William Eggleston é um fotógrafo norte-americano internacionalmente considerado como “o pai da fotografia a cor”, pois abriu novos caminhos para o uso e a expressão da cor na fotografia contemporânea. O Projecto Los Alamos reune um conjunto de fotografias realizadas em princípios da década de 70, em várias viagens de estrada que o fotógrafo realizou conjuntamente com o seu amigo Walter Hopps, desde Memphis até à Costa do Pacífico. William Burroughs, a cultura “beatnick” e “on the road” surgem como referências evidentes deste projecto. Quando Hopps explica ao fotógrafo que Los Alamos era o laboratório secreto onde a bomba atómica foi desenvolvida, Eggleston reage com a contraposição do seu próprio “laboratório secreto” evidente nas fotografias apresentadas neste projecto.
Numa conversa casual com o Bernardo Rodrigues o nome do arquitecto Manuel Graça Dias veio à baila. Parece que ele ainda não tem um blog, o que é uma pena. Para remediar isso resolvi publicar um pequeno texto seu sobre a imbecilidade das colecções e das casas «decoradas» de jacto. Retirei-o de Vida moderna, um livro precioso que reune algumas crónicas escritas pelo arquitecto para o "JL" e para "O Independente". Foi editado em 1992 por João Azevedo e hoje, por acaso, encontrei uma dúzia de exemplares na fnac de Santa Catarina.
Dedicada especialmente a todos que desejam casar:
Não é a primeira vez que me põem questões do género: «as minhas paredes estão muito vazias, quero comprar quadros para as encher, o que me aconselhas?» ou «precisava de objectos para as minhas estantes, vens comigo escolher, logo à tarde?»
Invariavelmente, ensaio uma enfadonha didáctida da colecção que passa por explicar que não se compram de um momento para o outro quadros, cinzeiros, mesas, cortinados, serviços de jantar, livros.
Sempre pensei que, um pouco à maneira dos grandes aventureiros dos primeiros anos do século, dos grandes coleccionadores (modelo que é medianamente perseguido por estes meus contemporâneos e ansiosos amigos), os objectos, as gravuras, os pratos, só fazem sentido se carregarem a história pessoal que lhes esteve na génese. Só merecerão as nossas paredes se forem amados, desejados, obtidos com dificuldades (económicas, prestações, perigos).
Como troféus de caçadas (ideia, finalmente, que lhes estará na origem), ornamentarão o nosso ambiente, rodearão os nossos actos futuros, sempre cheios de passado, de peso e densidade, prontos a fazerem-nos contar uma história, um motivo, um tema.
A «colecção instantânea» arrrepia-me. Nada se mereceu, nada se conquistou, é tudo fruto do mais grosseiro dos acasos, da desordem circunstancial de determinada loja em determinado dia de semana de um qualquer ano.
Nesse dia «fez-se» a colecção, moldou-se um ambiente para sempre.
Também me afligem os jovens casais que não descansam enquanto, no subsequente mês ao casamento, não equipam toda a casa com candeeiros, dúzias de cadeiras, paredes inteiras de estantes onde alinham desgarrados objectos que, num esforço desmemorizado, os colegas do emprego lhes ofereceram, à toa. Penso que esses casais deveriam pugnar por uma grande despensa/arrumação onde guardassem toda a quinquilharia, exibindo a casa vaga, espartana, branca, como uma tela virgem onde ao longo dos anos pudessem vir a inscrever a vida, as viagens, as zangas, os filhos, as fotografias de domingos longos, um móvel apanhado no lixo, os primeiros desenhos de um sobrinho. Isso será um ambiente, o ambiente deles, o que os distingue dos amigos, do sítio onde cada um acumula o pó, onde ficam os jornais velhos, os cadernos de liceu, embalagens gastas de remédios, anúncios recortados de casas melhores.
Compreendo bem que Andy Warhol morresse com pilhas de caixotes por desempacotar; que Picasso mudasse de casa com crises de nervos quando as criadas lhe alteravam a dessarrumação.
Uma casa é um sítio onde nos arquivamos, onde guardamos a nossa memória, única, pessoal.
Quem sabe dos meus livros, dos meus sublinhados, daquilo que roubei ao correr dos anos?
Vai-se à feira do livro comprar porque a estante está vazia? Adquirem-se lotes de gravuras para toda a vida? Porquê, então, comprar metros de gravuras encaixilhadas, quilos de pratos (e aqui convém dizer que os pratos são coisas mais ou menos destinadas a comer) que se agrupam nas paredes (porque não pôr então, também, as chávenas desses pires, as sopeiras dessas travessas ovais?), dezenas de bonecos perversos em pano, em louça, em cobre, em estanho, em pedra?
Estas casas, assim «decoradas» de jacto, só teriam correspondeste em crianças que ao fim de 15 dias já falassem, já namorassm, já telefonasem, já tivessem bigode.
Depois de "O Senhor Valéry" (um homem extremamente distraído, que mistura pensamentos complicados com distracções puras como sejam a de sair à rua com um sapato de cor diferente em cada pé. Gosta muito de fazer desenhos para explicar teorias, no entanto desenha muito mal), Gonçalo M. Tavares apresenta-nos outra personagem curiosa. Trata-se do Senhor Henri, um senhor que gosta de beber uma bebida um bocado alcoólica e de informar os ouvintes de inúmeros factos que ele vai lendo na enciclopédia. Vejamos um pequeno excerto do episódio que tem por nome: A estatística.
“O senhor Henri disse: a estatística foi inventada em Londres em 1662.
...antes também existiam acasos e repetições, mas ninguém os via.
O senhor Henri coçou depois a barriga com o dedo indicador da mão direita.
O senhor Henri tinha umas calças pretas que não chegavam aos sapatos.
O senhor Henri tinha uns sapatos castanhos antigos. E estes, vindos de baixo, também não chegavam às calças.
Era, portanto, mútuo: as calças não chegavam aos sapatos e os sapatos não chegavam às calças.
Uma admirável coincidência – disse o senhor Henri, ao mesmo tempo que se lembrava da importância da estatística, inventada em Londres em 1662.”
"O Senhor Henri", de Gonçalo M. Tavares com ilustrações de Rachel Caiano acaba de ser editado pela Caminho e vai ser apresentado ao público já no próximo domingo, dia 13 na Livraria Navio de Espelhos em Aveiro, pelas 18h00.
de Alfred Hitchcock, amanhã na Rotunda da Boavista às 22h30.
Um mal-entendido (um simples gesto errado) deixa Roger Thornhill em maus lençois...
Mother, this is your son, Roger Thornhill...No, no, Mother. I have not been drinking. No, no. These two men, they poured a whole bottle of bourbon into me. No, they didn't give me a chaser.
Em resposta ao nosso pedido o Rui Manuel Amaral enviou-nos um belo poema do escritor alemão Hans-Ulrich Treichel. Ei-lo:
Verão
De súbito, na rua, está
outra vez um calor inconcebível,
o matraquear das sandálias de pau, as raparigas
abrem as blusas, não me atrevo
a sair da minha pele hirta
de suor e suspiro pelo Inverno,
que tem o seu lado bom, escuridão eterna,
humidade salgada, botas pesadas como pedras,
e o desejo das blusas abertas,
sandálias de pau e luz.
Hans-Ulrich Treichel, Como se Fosse a Minha Vida
Quetzal, 1994.
Decorre de 17 de Julho a 17 de Setembro na sala Cidade de Lisboa do Padrão dos Descobrimentos em Lisboa a exposição de fotografia "Covers" do grupo BZK.
O grupo BZK foi formado em 2002 por artistas que utilizam a fotografia como forma de expressão. Com antecedentes pessoais diferenciados, une-os a vontade de apresentar trabalhos de concepção colectiva que os transportem para estéticas que não se sobreponham à individualidade de cada membro.
Para esta exposição, o grupo realizou "versões" ("covers") fotográficas de cinco canções. Não se trata, no entanto, nem de um "photo-clip", nem de uma ilustração, mas sim de impressionar em papel fotográfico as emoções desencadeadas por essas canções.
1 - Por que é que um quiosque com jornais, numa estação de comboios, é um lugar irresistível? Nos aviões, distribuem a imprensa de cada dia, uma das últimas regalias que ficaram de tempos idos (é verdade que são cada vez menos e, se o avião vai cheio, raramente chegam ainda além da fila 15). Nos comboios não. Também já não há ardinas para os apregoar às janelas. De modo que, naqueles poucos minutos entre a compra do bilhete e o salto para o comboio, a busca do jornal é quase compulsiva. Já assim acontecia há muito mais de quarenta anos, quando ainda não tinha nascido ninguém e eu apanhava, na estação de Sintra, o comboio das 7 e 30, que chegava ao Rossio às 8 e 10. 40 minutos é um bom tempo para a leitura do jornal, fosse ele "O Século" a contar da morte de Pio XII e dos primeiros passos da república do Iraque, fosse ele "La Repubblica" a contar da morte de Katharine Hepburn ou dos últimos passos depois do fim da república do Iraque.
Mais uma bela crónica do João Bénard da Costa no Público .
Nota pessoal: Foi com alívio que descobri que partilhamos uma estranha fixação no Arnold Schwarzenegger. Também não consigo explicar porque é que gosto do actor mas fiquei mais descansada. Se até o director da Cinemateca caiu nessa armadilha...
Dizia Hildegarda de Bingen, no tratado de Física que redigiu por volta de 1150, que o macaco “como é muito semelhante ao homem está sempre a observá-lo para depois o imitar. Também partilha os hábitos de outros animais mas, ambos estes aspectos da sua natureza são deficientes, pelo que o seu comportamento não é nem totalmente humano nem totalmente animal”. Esta ideia vai perdurar por muitos séculos e os símios são associados à falta de razão humana, ao pecado da carne e prisão dos instintos. Os bestiários medievais divulgam uma série de lendas e fábulas e incluem-nos como pretexto para as mais variadas sátiras da marginalia medieva.
No cadeiral da Sé do Funchal existem vários. Alguns fazem alusão ao pecado da gula — são os macacos beberrões, a emborcar sofregamente o vinho por copos e púcaros, enquanto ao lado de um deles um porco pede esmola, mostrando o rolo do atestado de pobreza.
Macaco beberrão, cadeiral da Sé do Funchal, c.1515
Outro primata toca gaita-de-foles, numa alusão à provocação sexual em que os porcos costumavam levar a palma como se pode ver no portal da Sé de Lamego, a par de cenas de felatio entre meninos ...
Numa mísula da Torre de Belém o macaco é mais erudito — executa com primor alguma cantata no violino, mostrando um ar sorridente e inspirado —.
Macaco a tocar violino, Torre de Belém, c. 1519
Era também comum associá-los a cenas de assédio com morcegos fêmeas, com as maminhas à mostra ou, mais explicitamente, a fazerem de médicos, colocando uns edemas no traseiro de outros bichos ou mesmo de humanos, numa alusão aos gays da época.
Macaco a pôr edema - misericórdia de cadeiral da Colegiada de Villefranche-de-Rouergue (séc.XV)
Noutros casos podiam aparecer a fazer grandes cozinhados ou como ladrõezecos em fuga como o que está no cadeiral da igreja de Montémart.
Macaco ladrão- cadeiral da igreja de Montémart (séc.XV)
As extravagantes droleries medievas tendem a tornar-se cada vez mais mordazes no período gótico. Num manuscrito iluminado do Romance de Lancelote figurou-se uma freira a amamentar um macaco numa troça ousada às imagens tradicionais da Virgem com o Menino.
Freira amamentando um macaco, Iluminura do romance de Lancelote. John Rylands Library, Manchester
Miguel Ângelo, fortemente influenciado pelas teorias neoplatónicas da época, não os esqueceu e, numa alusão ao triunfo da morte pela Vida Contemplativa que se liberta do cárcere terreno, fez acompanhar de símios dois dos escravos inacabados do túmulo de Júlio II.
Miguel Ângelo, Escravo inacabado para túmulo de Júlio II, c.1516
Numa variante das catalogações das raças do mundo, misturados com as lendas, os macacos são também associados aos sátiros e homens silvestres. Esta crença estava de tal modo inculcada que, só em pleno século XVII a Ciência se impõe para desmistificar a tradição. O famoso Dr. Tulp que Rembrandt imortalizou na “Lição de Anatomia”, redigiu os Medicarum Libri Tres, um tratado científico, no qual expõe uma série de monstruosidades que dissecou, entre as quais se pode ver uma gravura de um orangotango acompanhado da seguinte legenda: Homo Sylvestris-Orangutangus. No capítulo dedicado aos Sátiros Índicos, desenvolve o assunto e chega à conclusão que os únicos que podem existir são estes e são animais que o desenho mostra, pois os ditos sátiros com que eram confundidos só existiam nas lendas.
Dr Tulp, Medicarum Libri Tres, “Homo Sylvestris Orangutangus”, 1641
quinta-feira, julho 10, 2003
Little Jimmy Scott : Why I Was Born
Documentaire (1998, 60 mn), réalisation : Mélodie McDaniel.
Why I Was Born (Pourquoi je suis né), de la réalisatrice Melodie Mc Daniel, retrace la vie et la carrière de Jimmy Scott, devenu Little Jimmy Scott parce que c’est ainsi que l’appelait Lionel Hampton. Né en 1925, atteint du syndrome de Kallmann qui lui vaudra de conserver un timbre de voix si particulier et si proche du “chant des anges”, Jimmy Scott a enduré tout au long de sa carrière presque toutes les infamies dont le show-business a le secret : exploité et arnaqué par les producteurs, desservi par une réputation d’alcoolique et de drogué… Après une longue errance durant laquelle il fait mille petits boulots pour simplement manger, son talent, son génie d’interprète le sauvera enfin, de son vivant, des profondeurs anonymes de l’oubli. “Je suis un gars simple qui essaye de faire son bout de chemin” dit Little Jimmy Scott, un gars simple et une voix unique qui ne doivent rien à personne. Ce documentaire permet de retrouver Little Jimmy Scott en concert à New York en 1971 et 1994 (avec Lou Reed).
Avec la participation d’Alec Baldwin, Joe Pesci, Frankie Valli, Lou Reed, David Linch et Ray Charles, entre autres.
Um concerto a não perder, sábado às 22h00 no Mezzo.
Já agora, posso deixar aqui a notícia: Jimmy Scott vem ao Porto em Setembro. O concerto abre o Festival de Jazz do Porto. Marquem na agenda:dia 27 às 22h00 no Grande Auditório do Rivoli.
Parece mentira. Eis que encontro algumas das melhores fotografias deste trabalho numa página até aqui (para mim) desconhecida. Fica o link. Quem conhecer outros endereços, por favor, deixe-os na caixa de comentários. Agradeço muitíssimo.
This poem is concerned with language on a very plain level.
Look at it talking to you. You look out a window
Or pretend to fidget. You have it but you don’t have it.
You miss it, it misses you. You miss each other.
The poem is sad because it wants to be yours, and cannot.
What’s a plain level? It is that and other things,
Bringing a system of them into play. Play?
Well, actually, yes, but I consider play to be
A deeper outside thing, a dreamed role-pattern,
As in the division of grace these long August days
Without proof. Open-ended. And before you know
It gets lost in the stream and chatter of typewriters.
It has been played once more. I think you exist only
To tease me into doing it, on your level, and then you aren’t there
Or have adopted a different attitude. And the poem
Has set me softly down beside you. The poem is you.
Como aconteceu no ano passado, a Medeia Filmes vai repor, neste verão, alguns êxitos da temporada cinematográfica 2002/2003. Entre 11 de Julho e 25 de Setembro, o Cinema Passos Manuel, do Porto, vai mostrar então esses grandes filmes. Por 2 euros, vale muito a pena ver, rever alguns deles. Eu, desta, não perco mesmo Ten de Kiarostami e vou rever Longe do Paraíso de Todd Haynes. Aqui fica a lista:
Julho
OITO MULHERES, de François Ozon
11-17
IRREVERSÍVEL, de Gaspar Noé
18- 22
FALA COM ELA, de Pedro Almodóvar
23-29
JEEPERS CREEPERS, de Victor Salva
30-31
Agosto
ITALIANO PARA PRINCIPIANTES, de Lone Scherfig
1-4
24 HOUR PARTY PEOPLE, de Michael Winterbottom
5-7
UMA ANDORINHA FEZ A PRIMAVERA, de Christian Carion
8-9
A VIAGEM DE CHIHIRO, de Hayo Myazaki
10-11
A RESIDÊNCIA ESPANHOLA, de Cédric Klapisch
12- 17
A INGLESA E O DUQUE, de Eric Rohmer
18- 19
HOLLYWOOD ENDING, de Woody Allen
20- 23
O PIANISTA, de Roman Polanski (*)
24-29
GERRY, de Gus Van Sant
30-1
Setembro
SPIDER, de David Cronenberg (*)
2- 4
DEZ, de Abbas Kiarostami
5-6
LONGE DO PARAÍSO, de Todd Haynes
7-10
O DELFIM, de Fernando Lopes
11- 12
DONNIE DARKO, de Richard Kelly
13-15
INTERVENÇÃO DIVINA, de Elia Suleiman
16- 18
SABE-SE LÁ, de Jacques Rivette (*)
19-20
BOWLING FOR COLUMBINE, de Michael Moore
21- 23
ESQUECE TUDO QUE TE DISSE, de António Ferreira
24- 25
Os horários de todos os filmes: 14H30, 17H00, 19H30 e 22H00,
excepto nos filmes que estão assinalados com (*): 14H30, 18H00 e 21H30.
Cinema Passos Manuel
Rua de Passos Manuel, 137
Tel. 222 030 706
Deixou o primeiro post às 21:38 do dia 2 deste mês. Dei por ele no dia seguinte, no sitemeter. Dois posts, duas fotografias, semelhantes àqueles rebentos para os quais olhamos sem saber muito bem que planta anunciam. Hoje voltei lá. Alguém tem andado a alimentar bem este blog. Dá gosto ver como cresceu. Não consigo perceber o que é que me agrada mais porque de absurdo este blog não tem nada. Quando calha é sempre bonito.
posted by camponesa pragmática on 12:24
Urbanismo transcendente
"Câmara de Lisboa com Dificuldade em Explicar "Milagre" do Licenciamento de Obras
Questionário no Whitney Museum of American Art: 1. What are some words you would use to describe America?
2. If there is a "myth" of America, what is it? Does it differ from the reality? If so, how?
3. American identity is a complicated notion. Even if you were born here and are an American citizen, you might not feel American. Or, by contrast, you may be a non-American who lives abroad who nevertheless so strongly identifies with America's values, culture, or history that you think of yourself as, in some way, "American." What is your relationship to America?
4. Your comments.
Encontrei um poema de Joaquim Manuel Magalhães, do seu último livro, "Alta noite em Alta Fraga" (Relógio d' Água, 2001) neste blog, Porto-de-Abrigo.
Páramo
Na varanda sem paz eu vejo o mar
mas já não vejo junto desses olhos
que viam o mar amordaçar-me.
A varanda, todavia, ainda traz
na ondulação, nas maresias
a ilusão de um silêncio
em que tu pretendias: aqui,
nesta lei tão dura, senti
que nada mais terei do que ser de ti.
A varanda continua a sua conjura,
eu continuo o desgaste do mar
só que noutra jura a tua vida dura
e até o mar deixou de esperar.
O vário vento que vem e que voa
sobre argolas com vasos de gerânios
que tombam vagarosos e rosas
sobre ruas ruidosas de Lisboa
toca ao de leve no copo por que bebo
esquecido e sozinho ali
onde dantes vinhas com o maior apego
ouvir ao fim da tarde eu olhar para ti.
Ao alto dessas ruas que Lisboa já não tem
havia um andar quase arruinado
com o estilhaço, a cólera, o fermento
de quem se resignava também
a que não valesse a pena nada.
No vagar desse desmoronamento
essa ruína foi tua e foi minha,
o seu reboco de cal, a pele refém,
a cisterna petrificada.
Amávamo-nos entre eléctricos que passam
do nascer do dia até ao nascer do dia.
Não há nada que se peça que nos seja dado
mesmo quando gritamos alto por perdão.
Merecemos tudo o que ficou fragmentado
no pensamento que não sabe inebriar-se
quando os sentidos perderam o condão.
Essas ruas de Lisboa que findaram
como findaram os dedos que prenderam
o bordão de ternura
que tantos outros nos cortaram.
Tal qual o prédio caímos
e apenas o pó
desenha entre o que nem persigo
um resto que sabe que está só
porque nenhuma solidão vem ter consigo.
El agua eternamente mariposa.
El agua eternamente buena y nueva.
El agua eternamente siempre prueba.
El agua eternamente clara rosa.
El agua eternamente pavorosa.
El agua eternamente dulce cueva.
El agua eternizando al que la beba.
El agua eternamente plena diosa.
El agua eternamente nos espera.
El agua eternamente clarinada.
El agua eternamente primavera.
El agua eternamente sobrenada.
El agua eternamente compañera.
El agua, nuestra eterna camarada.
Depois da meia-noite, à mesa do Convívio comprovei: eles sabem posts de cor, conhecem todas as polémicas, quase todos os blogs e, de vez enquando, dizem “isto dava um post!”.
Umbigos não vi nenhum. Os rapazes são apenas divertidos e inteligentes.
Ah, isto da diversão não quer dizer que a conversa não foi séria. Foi! Falou-se de Cuba, dos Açores, do incontornável Pipi , de pêras e ameixas, da falta de ligações rápidas na provincia, da mulher do Pinto da Costa, do Buraco,… — e tudo o mais que já esqueci — sempre com seriedade e rigor histórico.
Não pegues na colher com a mão esquerda.
Não ponhas os cotovelos na mesa.
Dobra bem o guardanapo.
Isso, para começar.
Extraia a raíz quadrada de três mil trezentos e treze.
Onde fica o Tanganica? Em que ano nasceu Cervantes?
Dou-lhe um zero em comportamento se falar com o seu colega.
Isso, para continuar.
Parece-lhe decente que um engenheiro faça verso?
A cultura é um enfeite e o negócio é o negócio.
Se continuas com essa moça fechamos-te a porta.
Isso, para viver.
Não sejas tão louco. Sê educado. Sê correcto.
Não bebas. Não fumes. Não tussas. Não respires.
Aí, sim, não respirar! Dar o não a todos os nãos.
E descansar: morrer.
Teus olhos, Honorine, cruzaram oceanos,
longamente tristes, sequiosos,
como flor aberta nas sombras em busca do Sol.
Vieram com o vento e com as ondas,
através dos campos e bosques da beira-mar.
Vieram até mim, estudante triste,
dum país do Sul.
Vou ao cinema. As raparigas ao meu lado riem com a apresentação do Vai e vem; escandalizam-se com as letras do genérico do Irreversível e uma delas fica tonta nos primeiros segundos de filme. Trago comigo um saco e ocorre-me oferecer-lho, pelo sim, pelo não. Finalmente, calam-se; no limite, mas calam-se.
Foi esta a primeira vez que vi o Irreversível. A certos filmes não me passa pela cabeça exigir que sejam outra coisa além de filmes, mas para tal têm de ser mesmo muito bons... foi o caso; não me lembro de ter gostado tanto de um filme do primeiro segundo de genérico até ao fim. Nem faltou Beethoven, a 7ª Sinfonia, uma das minhas ideias de suprema intensidade e genialidade sonora. Saí rendida.
O saco que pensei oferecer à rapariga era da MC. A MC está com uma promoção da Blue Note, cds a 7.80 euros - não se faz! Estou como um certo personagem de Dickens para o qual Londres tinha só as poucas ruas onde ele ainda podia passar. O meu mapa de Lisboa começa a ficar cheio de vias interditas. Pelo menos enquanto não aprender a ser uma pessoa crescida perante livros e cds e enquanto durar tal promoção, serei obrigada a ignorar a existência do Picoas Plaza. Não é um lugar seguro - ontem fui lá atacada por três cds que me amarraram e torturaram horrivelmente exigindo-me que os trouxesse para casa.
posted by camponesa pragmática on 11:10
Se não tivesse visto um certo filme talvez não tivesse ouvido o Trio Matamoros. Não conheço muito mais além das escassas faixas constantes da banda sonora de Guantanamera, que ouço repetidamente sempre que entro em maré de sons cubanos e que me encantam. É um som bem mais tradicional que o de Cachaito. Vive das guitarras de Miguel Matamoros e de Rafael Cueto e da percurssão de Siro Rodriguez. Uma Cuba antiga, entre os anos 20 e 30 do século passado, que é sempre um prazer visitar. Discografia: aqui.
Há umas noites apanhei um espectáculo de tambores que andava a correr o Bairro Alto e, apesar da pressa, achei excelente o facto de me terem barrado o caminho para o restaurante. Uma lição de ritmo é sempre bem vinda, mesmo porque saber o que é e sentir o que é são coisas bem diferentes. Eu penso que o ritmo fica antes de todas as coisas e que sem ele não há a básica e essencial alegria de estar aqui, nem música, nem poesia, nem teatro, nem fotografia, nem pintura, nem qualquer esperança de redenção. O ritmo está necessariamente antes de toda a criatividade, que alimenta, é inerente ao mundo, está na sucessão das noites e dos dias, das estações, nos sons do mar, nos gestos e na voz das pessoas, no movimento das cidades. Há quem compreenda isto. Há quem o demonstre muito bem. Façam pois o favor de clickar fervorosamente no link do Crónicas da Terra e ler o que diz o Luís sobre Orlando Cachaito Lopez, o ‘homem-ritmo’ (lindo elogio, Luís!), e sobre este seu incontornável cd:
Estranha gárgula do Mosteiro da Batalha que há séculos lá permanece sem que o seu segredo seja desvendado – um velho rei barbado que num gesto brutal afasta a capa que o cobre e desvenda um peito de menina escondido sob as vestes.
Hermafrodita primordial, talvez representasse os sentidos de transmutação dos opostos – o nigredo da renovação do Tempo –.
O seu ar trágico lembra-nos também o mito do velho e patético adivinho Tirésias, condenado a carregar eternamente o seu duplo feminino.
T.S. Eliot recorda-o no Waste Land e dá-lhe o papel de testemunha cega, onde convergem todos os passam todos os outros personagens
(…) At the violet hour, when the eyes and back
Turn upward from the desk, when the human engine waits
Like a taxi throbbing waiting,
I Tiresias, though blind, throbbing between two lives,
Old man with wrinkled female breasts, can see
At the violet hour, the evening hour that strives
Homeward, and brings the sailor home from sea,
The typist home at teatime, clears her breakfast,
lights
Her stove, and lays out food in tins.
Out of the window perilously spread
Her drying combinations touched by the sun's last rays,
On the divan are piled (at night her bed)
Stockings, slippers, camisoles, and stays.
I Tiresias, old man with wrinkled dugs
Perceived the scene, and foretold the rest —
I too awaited the expected guest
He, the young man carbuncular, arrives,
A small house agent's clerk, with one bold stare,
One of the low on whom assurance sits
As a silk hat on a Bradford millionaire.
The time is now propitious, as he guesses,
The meal is ended, she is bored and tired,
Endeavours to engage her in caresses
Which still are unreproved, if undesired.
Flushed and decided, he assaults at once;
Exploring hands encounter no defence
His vanity requires no response,
And makes a welcome of indifference.
(And I Tiresias have foresuffered all
Enacted on this same divan or bed;
I who have sat by Thebes below the wall
And walked among the lowest of the dead.)
Bestows one final patronising kiss,
And gropes his way, finding the stairs unlit (…)
Quando Narciso morreu, o seu lago de prazer passou de uma taça de doces águas para um cálice de lágrimas salgadas, e as Ninfas dos Montes lamentaram-se, enquanto atravessavam os bosques, no seu dever de cantar ao lago e reconfortá-lo.
E quando elas viram que o lago tinha mudado de uma taça de doces águas para um cálice de lágrimas salgadas, soltaram as tranças verdes dos seus cabelos e choraram para o lago, dizendo-lhe: «Não estamos admiradas que mergulhes dessa maneira no luto por Narciso, tão belo ele era.».
«Mas, o Narciso era belo?», perguntou o lago.
«Quem o poderá saber melhor do que tu?», responderam as Ninfas. «Por nós passou ele sempre mas foi por ti que procurou e se deitou nas tuas margens e olhou para ti. E foi no espelho das tuas águas que reflectiu a sua própria beleza.»
E o lago respondeu: «Mas eu amei Narciso porque enquanto ele se alongava sobre as minhas margens e olhava para mim, em baixo, no espelho dos seus olhos, eu vi sempre a minha beleza reflectida.»
Publicado originalmente em finais de 2001, este romance desde logo foi considerado mais um feito literário de Wladimir Kaminer tendo sido louvado por toda a crítica e obtido uma excelente recepção junto do público.
Uma obra onde as noções de reescrita, de recriação e de reinvenção se cruzam num jogo pós-moderno em que o autor se autobiografa brincando com o discurso de forma a criar vários textos e níveis de realidade numa obra aparentemente simples.
Com um humor e ironia únicos, Wladimir Kaminer narra a vida heróica da sua própria pessoa, acompanhando a evolução da União Soviética da era Brejnev até à Perestroika. O Kaminer personagem é um falador e mentiroso compulsivo que desafia constantemente o sistema. A sua maneira de ver e interpretar o modo de vida soviético é hilariante e o modo pelo qual o subverte e domina é genial: desde a escola onde, devido à sua facilidade de expressão, é eleito o informador político oficial, até à sua passagem pelo teatro – teatro onde se recusam representar peças de autores russos - , até ao exército onde se torna responsável pela escolha da música que se poderia ouvir à noite nas camaratas.
Todo este romance é uma hilariante reflexão sobre o poder subversivo do discurso num país e numa época da História, em que menos se esperaria que pudesse ter tido lugar.
posted by picatostes on 14:06
O Umbigo Niilista acha que “uma citação pode ter propriedade mesmo sem o conhecimento literal da obra citada” e que “quando é só pose e vacuidade, dificilmente se consegue ir além disso, por mais e melhores citações empregues”, isto para discordar um pouco do Aviz que, por sua vez, concordava com as Crónicas Matinais, onde se lê «Agora todos, ou quase todos, citam muito. Compram as muitas e boas enciclopédias que há e o conhecimento fica por elas formatado. Citam muito, conhecem os nomes dos pensadores, analistas, comentadores, filósofos, etc. Citam a torto e a direito mas, pergunto eu, terão realmente lido as obras ? analizado as ideias? pensado em vez de decorado? [...] Por cada citação que leio de Horácio, Virgílio, Dante, Milton, Shakespeare ou Camões eu tremo. Tremo porque temo que a citação tenha sido fruto de uma pesquisa "googoleana" , enciclopédica, para inglês ver. E isso faz de mim, actualmente, uma fundamentalista!»
O Rain Song tem um texto intitulado “Cite-me, por favor!”, a propósito da página d’O Citador. Há muito devia ao Paulo Silva uma nota sobre a sua página. O José Manuel adiantou-se-me e bem, já que a minha falta de tempo aliada à indolência me impediriam de o fazer durante longos meses. Perante esta convergência de textos sobre citações tive hoje de fazer um esforço. Subscrevo o que se diz no Rain Song sobre O Citador. Com uma reserva de pedra quanto a citações nietzscheanas - por se tratar de um mundo único com um dicionário próprio, reunido de forma dispersa pelos seus muitos livros, citar Nietzsche na melhor das hipóteses é inútil e na pior das hipóteses é deturpador, perigoso e leviano. Só um parágrafo de Nietzsche dá acesso exacto e inteligível aos significados do parágrafo seguinte. Só um livro de Nietzsche dá acesso ao livro seguinte.
Talvez a impossibilidade de citação isolada de Nietzsche, sendo, como é, manifesta, revele a subtil impossibilidade de citação de qualquer autor. Mas a página do Paulo Silva, apesar de todas as reticências que eu tinha contra as citações, e que lhe dei a conhecer, obriga-me a dar o braço a torcer. O Paulo é um leitor sério, um devorador, anotador, analisador, pensador de livros. E não se fica pelos gurus de cada autor. Quando um autor lhe interessa, o Paulo reúne, lê e anota os livros que pode. Ninguém lê à toa e o holy grail livresco do Paulo é aquele que eu mais admiro – a muito humana faculdade de pensar. Afinal, e ao contrário do que eu era levada a crer pelos meus preconceitos, shame on me!, é possível cumular as seguintes características: ler e pensar livros, ser inteligente e disciplinado, gostar de citações. E venham más-línguas dizer que o Paulo é a excepção que confirma a regra - se a excepção é tão inspiradora, quem quer saber da regra?
posted by camponesa pragmática on 12:58
segunda-feira, julho 07, 2003
Mark Rothko
"Analisemos por um momento um espírito vulgar no decorrer de um dia vulgar. O espírito recebe uma miríade de impressões - triviais, fantásticas, efémeras, ou gravadas coma veemência do aço. Surgem de todo os lados, chuva contínua de átomos inumeráveis, e, à medida que vão caindo, à medida que vão tomando a forma de uma segunda ou terça-feira, a ênfase recai de um modo sempre diferente, o momento com importância já não é este mas aquele; fosse o escritor um homem livre e não um escravo, pudesse ele escrever sobre aquilo por que optou e não sobre aquilo a que o obrigam, pudesse ele fundar a obra sobre o seu próprio sentimento e não sobre a convenção, não haveria nem enredo, nem comédia, nem tragédia, nem interesse amoroso, nem catástrofe segundo os cânones estabelecidos, porventura nem um só botão pregado à moda dos alfaiates de Bond Street. A vida não é uma série de semáforos simetricamente dispostos. A vida é um halo luminoso, um sobrescrito semi-transparente que nos envolve do primeiro ao último momento de consciência. Não consistirá a tarefa do escritor em nos comunicar este espírito mutável, desconhecido, sem limites definidos, qualquer que seja a aberração ou complexidade que apresente, confundindo-o o mínimo possível com tudo aquilo que lhe é exterior ou alheio? Não nos limitamos a defender a coragem e a sinceridade - estamos a sugerir que a matéria própria da ficção é algo diferente daquilo que temos sido habituados a pensar."
Virginia Woolf, "A Ficção Moderna" in O Momento Total. Ensaios de Virginia Woolf,1985.
«[...] para evitar acusações de discriminação por idade, pessoas idosas só podem aparecer se estiverem a "fazer compras, dançar, participar em desportos activos"; não podem ter "bengalas, sapatos ortopédicos ou cadeiras de rodas" e é proibido mostrá-las em cadeiras de baloiço, a tricotar, em jogos sedentários como jogar cartas, ou a "falar do antigamente". [...]»
- texto de Pedro Ribeiro, sobre a censura que os grupos radicais, à esquerda e à direita, têm vindo a impor nas escolas dos EUA, a propósito do livro "The Language Police", de Diane Ravitch - no Público de hoje.
Ir à livraria sem preparação prévia e sem um objectivo, arrastada por amigos, requer muita disciplina. A seis metros de distância, as estantes da poesia tornam-se demasiado apelativas. Avanço com cuidado. Durante meia-hora, folheio, leio, releio e resisto. Embriagada pela vitória contra o gasto, dou alguns passos até às estantes de fotografia – ainda mais apelativas, aí, os deslizes são muito mais perigosos. Uma ideia luminosa me ocorre: folhear livros que já tenho. Vislumbro The Americans, de Robert Frank, e aproximo-me tranquilamente. No momento em que lhe vou pegar, o olhar escapa-me para o livro à esquerda: London/Wales – Robert Frank (1951-52). Prendo-o entre os braços em menos de um ai. Sento-me e vejo as fotografias uma a uma. Impressões impecáveis. Cinzentas e baças, como o nevoeiro. Quotidianas. Negligentes. Perfeitas. Há páginas com provas de contacto pelo meio. Pequena, respiro de alívio com uma ou duas fora do tempo médio. Divirto-me a observá-las, a tentar adivinhar quais terão sido as escolhidas. O ritmo do livro é o ritmo de um dia e, nele, uma cidade, tão extraordinariamente fotografada que cada página aberta ofusca qualquer outra realidade, acorda, caminha sonolenta para o emprego, sob o chapéu do banqueiro, sob as vestes do operário, sob a chuva, e regressa à hora do lanche, com joelhos esguios, bibes sujos e correrias de miúdos. O grão destas fotografias é um dos mais bem aplicados e conseguidos que já vi. O mais bonito em Robert Frank é a nítida ausência de preocupação formal - o gosto e o vagar de ver. Página a página, sei que não vou separar-me deste livro.
Ainda a propósito da loucura, podem ver algumas fotografias de Raymond Depardon no boogie. Estas fotografias foram feitas há algumas décadas atrás em hospitais psiquiátricos italianos e são impressionantes.
O site de onde foram retiradas chama-se Les Fous Rebelles e merece uma visita demorada.
Se estiverem mesmo interessados no tema, aconselho a leitura de um extraordinário documento que o site oferece: Pas si fous – Un schizoprène se raconte.
J'avais sept ans lorsque j'ai été déclaré psychotique. Douze lorsqu'un psychiatre réputé posa le diagnostic de "schizophrénie infantile", et me prescrivit ces "camisoles chimiques" que sont les médicaments neuroleptiques.
Cansadas de se terem contraído todo o inverno as árvores de repente gabam-se de ser enganadas: soltam as suas palavras, uma onda, um vómito de verde. Tentam alcançar uma folheação completa de palavras. Tanto pior! As coisas arranjar-se-ão como puderem! E, na realidade, arranjam-se! Nenhuma liberdade na folheação… As árvores lançam, pelo menos é o que pensam, não importa que palavras, lançam caules para neles suspenderem mais palavras: os nossos troncos, pensam elas, aqui estão para tudo assumirem. Esforçam-se por se esconderem, por se confundirem umas nas outras. Julgam poder dizer tudo, cobrir inteiramente o mundo com palavras variadas: mas não dizem senão «as árvores». Incapazes até de reter os pássaros que delas voltam a partir, embora se alegrassem por terem produzido tão estranhas flores. Sempre a mesma folha, o mesmo modo de desdobramento, e o mesmo limite, sempre folhas simétricas umas às outras, simetricamente suspensas! Tenta mais uma folha! – A mesma! Mais outra! A mesma! Em suma, nada poderia pará-las senão de súbito sta observação: «Não se sai das árvores por meios de árvore». Um novo cansaço, e uma nova mudanção moral. «Deixemos tudo isto amarelecer, e cair. Que venha o taciturno estado, o despojamento, o OUTONO.»
Manuel Alberto Valente faz, no seu blog, uma pequena reflexão sobre a edição:
Vão longe os tempos em que um editor publicava apenas os livros de que gostava. Já ninguém o faz, mesmo aqueles que, para auto-promoção, dizem fazê-lo. Publica-se o que dá para poder publicar-se o que não dá. É bom que se perceba esta dinâmica. Muitos livros "minoritários" ficariam sem editor se não fosse a existência dos best-sellers que os sustentam
Não concordo totalmente com esta afirmação. A liberdade de editar o que se quer depende também da estrutura da empresa. Há lugar no mercado para pequenas editoras, para mais com as facilidades e economia que a paginação electrónica trouxe ao sector. É certo que publicam poucos títulos e facturam pouco mas conseguem subsistir porque têm um público fiel e atento. É o caso da Hiena, & etc, Frenesi ou Antígona.
Claro que há editoras que, por causa da sua dimensão, não se podem dar a esse luxo. Têm de assegurar uma facturação elevada o que as obriga a seguir as ingratas regras da indústria editorial.
Mas o ritmo estonteante a que se edita, aliado a problemas nas relações com as livrarias têm criado algumas preversões no mercado. Hoje em dia os livros têm um tempo de vida cada vez mais pequeno e esses tais livros que se editam à sombra dos best-sellers correm o risco de apodrecer num armazém... e lá se vai a boa intenção.
Podemos alegar que problema é estrutural e que competiria ao Estado fazer algo para aumentar os índices de leitura. É verdade. De facto a única coisa notável que o Estado tem feito para tentar inverter os números, passa pela criação de bibliotecas o que, sendo de louvar, fica muito aquém do desejável.
No entanto, penso que as próprias editoras poderiam dar umas achegas para alterar esta dinâmica. No fundo também são elas que criam as regras, não é? Mas para isso era preciso que se entendessem e tomassem medidas em conjunto…
Sonhos; no fundo deles depreendemos a inclemente
investida da realidade de um poema de Sigfús Dadason (citado no livro)
Páll Ólafsson é o personagem principal deste livro. Páll não é uma pessoa normal mas também não é um louco varrido. A sua loucura surge lentamente. É um fiozinho que cresce e se torna cada vez mais insuportável. Páll morrerá como o cavalo malhado do sonho da sua mãe.
Nessa altura, os cavalos partiram a galope e o malhado ficou para trás. Corria em círculos, comportando-se de forma muito estranha. Depois, tentou galopar como os outros, mas tropeçou e caiu.
Quando a mamã chegou ao pé dele, jazia por terra, morto.
“Anjos do Universo” divide-se em duas partes. Na primeira, que acompanha a infância e adolescência de Páal, a loucura é ainda insipiente, apenas uma suspeita. Como diz Baldvin (que, do outro lado da loucura, é o Rei do Império britânico): "Páll é um menino protegido pelos anjos”.
Mas na segunda parte já nada lhe vale. Abandonado pelos anjos, Páll transforma-se num sombra ambulante, disforme, por causa dos comprimidos e dos seus efeitos e estranho a si próprio.
É Viktor que o afirma. O louco que decora Shakespeare e Hitler, o charmoso que encena uma das cenas mais brilhantes do livro: o jantar no luxuoso restaurante panorâmico Grillid no Hotel Saga.
O retrato do hospital Kleppur, dos seus doentes e dos seus médicos (o sensível e excepcional Brynjálfun), enfermeiros e terapias é excelente.
Na lombada descobro que Éinar Mar Gudmundsson é poeta e isso nota-se em todo o livro. É uma bela história sobre a progressão da loucura e sobre a linha ténua que a separa da normalidade.
A edição é da Canguru.
Nota: a imagem é do filme de Fridrik Thor Fridriksson que adaptou o livro.
que hay detrás de esa puerta?
No llames, no preguntes, nadie responde,
nada puede abrirla,
ni la ganzúa de la curiosidad
ni la llavecita de la razón
ni el martillo de la impaciencia.
No hables, no perguntes,
acércate, pega la oreja:
no oyes una respiración?
Allá del otro lado,
alguien como tú pregunta:
qué hay detrás de esa puerta?