sexta-feira, fevereiro 21, 2003
Estou a meter-me em maus caminhos (demasiado longos para blogs), é que falar de Tonino Guerra implica falar com ele, ir a Pennabilli...
A Academia de Cinema Europeu entregou-lhe agora o prémio para o conjunto da obra. Apenas natural para quem escreveu tantas obras-primas para outros filmarem. Dias antes do prémio, Tolentino de Mendonça visitou à casa italiana de Tonino Guerra. Conversa entre dois poetas. Tem 82 anos, o poeta que escrevia argumentos para os filmes de Antonioni, Fellini e Tarkovski. Reparte hoje as estações entre o seu apartamento de Moscovo e a casa, em Pennabilli, nas montanhas onde a paisagem italiana é uma perfeição carregada de silêncio. De Rimini há um autocarro (um autocarro de província) que parte para lá, passando por lugares que, dos livros de Tonino Guerra, se reconhecem facilmente: San Leo, Santa Ágata, Marecchia... Depois, o autocarro pára junto a uma praça. A porta de casa dele não fica longe.
PÚBLICO - Há dias, ao telefone, falava da necessidade de redescobrir a pobreza... Tonino Guerra - Devo dizer que em muitos momentos me refugio na memória desses dias em que as estradas eram feitas de pó, e os cavalos eram ainda utilizados para se chegar aos lugares, e a neve estava repousada nas soleiras, e se comia o que havia (que era quase nada e nos parecia bastante). Tenho a impressão que o consumismo nos conduz a grandes perdas, ao mesmo tempo que nos sufoca de objectos. Para mim, refugiar-me no passado significa reencontrar os prazeres da pobreza. A pobreza ajuda à fantasia. Na pobreza vive-se sob uma chuva de desejos suspensos.
P. - Mas este seu discurso comporta um preço de solidão face à maneira como o mundo se organiza. R. - A mim não me interessa nada como o mundo se organiza: interessa-me o modo como me estou organizando. Páro a escutar que chove; ofereço o olhar a cada entardecer e sou feliz, como ontem fui, ao aprender que as flores da cerejeira alcançam o máximo da sua brancura um instante antes de cair e morrer.
P. - Para si a Arte é o quê? R. - Não sei o que é a Arte. A Arte é uma coisa que nos faz companhia, uma coisa pobre que nos enriquece, embora se saiba que o mistério nunca é iluminado completamente.
P. - O Tonino Guerra argumentista, novelista, pintor, poeta, construtor de jardins, artesão de mobiliário... que se considera afinal? R. - Sou um poeta. Um fulano qualquer que caminha ligeiramente levantado da terra e que, de vez em quando, cai, estatelando os tacões e enchendo-se de infelicidade.
P. - Se lhe pedisse para falar da poesia... R. - A poesia é, sem dúvida, um caminho. Uma espécie de chamamento a ir mais longe para encontrar a proximidade escondida.
P. - A poesia escrita por outros também lhe faz companhia? R. - Estou sempre no encalço de Dante, Francisco de Assis, Pu_kin, até aos últimos (e refiro-me apenas aos italianos), Montale, Ungaretti... E de alguns camponeses que não escreveram nada, mas deixaram, no mundo, um pouco da sua alma.
P. - Para quem o lê, soa muito natural essa referência a um mundo campesino, quase em desaparecimento. R. - Estou muito ligado a essa outra civilização, o que não quer dizer que não tenha consciência de que a atmosfera presente, tão carregada de ciência, não produza ainda, e por tanto tempo, luminosidades poéticas. Sabe... um artista tem sempre os olhos na sua infância. Eu mantenho sempre que nós comemos a nossa infância... Se, por trinta anos, comi os 'involtini' da minha mãe isso é uma droga: são os 'involtini' melhores do mundo; tal como o 'spaghetti' que comia às sextas-feiras; tal como o salame... Estamos ligados a coisas tão remotas.
P. - Como é que decorreu a sua infância? R. - Teve os seus dias de tristeza e sofrimento, certamente, mas o tempo cancela as coisas tristes e deixa apenas o que foi belo.
P. - Isto é? R. - Uma relação difícil de descrever, de tão intensa, com a natureza, com os rumores, com os nevões...
P. - Que faziam os seus pais? R. - Meus pais saiam às quatro da manhã de Santarcangelo e vinham, pelas povoações da montanha, vender fruta e verdura. Minha mãe era de pequena estatura e analfabeta. Desde menina, vendeu peixe frito nos mercados, e quando entregava a porção de peixe a um cliente assinalava, com traços, numa folha de papel: uma linha vertical se fosse um homem magro, uma bola para uma pessoa gorda. Assim os reconhecia para o pagamento. Meu pai falava pouco. Não era de elogios ou beijos. Quando voltei da Alemanha, depois de um ano em que me acreditaram morto, ele tirou o cigarro da boca e perguntou-me "já comeste?", e foi-se embora. Mas quando eu estava sentado em casa, vejo chegar um homem com uma pasta. Perguntei-lhe: "procura alguém?". "Procuro-o a si. Sou o barbeiro". Meu pai viu-me de barba e foi chamar o barbeiro. Por isso sei que o amor tem muitas expressões. É teatral e imediato, mas pode dar-se, igualmente grande e caloroso, ainda se com atraso.
P. - A sua experiência no campo de concentração... Sabe, custa-me muito formular uma pergunta. R. - Era muito jovem e olhava para os sofrimentos com curiosidade. Nesse lugar terrível comecei a escrever poesia em dialecto (o romagnolo), pois essa era a língua dos operários, meus companheiros. Não tinha papel e todas as noites dizia os poemas para os manter na memória. No dia de Natal de 1944 não nos serviram o 'bròdo' (uma espécie de sopa) que era de tradição comer. E os meus companheiros pediram-me que falasse das comidas de Natal. Eu com palavras e gestos criei uma ceia de Natal, longa e deslumbrante, cheia de coisas saborosas que todos fingiam apreciar. Quando acabei de servir, de fingir que servia a 'tagliatèlla', deu-se uma cena comovente: um companheiro perguntou-me se podia comer um pouco mais.
P. - E isso no meio daquele inferno. R. - Lembro-me dos bombardeamentos, do barulho ensurdecedor, do medo... E de me pôr a pensar em qual seria a coisa que mais pena me fazia abandonar no mundo.
P. - Mas aconteceu a libertação. R. - No dia da libertação os portões do campo apareceram abertos e tinham desaparecido os jovens soldados alemães. Fomos todos até aos portões e faltava-nos a coragem de sair. Um prisioneiro avançou dois passos e voltou para trás de novo. A um certo ponto, três ou quatro desatamos a correr em direcção a um bosque. Foi ali que tive uma das maiores alegrias da vida. Depois de todo aquele horror, fui capaz de olhar para uma borboleta sem vontade de a comer.
P. - Que idade tinha? R. - Vinte e dois ou vinte e três anos.
P. - Veio, depois, a Universidade e a publicação do primeiro livro. R. - Licenciei-me em Urbino, em Pedagogia. O reitor da Universidade, o reputado crítico literário Carlo Bo, tendo lido os meus poemas, insistiu muito que os publicasse. Ele fez o prefácio e eu mandei fazer o livro, às minhas custas, a um tipógrafo de Faenza.
P. - Por essa altura, chega também o cinema. R. - Comecei por ajudar na preparação de um filme com Mastroianni, porque precisavam de alguém que conhecesse a cultura da região da Emilia Romagna.
P. - E, pouco depois, vai viver para Roma. R. - Fui, à procura de não sei que fortuna, para ter de suportar dez anos de fome (risos). E aconteceu esta coisa fantástica de que me lembro. Num mês de Agosto, eu e minha mulher estávamos em casa, sem nada para comer. Eu falo-lhe então de uma rapariga que nos atirava pão, às escondidas, no campo de concentração, e assim nos ajudava. E digo: "se voltar a encontrá-la um dia, ponho-me de joelhos diante dela". Tocam à porta nesse preciso instante. Era ela. Era essa rapariga que se tinha casado e vinha a Roma, em viagem de núpcias. Para esconder-lhe a minha miséria, invento que há uma gripe asiática muito perigosa em Roma, que não deverão comer absolutamente nada ali, mas escapar, logo que possam, para outro destino. Uma semana depois recebo um postal dela, da Suíça. Dizia: "Obrigada, tu salvaste-nos" (risos).
P. - Em que consiste o trabalho de um argumentista? R. - Um argumentista participa na estrutura de palavras que serve ao realizador. E, por vezes, pode chegar a sugestões que definem também o estilo ou a alma do próprio filme.
P. - Pedia-lhe que definisse, com uma frase, alguns dos importantes realizadores do cinema contemporâneo com quem trabalhou. Antonioni... R. - Um homem que torna preciosa até a imundície.
P. - Fellini... R. - Um olhar dentro da sua infância.
P. - De Sica... R. - Recolhe os gestos poéticos expressos pela realidade e pelas palavras de Zavattini.
P. - Rosi... R. - Um entendimento exacto da realidade italiana.
P. - Angelopoulos... R. - Um olhar lento e longo.
P. - Tarkovski... R. - Uma nuvem de espiritualidade.
P. - Em Tarkovski há também o seu fundamental encontro com a Rússia. R. - Sim, Andrei (Tarkovski) é um encontro perfumado nessa magnífica terra, plena de espiritualidade, que é a Rússia, que eu considero a minha segunda pátria. A Rússia, para lá do seu 'respiro' europeu, tem também valores orientais que me enchem de curiosidade e me fazem caminhar sobre sentimentos de uma extensão enorme. Porque, sabe, os pontos de fuga que me interessam são os interiores.
P. - Pontos que nos transportam, para usar palavras suas, "às portas do silêncio". R. - Na Rússia ou fora da Rússia é isso que me fascina. Conheci um homem, neste vale do Marecchia, que vivia numa grande solidão. Chamava-se Eliseu. Um dia perguntei-lhe: "Eliseu, Deus existe?". Ele ficou, primeiro, um pouco embaraçado e, depois, respondeu: "Dizer que Deus existe pode ser uma grande mentira. Dizer que não existe pode ser uma mentira maior".
P. - E Tonino Guerra o que diz? R. - Há, por certo, alguém que crê profundamente e todas as vezes que encontro pessoas assim, abandonadas a uma convicção, sinto-me em grande dificuldade. Conto uma história que se passou comigo e com Antonioni. Numa região remota da Ásia, caminhávamos por uma espécie de caminho de pedras e de silêncio. Subimos a uma pequena colina e vimos, no vale, um camponês que arava aquele desterro com um bocado de madeira. Imprevistamente parou, pegou num tapete desfiado e rezou voltado para oriente. Naquele deserto absoluto, aquele homem oferecia a sua solidão, os seus pensamentos. E nós virámos as costas, impressionados, na tristeza das nossas dúvidas.
(Faz um longo silêncio)
Vivo cheio de perguntas. Na vida, uma coisa que me atormenta, por exemplo, é pensar na perfeição de um olho. Como é que pode ter surgido sozinha uma perfeição assim? Para mim, Deus é esta pergunta misteriosa.