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terça-feira, fevereiro 25, 2003  

livros e o luar contra a cultura
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Afinal, os livros sonham-se e escrevem-se ou sonham-se e vivem-se?



O Segredo de Joe Gould, de Joseph Mitchell


Ao certo, não se sabe. Esta é a história de como há livros a mais no mundo e, todos juntos, não chegam para albergar alguns sonhos que, porque grandes demais ou, simplesmente, humanos demais, se recusam a sair dos homens onde nasceram, sendo dentro destes - pequenos, contraditórios, confusos, pobres, iludidos, enganadores, precários, mortais – que permanecem.
O sonho de Joe Gould, Professor Gaivota, era grande e consistia em escrever “Uma História Oral do Nosso Tempo”, na qual teria lugar apenas aquilo que tivesse presenciado ou ouvido, sendo pelo menos metade do livro “constituído por conversas reproduzidas literalmente ou resumidas; daí o título. «O que as pessoas dizem é que é história. Aquilo que considerávamos ser história – reis e rainhas, tratados, invenções, grandes batalhas, decapitações, César, Napoleão, Pôncio Pilatos, Colombo, William Jennings Bryan – não passa de história formal e em grande parte falsa», diz Gould. «O que eu faço é registar a história informal de gente em mangas de camisa – o que têm para dizer sobre os empregos, amores, comidas, pândegas, apertos e penas»”.
Só que, em vez de escrever a “História Oral”, Joe Gould, não se sabe ao certo se por preguiça (o que parece ter negado), se por incapacidade, se por não saber viver sem ela, acabou a ouvi-la, a guardá-la, a vivê-la e a sonhá-la indefinidamente. O que também não se sabe. Que, durante muito tempo, acreditou escrevê-la e nunca ninguém a leu é entendimento mais pacífico, pelo que esta pode ser, ou não, a história de uma não-verdade do tamanho da vida de um homem, morada possível de um sonho em forma de um livro com páginas que falam, ouvem, catam beatas pelos passeios da Village e sonham outra vez.
Além de grande, o sonho de Joe Gould era também grandioso. Joe Gould, o boémio, o vagabundo, o homem que apontava os maus poetas, que sabia que a ausência de sentido de humor nos torna rígidos e tristemente risíveis, que imitava gaivotas nas reuniões sociais, que recitava poéticas e sarcásticas barricadas ante o terror furioso dos burgueses anti-aburguesados pela roda das modas intelectuais, tinha um sonho que, a concretizar-se, lhe daria - a ele, marginal - direito a eterna glória petrificada em centro de praça na terra natal e que, apenas prometido, fez dele centro de incisiva admiração. Podemos mesmo viver sozinhos?
Não, nem sem memória, e Gould, o historiador, que a tinha em demasia para tudo mas descarnada e sem referências para si mesmo, acaba por transformar outro homem, o repórter e narrador, em fiel depositário da história da sua vida, bem como de abundantes segmentos da “História Oral”. Será este repórter, por fim, que, conhecendo bem os rótulos e as respostas que a justiça estereotipada guarda para todos os homens que ousam não separar realidade e fantasia, resiste à tentação da condenação e permite a Gould a continuação do sonho, seu ânimo e sustento.
Tudo isto, escrito por Joseph Mitchell de forma directa, sem sentimentalismo e com um humor implacável que nos faz rir do princípio ao fim daquela que é, também, uma história de abandono e impiedade, cabe em dois perfis – “O Professor Gaivota” e “O Segredo de Joe Gould”, publicados por Mitchell em The New Yorker em, respectivamente, 1942 e 1964 – e em 138 páginas, já que um livro como este, sobre o excesso de livros e com excesso de histórias, sonhos, limites e interrogações, não podia, obviamente, ser grande, ou careceria de brilhantismo e de ironia formal.
Sonhei com o livro nas duas noites em que, para dormir, tive de interromper a leitura e, em ambas as vezes, o meu sono foi sobressaltado e febril porque não consegui desligar. Apesar de me parecer que o principal está escrito acima, pelo menos da perspectiva da minha leitura, suponho que continuarei a pensar nele durante muito tempo. Até agora tinha lido livros fáceis na forma e na substância, livros densos na forma e na substância e livros densos na forma e simples na substância. Este é de forma fácil (a palavra invisível, que quase não se nota e permite um encontro natural com as histórias, parece-me ser outra das suas maravilhas) e de conteúdo denso. Lê-se num pestanejar, parece uma coisa de nada e, depois de se fechar, continua a dizer coisas, não se cala. Muito inteligente por muitas razões mas, enfim, por uma das minhas preferidas: o facto de ser um livro em que os livros são reduzidos à sua insignificância e reaparecem no seu - justo - lugar ao lado dos sonhos, dos dias, das refeições quentes e das muitas outras coisas de ser gente.


Alguns links da memória durante a leitura: Os Amantes sem Dinheiro, de Eugénio de Andrade, in Eugénio de Andrade 1. (Limiar/FEA); Notes of a Dirty Old Man, de Charles Bukowski; Bill Evans Live at The Village Vanguard.



posted by camponesa pragmática on 16:14


 
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