O cancioneiro musical de inspiração inesiana contaminado pelas novas possibilidades electroacústicas e recriado por quatro compositores portugueses contemporâneos. «Cousas de folgar e gentilezas» no Salão Nobre do Teatro São João. Um concerto mutante com dispositivo cénico de António Lagarto e som de Francisco Leal.
Inez + Eléctrica A decomposição do título escolhido para baptizar o concerto de formato músico-cénico que, durante 21 e 22 de Fevereiro, se instala no Salão Nobre do Teatro São João é a chave para decifrar as partes de que é feito o todo. A grafia antiga de “Inês” denuncia a componente de música portuguesa renascentista, e o prolongamento “eléctrica” dá conta da recriação dessas partituras pela mão das possibilidades tecnológicas dos dias que correm. O resultado é um original exercício de reanimação de sonoridades feito à custa de verdadeiros choques eléctricos.
Imagine-se uma guitarra eléctrica a improvisar sobre Canto Gregoriano ou a transcrever o som que, originalmente, sai de um alaúde e ter-se-á uma ideia aproximada da identidade sonora de InezEléctrica. O concerto vive da fusão e coabitação entre composições de música antiga fielmente interpretadas, e objectos sonoros criados a partir da intervenção da contemporânea mesa de som nas partituras originais dos cancioneiros dos séculos XVI e XVII. A possibilidade de identificar qualquer tipo de heresia está condicionada à partida. «Uma das características fascinantes da música antiga é que não é nada impositiva e permite uma grande liberdade de abordagens», esclarece João Henriques, comissário do projecto. E o que começa por prestar-se às experimentações mais improváveis, acaba por legitimar as assumidas transgressões e subversões. «A música antiga deixa tantas hipóteses de interpretação que podemos perfeitamente “brincar” com ela, tentando preservar aquilo que é a sua essência».
Justificado o conceito, importa desvendar o método. Primeiro passo: exaustiva incursão no arquivo das palavras e partituras com cinco séculos. O resultado trouxe pistas para duas possibilidades distintas que acabaram por ser exploradas em paralelo e transformar-se nas duas partes em que InezEléctrica se apresenta. A primeira convoca a ópera Inês de Castro, de Ruy Coelho (1927), com libreto feito das palavras da Castro, de António Ferreira – as mesmas que dias depois ocuparão a sala do Teatro São João na encenação de Ricardo Pais dos amores de Pedro e Inês –, para fio dramatúrgico condutor. Até aqui nada a salientar não fosse a opção de entrecortar a ópera com as cantigas, vilancetes e vilancicos dos cancioneiros recolhidos. Mais: subtraindo essas palavras ao contexto original para as colocar na voz das personagens. «Como tudo é lírica renascentista, as temáticas são de tal forma comuns que os textos que encontrámos podem perfeitamente ser ditos por qualquer uma das personagens», defende João Henriques. Um exercício de copy/paste sem costuras à vista, pode depreender-se.
Mas o trabalho arqueológico de pesquisa pôs também a descoberto vários cancioneiros que preservam a escrita, mas cuja música se perdeu pelo caminho de uma transmissão oral incapaz de lhe assegurar a sobrevivência. Fraquezas que acabariam por revelar-se forças. «Se a ideia é fazer um jogo entre a música antiga e as possibilidades tecnológicas actuais, nada melhor que convidar compositores contemporâneos a escrever música original para “reanimar” os textos da altura.» Desafiados, Fernando das Neves Lobo, Pedro Faria Gomes, Carlos Azevedo e Eurico Carrapatoso escreveram – em registos tão distintos que vai ser possível ouvir sonoridades próximas do jazz ou do fado – as composições inéditas encarregues de fechar o concerto. Pelo meio haverá um intervalo em que o bar do Salão Nobre estará aberto, sinal do carácter lúdico da iniciativa e, como defende João Henriques, da música em geral. «A função principal da música é ser entretenimento, sem nenhum tipo de pretensões. A música pura, tal como os maiores artistas a concebem e interpretam, é puro divertimento».