia 10 exibem “Crumb” de Terry Zwigoff (apresentado por Marcos Farrajota), dia 17 uma série de curtas e médias metragens dos primórdios da animação por Winsor McCay, irmãos Fishinger entre outros (com apresentação por João Paulo Paiva Boléo), dia 24 curtas experimentais de animação por Norman McLaren, Hans Richter, Len Lye entre outros (comentado por Fernando Galrito), e por fim, a 3 de Março, vários filmes de Nick Park, Caroline Leaf, Paul Driessen entre outros na pespectiva do cinema de animação entre os anos 70 e 90 (comentado por Nuno Beato).
Sempre às 22h no Regueirão dos Anjos, Lisboa.
Hoje às 20h00: O Perfil de um Autor Susana Valente
Arvo Pärt
Sinfonia Nº2 * Orq. Filarmonia. Dir. Neeme Järvi 14'37"
"Tabula rasa", Concerto p/ dois violinos, piano preparado e orquestra de cordas * Adele Anthony e Gil Shaham (vl). Erik Risberg (pn). Orq. Sinf. de Gotemburgo. Dir. Neeme Järvi 23'07"
"Festina Lente" p/ harpa e orquestra de cordas * Orq. Filarmonia. Dir. Neeme Järvi 05'44"
"Summa" p/ cordas * Orq. Filarmonia. Dir. Neeme Järvi 04'14"
As cerca de 200 fotografias que compõem a edição 2002 da World Press Photo vão estar expostas entre 1 e 23 de Março no Forum da Maia.
Esta exposição itinerante, única no género, resulta de um concurso anual de fotojornalismo e é subordinada a temas de interesse mundial.
A World Press Photo surgiu como uma chamada de atenção através da publicação de inúmeras fotos sugestivas de assuntos internacionalmente controversos quer a nível político-económico quer sócio-cultural.
A exposição mostra o que de melhor se produz na área do fotojornalismo.
Catarina Furtado, Samuel Colt, Serenela Andrade, Isabel Angelino, Manuel Luís Goucha, Teresa Guilherme, Jorge Gabriel, Eládio Clímax, Jack Nicholson e até mesmo Karl Marx juntaram-se para demonstrar que o riso é a prova inequívoca que a felicidade existe, está atrás de uma câmara e pode ser vendida com muito lucro.
Desconhecido nesta Morada, de Kathrine Kressmann Taylor é um livro impressionante.
A história é extremamente simples: Max Eisenstein (judeu americano) e Martin Schulse (alemão) são amigos e sócios de uma Galeria de arte em San Francisco. Em 1932, Schulse resolve voltar para a Alemanha. Os amigos começam então a trocar cartas e é através delas que vamos encontrar uma Alemanha pós-guerra, pobre e envergonhada; o surgimento de um homem electrizante, forte como só um grande orador e um fanático o podem ser; e o ódio aos judeus – Nunca tive ódio a nenhum judeu individualmente, a começar por ti que sempre estimei como amigo, mas podes crer que é com toda a franqueza que te digo que gostava de ti não devido à tua raça, mas apesar dela escreve Schulse a Eisenstein. E tudo começa a esboroar-se.
Está a criar-se uma nova Alemanha aqui. Em breve mostraremos grandes coisas ao mundo sob a direcção do nosso Glorioso Chefe.
O mais doloroso é que neste livro não há SS façanhudos e histéricos, são apenas dois homens vulgares que conseguem passar da amizade ao ódio mostrando o lado mais escuro da humanidade.
Aguarelas de Turner no Museu Gulbenkian a partir de quinta-feira
Um conjunto de 70 aguarelas, algumas gravuras e duas pinturas integram a exposição "O Mar e a Luz - Aguarelas de Turner na Colecção da Tate" que vai estar patente ao público no Museu Gulbenkian a partir de quinta-feira.
Concebida por Ian Warrel, conservador do Departamento de Aguarelas da Tate Britain, a exposição - organizada pela Tate e pelo Museu Calouste Gulbenkian - vai estar patente na Galeria de Exposições Temporárias do Museu até 18 de Maio.
A mostra esteve, num formato ligeiramente diferente, no ano passado no Baltimore Museum of Art, nos Estados Unidos, e no mês de Janeiro na Fundação Juan March, em Madrid.
A Colecção Calouste Gulbenkian possui já quatro obras executadas pelo pintor, entre as quais se destaca o célebre "Naufrágio de um Cargueiro (1810) e uma aguarela sobre papel "Plymouth com Arco-Íris" e "Quillebeuf, Foz do Sena".
Estas obras do paisagista inglês já existentes na Colecção Calouste Gulbenkian serão incluídas na exposição a inaugurar quinta- feira.
Joseph Mallord William Turner (1775-1851) pintou aguarelas, desenhos e quadros a óleo. Mestre da pintura paisagística inglesa do século XIX, Turner dava primazia aos efeitos da luz natural nos seus trabalhos e tornou-se um percursor do impressionismo.
Entre as suas obras destacam-se, entre outras, "Tempestade de Neve (1842), "Chuva, Vapor e Velocidade" (1844), e "Chegada a Veneza" (1844).
A revista The New Yorker tem sido muito falada nos últimos tempos, por inspirar excessivamente quem a lê. É o que acontece quando se produz uma das melhores publicações do planeta, onde só entra a crème de la crème, tanto ao nível dos repórteres, como dos críticos, dos ensaístas ou, sobretudo, dos ilustradores. Ilustrar para The New Yorker significa, pois, um reconhecimento absoluto de qualidade, uma espécie de entrada no Panteão. O senhor de que hoje aqui se fala, Jean-Jacques Sempé de sua graça, faz parte dos eleitos. Ao longo da sua vida, assinou 72 capas para a revista americana e o seu traço é já uma marca subtil no nosso imaginário.
Infelizmente, a sua obra não conhece entre nós a divulgação que merecia. Em tempos, algum do seu trabalho foi dado à estampa pela editora D. Quixote, mas o final da sua colecção de BD humorística e cartoon conduziu ao eclipse de Sempé das nossas livrarias. Até agora. Numa iniciativa de que não é de mais realçar o mérito, a Asa lançou recentemente um álbum luxuoso, intitulado O Mundo de Sempé. Ainda que ele não possa ser considerado um bom resumo _ nem sequer uma amostra significativa _ da vasta obra do desenhador francês, é pelo menos um excelente exemplo da originalidade do seu traço e da profundidade e sofisticação do seu humor.
Nascido em Bordéus a 17 de Agosto de 1932, Sempé não possui nenhuma formação específica na área do desenho, mas as suas vivências de juventude, enquanto distribuidor de vinho ou soldado, foram suficientemente pitorescas para lhe apurar o humor. Colocando sempre o exercíco visual à frente do empenho laboral, Jean-Jacques acabaria por perceber que a sua vida estava condenada a ser gasta no meio do papel e da tinta e, com apenas 19 anos, largava os seus empregos sazonais para se dedicar apenas ao desenho. Os seus primeiros trabalhos foram publicados em 1951.
A primeira obra a atingir o grande público surgiria em 1954, graças à colaboração de René Goscinny, que convenceu Sempé a criar uma personagem. Assim nasceria Le Petit Nicolas, série que ainda se mantém fresca e popular. Com o correr dos anos, Sempé foi dedicando mais tempo à ilustração e ao cartoon, colaborando regularmente com o L'Express e com a Paris-Match.
Como explicar o extraordinário acolhimento do seu trabalho? Provavelmente, pela procura permanente da simplicidade. Embora o seu traço pareça fácil, e esteja muitas vezes à beira do esquisso, a verdade é que Sempé é capaz de desenhar 30 vezes a mesma imagem até encontrar o seu equilíbrio perfeito. Depois, o seu humor é extremamente subtil _ não há piadas fáceis, não há fórmulas recorrentes. O que existe é uma atenção permanente ao mundo, nas suas alegrias, nas suas tristezas e, sobretudo, num estado intermédio de melancolia, onde Sempé ergueu quase toda a sua obra.
O Fantasporto, festival de cinema cujo corpo vive ancorado no imaginário fantástico, é um espelho real do país: a edição de 2003 sofreu um corte orçamental de 40%. Hoje inaugura-se a semana de pré-abertura, no Teatro Rivoli, preparando terreno para a gala oficial da próxima sexta-feira.
Apesar de iludido um contexto que é nacional, o cenário em Novembro passado era sombrio – o Fantasporto atravessou uma das suas maiores crises em 23 anos, e a direcção chegou a ponderar a possibilidade de desistir, revelou Mário Dorminsky em entrevista ao JN. As réplicas podem, no entanto, ditar alterações futuras: uma parceria com Lisboa é um cenário a ponderar.
Mas, se a crise económica é concreta, o alcance artístico do festival reflecte esse rombo? Mário Dorminsky, director do certame, enfrenta o contexto: "Fomos obrigados a imaginar outras soluções". E, quase admitindo que foi a crise a espoletar no Fantas um clima de maior engenho programático, fixa a ideia: "A edição deste ano é mais atractiva. Para o público e para a crítica".
Não houve discriminação Com um orçamento global de 70 mil contos, o Fantasporto viu a Câmara da cidade reduzir o apoio anual de 8 mil contos para cinco mil. "Não houve discriminação. A contracção sente-se a todos os níveis", disse ao JN Marcelo Mendes Pinto, vereador com o pelouro da Cultura. "Não nos podemos endividar pelo Fantas, que sofreu uma redução de apenas 35% – o ano passado, os cortes foram de 60%", avisa. E conclui: "Entendemos que é um festival fundamental; promove a imagem do Porto no país e internacionalmente".
Dorminsky discorda do corte, mas concorda na projecção: "O Fantas nunca sairá do Porto; pertence à cidade".
Regresso ao fantástico? Eternamente conotado com o cinema fantástico – e toda a imagética popular de sangue e tripas –, o Fantasporto é, no entanto, mais sólido do que essa definição redutora.
O contexto deste ano apresenta a 13.ª Semana dos Realizadores (espaço de filmografias de autor), uma retrospectiva de novo cinema austríaco, um panorama de cinema português e a Secção Oficial Premiére (zona de antestreias comerciais, onde se inscreve "Solaris", de Steven Soderbergh).
Curiosamente, e apesar de, no passado recente, a direcção do festival ter encetado diversas tentativas de desapego em relação a esse imaginário monstruoso, o Fantasporto 2003 parece robustecer a sua linha original. "O chamado cinema fantástico está a dominar 60% da actual produção comercial das salas. Essa é a tendência", revela Mário Dorminsky, admitindo que o festival dá espelho daquilo que a indústria fabrica. "Mas temos muitos mais cinema do que aquele do sangue e do medo", avisa.
A clássica réplica dos empregados de café ao educado “Queria um café, por favor.” (um café ou outra coisa qualquer) - “Mas por que é que as pessoas dizem Queria em vez de Quero?!” - não é afinal uma piada, mas uma legítima interrogação.
O diálogo seguinte aconteceu ao balcão de um restaurante em Lisboa, no passado sábado, cerca das 20 horas:
Empregado: Boa noite! Então o que é que vai ser?
Cliente: Boa noite! Queria um Ventil Lights, se faz favor.
E: (abana a cabeça em sentido negativo)
C: Que outros lights tem?
E:Português Suave...
C: Pode ser.
O tabaco é trocado por uma nota de 5 euros e, no acto de devolução do troco, hélas!:
E: Por que será que as pessoas dizem Queria em vez de Quero?! (A cliente era eu; a imagem do super herói do Programa da Maria [Rueff] que salvava clientes oprimidos pelas piadas estúpidas dos empregados de café atravessa-me o espírito em voo justiceiro, enquanto encolho os ombros e esboço um sorriso tímido; o empregado continua:) É que Queria não serve... quer dizer... Cria, Criar é uma coisa, Querer é outra...! (Compreendi!)
Ponto n.º 1: Este homem não estava a gozar.
Ponto n.º 2: Rebobine-se a conversa, agora na perspectiva deste homem:
E: Boa noite! Então o que é que vai ser?
C: Boa noite! Cria um Ventil Lights, se faz favor.
E: (abana a cabeça em sentido negativo)
C: Que outros lights tem?
E: Português Suave...
C: Pode ser.
E: Por que será que as pessoas dizem Cria em vez de Quero?! É que Cria não serve... quer dizer... Cria, Criar é uma coisa, Querer é outra...!
Afinal, os verdadeiros oprimidos eram os empregados de café, perplexos com o facto de lhes ser exigida a criação das mais variadas coisas, de bolos a cafés, passando por maços de tabaco, copos de vinho, pastéis de bacalhau e ginjinhas, enquanto, insolentemente, eram tratados por tu. Tudo por causa da má dicção.
São felizes? É esta a pergunta que os autores deste documentário, o antropologista e cineasta Jean Rouch e o sociologista e crítico de cinema Edgar Morin, formularam a várias pessoas no decurso do Verão de 60, em Paris.
Neste jogo de perguntas e respostas, vamos saber como viviam, o que pensavam ou o que esperavam da vida, trabalhadores, estudantes e artistas.
"Chronique d´un été" obteve o prémio internacional da crítica no Festival de Cannes em 1961.
Andava ansiosa por deitar as mãos ao livro Franny e Zooey. Dizia há algumas semanas atrás Mário Santos (no Mil |Folhas) que “é só um dos melhores livros publicados no ano passado em Portugal”, e é mesmo, lêem-se num ápice e com imenso prazer as histórias daqueles “bichos esquisitos”.
O livro foi editado em 1961 e reune um conto e uma novela publicados na revista New Yorker: Franny em 1955 e Zooey, em 1957.
Há três personagens presentes (mais um autor que se revela de vez em quando, dois irmãos que se insinuam constantemente e um namorado que vou esquecer): Bessie, a mãe gorducha, Franny, a mais nova dos Glass, uma jovem lânguida e sofisticada que atravessa uma crise mística e Zooey, o irmão, jovem actor que, com apenas dez anos, leu The Great Gatsby (em vez do Tom Sawer) e tenta livrar Franny de cair numa beatice sem cura...
A reacção aos livros de Salinger não era muito boa. Norman Mailer acusava-o de ter “a sabedoria de escolher temas fáceis” e Steiner liquidou o seu valor num texto demolidor (The Salinger Industry): Salinger lisonjeia a ignorância e a falta de profundidade moral dos seus jovens leitores…
Eu gostei muito e citando Seymour que cita Chuang-tzu: “É preciso ter cuidado quando os ditos homens sábios se aproximam a coxear”.
O 78º aniversário de Carlos Paredes, que deu uma nova “alma” à guitarra portuguesa, começa a ser comemorado domingo, homenagem que se prolongará pelo ano de 2003. No dia do seu aniversário, realiza-se um espectáculo na primeira escola frequentada pelo músico.
O ano de homenagem a Carlos Paredes tem início com um espectáculo no Jardim-escola João de Deus, em Coimbra, no qual marcarão presença diversas individualidades, como Maria João e Mário Laginha.
A associação Movimentos Perpétuos pretende promover uma série de actividades culturais, que passarão por espectáculos de música, cinema, exposições, edição de livros e catálogos e lançamento de um CD duplo e DVD. Além destas iniciativas, a associação pretende criar e manter um “site” dedicado ao músico.
O CD duplo será uma homenagem a Carlos Paredes e conterá uma reunião de inéditos de vários artistas e correntes de música portugueses.
O DVD, ainda não confirmado, terá imagens do espectáculo “Carlos Paredes – Uma Guitarra Portuguesa”, que teve lugar no Teatro São Luiz, em 1992.
A associação prepara igualmente a edição de um álbum de BD alusivo ao músico português, da autoria de Adolfo Luxúria Canibal, vocalista do grupo Mão Morta, e de Manuel Cruz, dos Ornatos Violetas.
No âmbito dos livros, também se aguarda o lançamento de uma compilação de textos de diversas personalidades, como José Saramago, Jacinto Lucas Pires ou Manuel Alegre. Os textos reflectem o papel e a importância do mestre da guitarra portuguesa.
Para além dos livros, CD e DVD, é esperada, em Outubro, a inauguração de uma exposição colectiva de 78 artistas ligados às áreas da pintura, fotografia, escultura, música, vídeo, literatura, entre outras.
Segundo a associação, o objectivo desta homenagem é “tornar acessível toda a obra de Carlos Paredes”.
Uma vida dedicada à guitarra portuguesa
Carlos Paredes nasceu a 16 de Fevereiro de 1925, em Coimbra. Filho do célebre guitarrista Artur Paredes, cedo se dedica à arte de tocar guitarra portuguesa.
Já em Lisboa, Carlos Paredes conclui a instrução primária e o liceu, acabando por ingressar no Instituto Superior Técnico.
Em 1957, grava o seu primeiro disco. É a partir desta data que Carlos Paredes se lança no mundo da música a nível nacional, distinguindo-se pela mistura da música da câmara da Renascença e pelo fado de Coimbra.
Com um estilo muito próprio, Carlos Paredes vai conquistando terreno, não só no lançamento de álbuns, como na composição de temas musicais para diversos filmes, como “Verdes Anos”, de Paulo Rocha. Mais recentemente, trabalhou com Manoel de Oliveira e José Fonseca e Costa, bem como com o Grupo de Teatro de Campolide e Teatro Nacional D. Maria II.
Poderei,
com esta harpa de cordas tensas, com as pérolas
deste colar de sons e mágoa,
tocar o teu ouvido ou a tua alma,
poderei chegar sem que o vento me anuncie,
mais perto dessa cama que nunca foi o céu ou a
terra ou o mar e onde,
impiedosa,
não se abrisse a tempestade?
É talvez uma asa, um ser aflito,
aquilo que chega ao alpendre e em veloz sombra
inicia a sua viagem,
de norte para sul, para a brisa que arrefece a
cal,
quando em silenciosa migração as tuas aves
partem para sempre
e é mais triste o promontório com o farol que
já não acendes.
“Já me tem sucedido fazer as pessoas chorar enquanto eu toco... E eu não compreendia isto, mas depois percebi que é a sonoridade da guitarra, mais do que a música que se toca ou como se toca, que emociona as pessoas." Como ele está errado, e ainda está errado quando diz que é criador de "pequena música", mas ele pode dizer o que quiser (a sua modéstia é tão grande como a sua genialidade) porque a música que faz o contradiz.
Um título como "Baladas Hebraicas" situa-nos desde logo no cerne desta obra tão especial, escrita a partir de figuras e episódios provenientes do Antigo Testamento, desde Adão e Eva a Saul ou David, passando por Abel e Caim, Abraão e Isaac, Jacob, Esaú, Moisés, etc.
Apesar da importância que na primeira metade do século XX assumiram os movimentos literários e as correntes estéticas organizadas em grupos, houve certos autores que se afirmaram para lá dessa lógica, parecendo difíceis de enquadrar claramente em tais tendências colectivas - com as quais partilharam certamente a sensibilidade de uma época, o seu "Zeitgeist", mas que tendem a permanecer como figuras únicas e inclassificáveis.
Foi esse o caso de Else Lasker-Schüler, autora próxima do expressionismo alemão, mas cuja voz rapidamente se singularizou através de um universo muito próprio, assente num núcleo de obsessões pessoais ou de mitos cuja intensidade soube aprofundar e em torno dos quais gravitou a sua escrita. Nascida em 1869 na Renânia, de família judaica integrada na cultura alemã, companheira da boémia literária de Berlim dos princípios do século XX, Else Lasker-Schüler sublinhou desde sempre a sua diferença em relação aos que a rodeavam: "Nunca pude ser comparada a outras pessoas (...) porque a minha fronte era o céu da noite" (p. 10).
Talvez por causa dessa diferença radical, a sua biografia, embora interessante, acaba por ser menos reveladora que a sua obra: podem mencionar-se, em todo o caso, os primeiros poemas em 1899, a participação na revista "Der Sturm", dois casamentos desfeitos, a fuga para a Suíça em 1933 (ano em que Hitler chega ao poder) e os últimos anos vividos na Palestina em condições miseráveis, até morrer em 1945. Para conhecermos estas e outras particularidades de Else Lasker-Schüler, nada melhor do que percorrer o excelente texto com que João Barrento nos apresenta um retrato do "cisne negro de Israel" e da sua escrita, servindo de abertura a estas "Baladas Hebraicas", que pela primeira vez surgem na nossa língua.
Deve dizer-se, aliás, que estamos perante um livro magnífico também como objecto, enriquecido com fotos da autora e sobretudo com a reprodução fac-similada do belíssimo manuscrito original, com os poemas escritos a roxo pelo punho da autora, dedicados à sua amiga Lucie von Golschmidt-Rotschild por ocasião do seu noivado e assinados por "Jussuf, Príncipe de Tebas" (uma identidade literária de Else Lasker-Schüler). Como o número total de poemas é de 22, os 17 que fazem parte desse precioso manuscrito aparecem também a roxo nesta edição.
Um título como "Baladas Hebraicas" situa-nos desde logo no cerne desta obra tão especial, escrita a partir de figuras e episódios provenientes do Antigo Testamento, desde Adão e Eva a Saul ou David, passando por Abel e Caim, Abraão e Isaac, Jacob, Esaú, Moisés, etc. Toda esta temática judaica serve aqui sobretudo como ponto de partida para um fôlego expressivo mais amplo, já que, como observa João Barrento, "o judaísmo é mais pretexto e pré-texto para estilizações e transfigurações poéticas" (p. 10). Apesar deste alargamento de horizontes (ou até por causa dele e do seu alcance humano universal), o destino específico do povo judeu surge claramente enunciado em alguns poemas - por exemplo, "O Meu Povo" (p. 47), "Moisés e Josué" (p. 65), que evoca a "esperança" dos "povos de Israel", ou ainda o texto dedicado a David e Jónatas, aludindo directamente ao Velho Testamento: "Na Bíblia estamos escritos / Num abraço de cores vivas" (p. 69).
Sempre sob a égide das histórias bíblicas, os principais veios que percorrem estes poemas correspondem, assim, a dois grandes domínios - o do amor e o da relação com Deus. Quanto ao primeiro, Else Lasker-Schüler não hesita em decliná-lo aqui numa dimensão nitidamente erótica, aliás subjacente a alguns episódios e personagens bíblicos, destacando-se, por exemplo, a vibrante sensualidade atribuída a Eva - "Tu tremes de amor (...) / ... E não entendes esses gemidos no teu sonho" (p. 89) - ou à Sulamita do "Cântico dos Cânticos": "Ah, aprendi na tua doce boca / A conhecer a felicidade, tanta! / Sinto já os lábios de Gabriel / A queimar-me o coração..." (p. 85).
Finalmente, é também a força do amor a mover este livro sempre que se trata do apelo de Deus ou do diálogo com a divindade: "Sempre me esforcei por escavar não em busca de ouro, mas em busca de Deus", escreveria Else Lasker-Schüler num texto de 1932 (p. 14). E é desta procura permanente que as "Baladas Hebraicas" também se fazem eco, por exemplo quando Deus é explicitamente invocado num poema: "Deus, onde estás? // Queria ouvir de perto o teu coração, / Trocar contigo, para ter o longe à mão, / No dia em que no teu reino de luz / Sagrada, em ouro transfiguradas, / Todas as boas e más fontes correrão" (p. 87). Naquele que é talvez o mais belo texto de todo o livro ("Reconciliação"), a presença de Deus acaba por confluir para uma atitude amorosa de dádiva total, para um misticismo em que a componente erótica se alia à noção do sagrado, como se Deus apenas se fizesse sentir através de uma harmonia universal simbolizada pelo amor humano:
"Será noite de reconciliação - / Há tanto Deus a derramar-se em nós. // Crianças são os nossos corações, / Anseiam pela paz, doces-cansados. // E os nossos lábios desejam beijar-se - / Por que hesitas? // Não faz o meu coração fronteira com o teu? / O teu sangue não pára de dar cor às minhas faces. // Será noite de reconciliação, / Se nos dermos, a morte não virá. // Há-de uma grande estrela cair no meu colo" (p. 45).
Baladas Hebraicas
Autor: Else Lasker-Schüler
Tradução e apresentação: João Barrento
Editor: Assírio & Alvim
104 págs