Um título como "Baladas Hebraicas" situa-nos desde logo no cerne desta obra tão especial, escrita a partir de figuras e episódios provenientes do Antigo Testamento, desde Adão e Eva a Saul ou David, passando por Abel e Caim, Abraão e Isaac, Jacob, Esaú, Moisés, etc.
Apesar da importância que na primeira metade do século XX assumiram os movimentos literários e as correntes estéticas organizadas em grupos, houve certos autores que se afirmaram para lá dessa lógica, parecendo difíceis de enquadrar claramente em tais tendências colectivas - com as quais partilharam certamente a sensibilidade de uma época, o seu "Zeitgeist", mas que tendem a permanecer como figuras únicas e inclassificáveis.
Foi esse o caso de Else Lasker-Schüler, autora próxima do expressionismo alemão, mas cuja voz rapidamente se singularizou através de um universo muito próprio, assente num núcleo de obsessões pessoais ou de mitos cuja intensidade soube aprofundar e em torno dos quais gravitou a sua escrita. Nascida em 1869 na Renânia, de família judaica integrada na cultura alemã, companheira da boémia literária de Berlim dos princípios do século XX, Else Lasker-Schüler sublinhou desde sempre a sua diferença em relação aos que a rodeavam: "Nunca pude ser comparada a outras pessoas (...) porque a minha fronte era o céu da noite" (p. 10).
Talvez por causa dessa diferença radical, a sua biografia, embora interessante, acaba por ser menos reveladora que a sua obra: podem mencionar-se, em todo o caso, os primeiros poemas em 1899, a participação na revista "Der Sturm", dois casamentos desfeitos, a fuga para a Suíça em 1933 (ano em que Hitler chega ao poder) e os últimos anos vividos na Palestina em condições miseráveis, até morrer em 1945. Para conhecermos estas e outras particularidades de Else Lasker-Schüler, nada melhor do que percorrer o excelente texto com que João Barrento nos apresenta um retrato do "cisne negro de Israel" e da sua escrita, servindo de abertura a estas "Baladas Hebraicas", que pela primeira vez surgem na nossa língua.
Deve dizer-se, aliás, que estamos perante um livro magnífico também como objecto, enriquecido com fotos da autora e sobretudo com a reprodução fac-similada do belíssimo manuscrito original, com os poemas escritos a roxo pelo punho da autora, dedicados à sua amiga Lucie von Golschmidt-Rotschild por ocasião do seu noivado e assinados por "Jussuf, Príncipe de Tebas" (uma identidade literária de Else Lasker-Schüler). Como o número total de poemas é de 22, os 17 que fazem parte desse precioso manuscrito aparecem também a roxo nesta edição.
Um título como "Baladas Hebraicas" situa-nos desde logo no cerne desta obra tão especial, escrita a partir de figuras e episódios provenientes do Antigo Testamento, desde Adão e Eva a Saul ou David, passando por Abel e Caim, Abraão e Isaac, Jacob, Esaú, Moisés, etc. Toda esta temática judaica serve aqui sobretudo como ponto de partida para um fôlego expressivo mais amplo, já que, como observa João Barrento, "o judaísmo é mais pretexto e pré-texto para estilizações e transfigurações poéticas" (p. 10). Apesar deste alargamento de horizontes (ou até por causa dele e do seu alcance humano universal), o destino específico do povo judeu surge claramente enunciado em alguns poemas - por exemplo, "O Meu Povo" (p. 47), "Moisés e Josué" (p. 65), que evoca a "esperança" dos "povos de Israel", ou ainda o texto dedicado a David e Jónatas, aludindo directamente ao Velho Testamento: "Na Bíblia estamos escritos / Num abraço de cores vivas" (p. 69).
Sempre sob a égide das histórias bíblicas, os principais veios que percorrem estes poemas correspondem, assim, a dois grandes domínios - o do amor e o da relação com Deus. Quanto ao primeiro, Else Lasker-Schüler não hesita em decliná-lo aqui numa dimensão nitidamente erótica, aliás subjacente a alguns episódios e personagens bíblicos, destacando-se, por exemplo, a vibrante sensualidade atribuída a Eva - "Tu tremes de amor (...) / ... E não entendes esses gemidos no teu sonho" (p. 89) - ou à Sulamita do "Cântico dos Cânticos": "Ah, aprendi na tua doce boca / A conhecer a felicidade, tanta! / Sinto já os lábios de Gabriel / A queimar-me o coração..." (p. 85).
Finalmente, é também a força do amor a mover este livro sempre que se trata do apelo de Deus ou do diálogo com a divindade: "Sempre me esforcei por escavar não em busca de ouro, mas em busca de Deus", escreveria Else Lasker-Schüler num texto de 1932 (p. 14). E é desta procura permanente que as "Baladas Hebraicas" também se fazem eco, por exemplo quando Deus é explicitamente invocado num poema: "Deus, onde estás? // Queria ouvir de perto o teu coração, / Trocar contigo, para ter o longe à mão, / No dia em que no teu reino de luz / Sagrada, em ouro transfiguradas, / Todas as boas e más fontes correrão" (p. 87). Naquele que é talvez o mais belo texto de todo o livro ("Reconciliação"), a presença de Deus acaba por confluir para uma atitude amorosa de dádiva total, para um misticismo em que a componente erótica se alia à noção do sagrado, como se Deus apenas se fizesse sentir através de uma harmonia universal simbolizada pelo amor humano:
"Será noite de reconciliação - / Há tanto Deus a derramar-se em nós. // Crianças são os nossos corações, / Anseiam pela paz, doces-cansados. // E os nossos lábios desejam beijar-se - / Por que hesitas? // Não faz o meu coração fronteira com o teu? / O teu sangue não pára de dar cor às minhas faces. // Será noite de reconciliação, / Se nos dermos, a morte não virá. // Há-de uma grande estrela cair no meu colo" (p. 45).
Baladas Hebraicas
Autor: Else Lasker-Schüler
Tradução e apresentação: João Barrento
Editor: Assírio & Alvim
104 págs