sábado, julho 12, 2003
Numa conversa casual com o Bernardo Rodrigues o nome do arquitecto Manuel Graça Dias veio à baila. Parece que ele ainda não tem um blog, o que é uma pena. Para remediar isso resolvi publicar um pequeno texto seu sobre a imbecilidade das colecções e das casas «decoradas» de jacto. Retirei-o de Vida moderna, um livro precioso que reune algumas crónicas escritas pelo arquitecto para o "JL" e para "O Independente". Foi editado em 1992 por João Azevedo e hoje, por acaso, encontrei uma dúzia de exemplares na fnac de Santa Catarina.
Dedicada especialmente a todos que desejam casar:
Não é a primeira vez que me põem questões do género: «as minhas paredes estão muito vazias, quero comprar quadros para as encher, o que me aconselhas?» ou «precisava de objectos para as minhas estantes, vens comigo escolher, logo à tarde?»
Invariavelmente, ensaio uma enfadonha didáctida da colecção que passa por explicar que não se compram de um momento para o outro quadros, cinzeiros, mesas, cortinados, serviços de jantar, livros.
Sempre pensei que, um pouco à maneira dos grandes aventureiros dos primeiros anos do século, dos grandes coleccionadores (modelo que é medianamente perseguido por estes meus contemporâneos e ansiosos amigos), os objectos, as gravuras, os pratos, só fazem sentido se carregarem a história pessoal que lhes esteve na génese. Só merecerão as nossas paredes se forem amados, desejados, obtidos com dificuldades (económicas, prestações, perigos).
Como troféus de caçadas (ideia, finalmente, que lhes estará na origem), ornamentarão o nosso ambiente, rodearão os nossos actos futuros, sempre cheios de passado, de peso e densidade, prontos a fazerem-nos contar uma história, um motivo, um tema.
A «colecção instantânea» arrrepia-me. Nada se mereceu, nada se conquistou, é tudo fruto do mais grosseiro dos acasos, da desordem circunstancial de determinada loja em determinado dia de semana de um qualquer ano.
Nesse dia «fez-se» a colecção, moldou-se um ambiente para sempre.
Também me afligem os jovens casais que não descansam enquanto, no subsequente mês ao casamento, não equipam toda a casa com candeeiros, dúzias de cadeiras, paredes inteiras de estantes onde alinham desgarrados objectos que, num esforço desmemorizado, os colegas do emprego lhes ofereceram, à toa. Penso que esses casais deveriam pugnar por uma grande despensa/arrumação onde guardassem toda a quinquilharia, exibindo a casa vaga, espartana, branca, como uma tela virgem onde ao longo dos anos pudessem vir a inscrever a vida, as viagens, as zangas, os filhos, as fotografias de domingos longos, um móvel apanhado no lixo, os primeiros desenhos de um sobrinho. Isso será um ambiente, o ambiente deles, o que os distingue dos amigos, do sítio onde cada um acumula o pó, onde ficam os jornais velhos, os cadernos de liceu, embalagens gastas de remédios, anúncios recortados de casas melhores.
Compreendo bem que Andy Warhol morresse com pilhas de caixotes por desempacotar; que Picasso mudasse de casa com crises de nervos quando as criadas lhe alteravam a dessarrumação.
Uma casa é um sítio onde nos arquivamos, onde guardamos a nossa memória, única, pessoal.
Quem sabe dos meus livros, dos meus sublinhados, daquilo que roubei ao correr dos anos?
Vai-se à feira do livro comprar porque a estante está vazia? Adquirem-se lotes de gravuras para toda a vida? Porquê, então, comprar metros de gravuras encaixilhadas, quilos de pratos (e aqui convém dizer que os pratos são coisas mais ou menos destinadas a comer) que se agrupam nas paredes (porque não pôr então, também, as chávenas desses pires, as sopeiras dessas travessas ovais?), dezenas de bonecos perversos em pano, em louça, em cobre, em estanho, em pedra?
Estas casas, assim «decoradas» de jacto, só teriam correspondeste em crianças que ao fim de 15 dias já falassem, já namorassm, já telefonasem, já tivessem bigode.