sábado, fevereiro 22, 2003
livros e o luar contra a cultura
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Na origem da beleza está unicamente a ferida, singular, diferente para cada qual, escondida ou visível, que todos os homens guardam dentro de si, preservada, e onde se refugiam ao pretenderem trocar o mundo por uma solidão temporária mas profunda. Fora de miserabilismos. A arte de Giacometti parece querer revelar essa ferida secreta dos seres e das coisas, para que nos ilumine
O estúdio de Alberto Giacometti de Jean Genet é um livrinho imprescindível. Pertence à colecção Alfinete da Assírio & Alvim, a tradução é de Paulo Costa Domingos, as fotografias de Ernest Scheidegger e vai na segunda tiragem.
Jean Genet visita o estúdio do escultor, conversam, Giacometti desenha-o (sozinha na tela, não media mais de sete centimetros de altura por três de largos, tinha porém a força, o peso e as dimensões da minha autêntica cabeça), falam de escultura, dos materiais e de coisas vagas: Genet fica enfeitiçado.
Vamos beber um copo. Ele toma café. Pára para melhor captar a beleza penetrante da rua de Alésia, beleza suave, por causa das acácias cuja folhagem pontiaguda, acerada, à transparência do sol, mais amarelo que verde, parece derramar sobre a rua uma poalha dourada.
Ele – Que bonito, que bonito…
Recomeça a andar, coxeando. Conta-me como se sentiu feliz ao saber que a operação – depois do acidente – o deixaria coxo. Vou arriscar o seguinte: as estátuas dele dão a sensação de no limite se refugiarem não sei em que secreta enfermidade protectora da solidão.
…
Acerca da solidão dos objectos:
Ele – Um dia, no quarto, ao olhar uma toalha em cima da cadeira tive vivamente a impressão de que além de estarem sós, os objectos tinham um peso – melhor, uma ausência de peso – que os impedia de assentar sobre os outros. A toalha estava só, de tal modo só que eu tive a sensação de poder pegar na cadeira sem a toalha se mexer do sítio. Tinha o seu lugar próprio, o seu peso, e até um silêncio próprio. O mundo era leve, leve…
…
Uma afirmação de Giacometti constantemente repetida:
– É preciso valorizar…
Julgo que nem uma única vez na vida ele encarou os seres ou as coisas com olhos de desprezo. Tudo se lhe depara na mais preciosa solidão.
Ele – Nunca conseguirei pôr num retrato a força toda de uma cabeça. Só o facto de viver exige desde logo tal vontade e tal energia.
É assim o livro, escrito de um modo impressionista, uma homenagem a um homem extremamente sensível, um homem que se comove com a beleza da poeira que cobre as garrafas de terebentina.