sábado, janeiro 17, 2004
um quarto onde não falta nada
No quarto de João de Deus não há quase nada: uma cama, uma mesa de cabeceira com uma garrafa com água, um copo, um rádio portátil e os medicamentos. Talvez haja percevejos ou talvez não, esse assunto não foi esclarecido, nem com a ajuda de Maiakowski.
Há ainda uma cadeira e na parede esta fotografia:
Para mim a experiência de Portugal significou a experiência da arquitectura de granito e a consciência diária da sua presença: “Estamos a comer mel numa casa de granito” – o verso veio-me à mente no Alto Minho, e com ele a ideia de que o pão de milho de Portugal barrado com mel trazia ao presente um gosto de coisas que seguramente não eram indiferentes ou falsificadas.
É claro que não é apenas o granito do noroeste peninsular que me atrai a Portugal. Entre demolições e desenvolvimento indiferente, celebro num poema como “Rua do Carriçal” uma rua do Porto que, apertada entre vias de grande tráfego, de algum modo sustenta um sentido de continuidade, com algo do passado nos seus velhos muros, e num particular quintal, que é suficiente para dar a um poeta um significado próprio. Se me retorquirem que muitas das coisas que admiro em Portugal pertencem cada vez mais ao seu passado, apenas posso responder que se o passado deixar de pertencer ao presente, se for deitado fora numa qualquer febre de desenvolvimento, então o presente tornar-se-à numa estéril terra desvastada. Os poetas, com o seu amor tanto pelo passado como pelo presente, são testemunhas atentas que recusam acomodar-se a esta perigosa conjuntura da civilização europeia, a este ponto no tempo a propósito do qual escreveu Simone Weil: “Uma vez destruído o passado nunca volta. A destruição do passado é talvez o maior de todos os crimes. A preservação do pouco que dele resta deveria tornar-se nos dias de hoje quase uma obsessão”.
Alto Minho
Não, não é nesse lago entre rochedos...
Pessoa
Voam abelhas entre a rosa e o rosmaninho.
As laranjas esperam o momento da apanha.
Os cunhais de granito junto à eira,
A marca rúnica inscrita pelo pedreiro
Pedem a clarificação pelo sol oculto.
(Mais tarde, o sol descobre sobre o rio
Para mostrar até onde chegou a enchente
E manchou com lama as folhas baixas das árvores
Da cor de pedra, uma orla pétrea refletida
Na superfície calma...)
Aqui reconciliam-se o pão e a realidade
Na excelência do milho, nos nacos barrados.
Estamos a comer mel numa casa de granito.
Quinta do Baganheiro
Rua do Carriçal
Os moradores da Rua do Carriçal
na sua rua insular —
a sua Innisfree* urbana
apertada entre duas estradas —
vivem bem longe, quer seja
da psicose ou de qualquer convento, e contudo
alguém escreveu na parede
Psychotic Lesbian Nuns.
A mulher que lava o seu terraço
não sabe ler estes rabiscos
porque estão garatujados em inglês,
e vai entretanto torcendo a sua rodilha
em inocência islenha. O vizinho
encaminhou as videiras
por uma rede de arame e aparece
por entre a verdura lá em baixo
a regar um jardim em miniatura —
morangueiros em vasos de plástico, um delgado
rectângulo de terra onde
crescem couves e jarros
lado a lado, e onde rosas gigantescas
se elevam sobre alfaces,
chilas e batateiras.
Sitiados por postes de alta-tensão,
uma antena de rádio, tráfego
do fim da rua e a nota monomaníaca
de um gerador,
os carros estacionados
aglomeram-se como uma plantação de abóboras,
onde, imune a qualquer mal,
a pré-freudiana Rua do Carriçal segrega
na tarde lusitana
uma calma conventual.
Charles Tomlinson, “Poemas Portugueses”, traduzidos por Gualter Cunha e editados pela Relógio d’Água
* Innisfree é uma pequena ilha num lago do Norte da República da irlanda (Lough Gill, na província de Sligo), celebrizada num poema de William Butler Yeats publicado em 1893, “The Lake Isle of Innisfree”, onde aparece como lugar simbólico de paz e pacatez bucólica por contraste com a vida cinzenta da cidade. (nota do tradutor)
O cinema não tem consolo. Porque é película, e a película nem sequer é tão saborosa como um gelado. É uma matéria físico-química, mais salgada do lado da emulsão porque tem ácidos - isto quando se põe a língua. Não sei se dá saúde. Mas não traz felicidade. E ainda por cima nesta idade já não excita muito o egozinho. O que é que eu gostava de ser? Gostava de não ser cineasta, não ser artista, ser gente simples, passando despercebidamente pelo grande magma social. Isto pressupõe uma certa inveja: não é a inveja de não ser um grande cineasta como o Murnau, é a inveja de não ser afável e simpático como o marido da minha porteira. Não consigo ser. Porque mexo em coisas que têm a ver com a criação, com a arte.
Lisboa, 1989: Um pobre-diabo de meia idade vive no quarto de uma pensão barata e familiar, na zona velha e ribeirinha da cidade. Atormentado pela doença, e por vicissitudes de ordem vária, o idiota, que se alimenta de Schubert e, quiçá, de uma vaga cinéfila como forma de resistência à miséria, é posto no olho da rua, após tentativa fruste contra o pudor da filha da dona da pensão.
Sozinho, e privado de quaisquer recursos, vê-se confrontado com a dureza do espaço urbano, e é internado num hospício, de onde sairá por ponderada decisão de homem livre, para cumprir uma missão "rica e estranha" que lhe é indicada por um velho amigo, doente mental como ele: "Vai, e dá-lhes trabalho!".
Se alguém perdeu um cão de grande porte, pêlo bege, gorducho, na zona entre a Estefânia e o Martim Moniz (pelo menos é por aqui que anda), é favor contactar a Janela! É nitidamente um cão de casa e preferimos pensar que alguém deixou a porta aberta e um incidente aconteceu. Na pior das hipóteses, já estão a ser tomadas medidas para se arranjar nova casa.
Peço desculpa por não se tratar de um post janelesco, mas nestas situações temos de usar o que está ao nosso alcance...
posted by picatostes on 12:26
Com o teu melhor punho garroteias o tronco peniano para que o fluxo sanguíneo se comprima em torno da coroa da glande. Quando esta se apresentar rúbida e tumefacta, seguras a pele do prepúcio com a ponta do polegar e do indicador e sopras-lhe para dentro..prueeeeeee... conservando-a sempre muito esticada e hermeticamente colada aos lábios, tchuuc..tchuuc, tchuuc..tchuucc... do mesmo golpe, cuspinhando...ptuu...ptuuu... depressa e bem, até que fique cheia como um odre. Tapas muito bem tapadinha e deixas o todo murchar em branda evanescência.
— e o parlamentar?
—Lavrará o seu protesto. É uma questão de tempo. Já lhe falece o ímpeto falocrático, não evita a sofreguidão e acabará por bufar: “Então, amor, não chupas?”.
— E não chupo?
— Não. Era o que faltava. Explicas-lhe, com bons modos, que na China ninguém chupa, que essa prática é mais própria de sanguessugas que de seres finamente civilizados. Neste passo, o tribuno vacila, entaramela-se-lhe a voz, quer gritar pela mãe, mas não pode: tem a minhoca à mercê, escancarada à rés pública. A democracia está salva, ou, pelo menos, o que dela resta, na sua grotesca expressão teatral. Que após acesa discussão discussão, dura batalha no hemiciclo, legisla: “ o broche chinês, também designado por brochim, devido à sua remota origem asiática, é especialmente recomendado para senhoras ou meninas que não se sentem cativadas pela arte de bem o fazer, ressalvando que os incentivos, que no âmbito comunitário, lhe serão facultados, devem inserir-se numa rigorosa política de desenvolvimento das indústrias de recreio e lazer, pelo que o seu exercício será obrigatoriamente orientado por profissionais altamente qualificadas e com sobejas provas dadas em tão laboriosa e intricada tecnologia de ponta.”
A velha puta pode, enfim, sorrir.
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— Quando é que nos voltamos a ver?
— Quando formos suficientemente velhos. Por ora, hesitamos como toda a gente. Aqui entre nós, e não deixa de ser engraçado, o brochim é o broche dos broches, a súmula. Mas esta gentalha nunca o saberá. Para a corja nem uma sede de água.
"Cenas Infantis com Robert Schumann", de Brice Pauset estreia hoje no Teatro Sá de Miranda em Viana do Castelo e amanhã chega ao Porto. Mais pormenores aqui.
Tomei duche quente, levei um copo de leite com mel para perto do sofá, enrosquei-me e abri "O mundo de Mafalda", com que fui presenteada no Natal. Eu que passei anos a dizer mal do livro branco, que o vermelho chegava perfeitamente, devorei sem remorsos os textos e as tirinhas excedentes, onde muita coisa se explica, além de vingarem, mesmo ao fim de todos estes anos, aquele desgosto tremendo que senti quando acabei o último volume da colecção clássica, razão pela qual, em criança, passei directamente da Mafalda para os outros livros do Quino, com consequências irreversíveis.
Lá está, nessas tirinhas da Mafalda que não conhecia, sublime passagem: "Não faz sentido falar a sério com alguém que está a brincar e se estivesses a brincar eu não te levaria a sério. É uma situação complicada. Eu não gostaria de estar no teu lugar...". Que lindo!
Hoje entro nas tirinhas conhecidas pela 5ª ou 6ª vez. Isto não é reler a Mafalda, é ler mais uma vez pela primeira vez a Mafalda. Não percebo o que é mas está lá uma coisa que só está lá. A diferença é que antigamente tinha de pedir o livro emprestado e agora há este exemplar só meu. Caramba, que independência!
1. "Sou um drogado do cinema. Fazer filmes é simplesmente um modo de justificar a minha existência aqui e agora", diz Saguenail ao JN. E continua: "Metade do Porto é um sonho americano importado. A outra metade é ruína", e diz ainda mais...
2. “A minha actividade submarina tinha a ver com uma espécie de tranquilidade porque a água do mar é, por sinal, muito parecida com o líquido amniótico, e por uma ameaça, porque respirar debaixo de água é uma coisa completamente paradoxal. Mas isso vinha do meu amor pelo mar. Nas fotografias, a água, os rios, o gelo... já reparou que um charco que reflecte luz é um paradoxo "in se"? É que a luz que vem de um charco vem de baixo para cima em vez de vir de cima para baixo. Daí o meu fascínio pelos charcos. Ainda hoje, quando vejo uma poça de água (risos), vão para ali as tentativas... “
Gérard Castello-Lopes entrevistado por Kathleen Gomes no Público a propósito de "Oui Non" uma ampla retrospectiva da sua obra que inaugura hoje no Centro Cultural de Belém. A não perder, ambas.
3. “A relação de um simples soldado com uma hierarquia militar limitativa, sempre em tensão, pode ser vista como uma metáfora da relação entre o indivíduo e a sociedade, sempre cheia de regras de convivência e de comportamento. Depois há o amor, a desilusão, o ciúme, um conjunto de emoções que levam muitas vezes a atitudes irreflectidas, mas genuínas, boas ou más. No fundo o que passa por "Woyzeck" é a natureza humana, com toda a sua crueldade, ternura, fraqueza”, dizJosef Nadj, que anda por aí (Évora, Viseu e Lisboa) a dançar Woyzeck.
— Bom-dia senhor João! Está a olhar para ontem?
— Bons olhos a vejam menina Custódia, nem tinha dado por si.
Neste ontem que foi hoje, só se olha para o nunca-mais-é.
—Mesmo com uma manhã tão linda, cara-sem-olhos é o que é.
—Sem olhos vi o mal claro, que dos olhos se seguiu, pois cara-sem-olhos viu, olhos que lhe custam caro.
D’olhos não faço menção que quereis q’olhos não sejam, vendo-vos, olhos sobejam, não vos vendo, olhos não são.
Seja bem aparecida. Vai de abalada até aos Grandes Armazéns?
— Lá terá que ser.
Tenho estado de férias em Paris.
— Sim, senhora.
Paris étoujours Paris.
—Subi até ao topo da Torre Eiffel, com todas aquelas luzinhas a perder de vista, mas ninguém me reconheceu.
—É íngreme e árdua a escadaria da fama. É preciso perseverar.
—Começaram logo a fazer pouco quando lhes disse que tinha ganho o título de miss Piscina....
—eurr... e sem espinhas, era a mais bela.
—realmente, até fui sufragada.
—O que é bom na freguesia das Mercês, é bom nos Champs Elisées
"The American poet Robert Duncan described the process of composing poetry as an open field --as though words formed their meaning directly and concretely on this "landscape made of paper." I have always felt the visual experience, landscapes, architecture, ancient forms and the monoprints I create from these places as an open field sensitized to whatever I could bring to it and receive from it. Photographing and printing has always been an act of transformation from the literal to the imagined, and from the seen to the felt. ..."
posted by camponesa pragmática on 22:07
...
We are living in a period in which many people have changed their mind about what the use of music is or could be for them. Something that doesn't speak or talk like a human being, that doesn't know its definition in the dictionary or its theory in the schools, that expresses itself simply by the fact of its vibrations. People paying attention to vibratory activity, not in reaction to a fixed ideal performance, but each time attentively to how it happens to be this time, not necessarily two times the same. A music that transports the listener to the moment where he is.
...
For this recording, I focused on particular aspects of Cage: the sense of wonder, the feeling for beauty, the love of theatre, the fascination with words and sounds of all sorts and, of course, silence.
Each of the songs has its own emotional and acoustical space, some of which have been dictated in performance notes, some are indicated by the music itself. Unless otherwise stated, the notes instruct the singer: "To be sung without vibrato, as in folk singing."
In choosing these works I saw myself as singing through Cage, as he has done, writing through or reading through texts in order to study, to learn, to comprehend more fully.
Finally, "Singing Through" is a love song for my mentor to my mentor, my friend.
Com ideia de incluir verbo bisnacar na língua portuguesa veio Jorge em caixa de comentários indiscreta. Tendo particular simpatia pelo ziguezaguear do dicionário pelo tempo e pelos costumes, fui por link teletransportador depositada em predisposição de ideia bonita no Lâmpada Mágica. Após leitura de post dei comigo em dúvida delirante – se o que fazemos na blogosfera é bisnacar e se bisnacamos na blogosfera portuguesa, não será o verbo bisnacar uma forma polida de dizer que nos desdobramos, diluímos e dispersamos em infinitas conversas de café porém escritas, mais ou menos coerentes e geralmente isentas de erros formais? O verbo mais apropriado não seria pois bifanar?
posted by camponesa pragmática on 13:08
Nesta casa vi céus de todas as cores existentes, tonalidades infinitas, céus todos os dias diferentes. Durante cinco anos vivi intenso encantamento com esta janela e com o que dela se via, que era essencialmente espaço. Fotografei-a todos os dias, a cores e a preto-e-branco, a todas as horas, com sol, a chover, com a cidade mergulhada em nevoeiro, com a luz doentia das tempestades, com e sem nuvens, com as escadas de incêndio e sem as escadas de incêndio, sem rio ao fundo e com rio ao fundo, com roupa estendida e vento e os fantasmas inevitáveis. Fotografei-a em qualquer estado de espírito, por mais improvável que fosse, num esquecimento absoluto de tudo.
Não sei digitalizar, isto foi cortesia da Cristina :)
«Era uma coisa evidente aos olhos de toda a gente. Viviam na mesma casa, juntos, e nunca se separavam. Por conseguinte, e segundo Mrs. MacPhail, uma velha metediça com o nariz coberto de verrugas e que nunca estava quieta, e algumas outras, aqueles dois viviam em pecado. Se eram parentes, tratava-se de parentesco afastado e mesmo isso não havia maneira de se provar. Ora, Miss Amélia, com mais de seis pés de altura, era uma pessoa desajeitada e o primo Lymon um anão que mal lhe chegava à cintura. Mas tanto melhor para Mrs. MacPhail e suas comadres, gente que se regozija com ligações discordantes e mais dignas de dó que doutra coisa. Assim seja. Os sem-malícia, por seu lado, pensavam que, se os dois extraíam prazer físico um do outro, era assunto que só dizia respeito aos próprios e a Deus. Mas todas as pessoas sensatas concordavam - e a sua posição era clara - que não era esse o caso. De que natureza era, então, este amor?
Em primeiro lugar, é uma experiência a dois, mas isso não quer dizer que seja a mesma coisa para cada um. Há o que ama e o que é amado, e estes dois eram diferentes como o dia da noite. (...)»
A composição "4'33 (para nenhum instrumento ou combinação de instrumentos)" escrita por John Cage vai ser interpretada pela primeira vez por uma orquestra, a Sinfónica da BBC no Barbican Hall, em Londres, e transmitida em directo pela rádio da mesma estação na sexta-feira. São quatro minutos e 33 segundos de silêncio completo e foram precisos 50 anos para que a obra mais emblemática de Cage chegasse ao grande público.
…
“João Gilberto podia estar lendo o jornal que mesmo assim soaria bem”, disse certo dia Miles Davis e creio que tinha toda a razão.
João Gilberto (1973, Brasil): Águas de Março, Undiú, Na Baixa do Sapateiro, Avarandado, Falsa Baiana; Eu Quero um Samba, Eu Vim da Bahia, Valsa (Como são lindos os Youguis) (Bebel), É Preciso Perdoar, Izaura.
Cada palmeira na estrada
Tem uma moça recostada
Uma é minha namorada
E essa estrada vai dar no mar
Cada palma enluarada
Tem que estar quieta parada
Qualquer canção quase nada
Vai fazer o sol levantar Vai fazer o dia nascer
Namorando a madrugada
Eu e minha namorada
Vamos andando na estrada
Que vai dar no avarandado do amanhecer
No avarandado do amanhecer
No avarandado do amanhecer
segunda-feira, janeiro 12, 2004
Antigos Mestres, uma comédia de Thomas Bernhard
A Alexandra já leu. Eu acho que Thomas Bernhard é um dos escritores mais perigosos que já li, e isso tem muito a ver com o seu método de explorar tudo aquilo de que fala até um limite dificilmente suportável,disse ela.
Eu comecei no fim-de-semana e ando às voltas, cinquenta, sessenta, setenta páginas de cada vez e um descanso depois, acabo logo à noite. Lê-se de fôlegos grandes, quase em voz alta, com sorrisos e até gargalhadas, por causa do sarcasmo, da ironia, daquele retrato de um país tão odiado ou da benevolência com o sul (ah, fosse ele português e mudaria de opinião, aposto), mas lê-se também com um certo desconforto porque não há meta com Bernhard, desde o princípio que sabemos disso, não vamos chegar a nenhum lado, é só caminho, não vamos ganhar nada, pelo contrário acabamos de mãos a abanar, ainda mais vazias. Mas mesmo assim ou por causa disso (sim, por causa disso) gosto do modo descontrolado como ele se deixa ir e nos leva até esse limite insuportável de que fala a Alexandra. Gosto dos recursos de malabarista e do ritmo das frases: as repetições, as obsessões, as contradições e a música, sempre a música.
Não sigo uma ordem cronológica, comecei o meu percurso com ?O sobrinho de Wittgenstein ? Uma amizade? (edição da Assírio & Alvim), depois ?O Náufrago? (da Relógio d?Água), li os poemas de ?Na Terra e no Inferno? (Assírio & Alvim) e agora entreguei-me aos ?Antigos Mestres - Comédia? (também da Assírio & Alvim e diga-se que as traduções, notas e prefácios de José A. Palma Caetano são excelentes). Desde o primeiro livro fiquei fascinada com o Thomas Bernhard mas ainda não sei porquê, nem sei se quero descobrir. Neste livro ele avisa-nos que não devemos ler tudo totalmente e estou decidida a não o fazer. É isto a sedução, não é?
Não gostamos de Pascal por ele ser tão perfeito, mas por ele ser no fundo, tão fraco, tal como gostamos de Montaigne por causa da sua fraqueza, que andou a vida inteira à procura sem nunca encontrar, Voltaire por causa da sua fraqueza. Gostamos da filosofia e de todas as ciências de espírito só porque elas são de uma absoluta incapacidade. Na verdade só do que nós gostamos é dos livros, que não são nenhum todo, que são caóticos, são indefesos. E assim acontece com tudo, disse Reger, a uma pessoa também nos afeiçoamos de uma forma muito especial porque ela é fraca e não é nenhum todo, porque é caótica e não é perfeita.
Esta fotografia já passou por aqui mais do que uma vez mas na última quinta-feira, logo no começo do filme – A Falha, de João Mário Grilo na 2 –, a câmara fazia uma panorâmica pela sala e lá estava ela de novo e depois do filme visto achei que a fotografia já contava a história toda e é esta a razão de voltar a Gérard Castello Lopes.
...
Jorge P. Pires (Expresso, 29.01.2000) – Ao mesmo tempo, essa sua famosa fotografia da pedra também é uma expressão do seu gosto pela arte do paradoxo.
Gérard Castelo Lopes – O meu olhar tem hoje uma liberdade que não tinha, e eu precisava de formular uma ideologia fotográfica, um esquema, um plano - dizer que a realidade não é aquilo que vemos. Tenho portanto esta ideia de que é possível que as aparências iludam, que o avião no ar vai parado, que as coisas ao longe são realmente pequenas e não grandes como sabemos. E, se eu fotografasse a cores, que as montanhas não são sempre verdes ou castanhas - por vezes são azuis ou violetas. Mas a gente já não vê a cor do mar, porque sabe que o mar é azul. A realidade que a maior parte das pessoas vêem é filtrada pelo nome que damos às coisas. E o nome estraga a pureza, a inocência do olhar. É esta espécie de inocência do olhar - que eu não tenho, mas que ando sempre a tentar apanhar - que dá algum sentido ao que vou fazendo.
Debates em Volta dos Livros em Serralves e na Culturgest
Maria João Seixas vai orientar a Comunidade de Leitores que a Fundação de Serralves vai lançar, no Porto, a partir do próximo dia 29 de Janeiro. A iniciativa vai decorrer quinzenalmente, até 8 de Abril, com um total de seis sessões. "Estimular o gosto pela leitura e o debate de ideias através do desafio lançado a um círculo aberto de público, com base na leitura de uma obra literária", é o objectivo da comunidade, explica a Fundação de Serralves numa nota em que são também já anunciadas as obras escolhidas por Maria João Seixas: "Antígona", de Sófocles (29 de Janeiro), "Cartas de uma Religiosa Portuguesa" (12 de Fevereiro), "No Reino da Dinamarca", de Alexandre O'Neill (26 de Fevereiro), "A Hora da Estrela", de Clarisse Lispector (11 de Março), "Desconhecido nesta Morada", de Katharine Kressmann Taylor (25 de Março) e "O Leitor", de Bernard Schlink (8 de Abril).
A história de "Jane Eyre", personagem que dá título ao romance homónimo da escritora inglesa Charlotte Bronte, encontra-se agora representada neste conjunto de 25 litografias da autoria de Paula Rego que também retrata as outras duas personagens principais do romance: Bertha e Edward Rochester. Nestes trabalhos, expostos desde sábado na Galeria 111, a artista volta a abordar a condição da mulher num mundo dominado pelos homem.
"Jane Eyre, litografias de Paula Rego na Galeria 111, até dia 28 de Fevereiro
Rua D. Manuel II, 246 | Das 10h às 12h30 e das 15 às 19h30 | Encerra à 2ª, sáb. de manhã e domingo
HAITI. Port-au-Prince. December 2003. Preparations for the Bicentinary Celebrations. Celebrations of 200 years of Independence and political unrest against President J.B. Aristide. After the departure of UN and U.S. troops in 1996, Haiti has fallen off the map. The poorest country in the Western hemisphere is ruled by the formerly highly-welcomed former priest and democratic leader, J.B. Aristide and his Lavalas movement. But since the 2000 election irregularities, a steadily growing middle and upper class opposition is demanding his departure. They are trying to interrupt the pompous celebrations to mark 200 years of Independence after a slave revolt against Napoleon made Haiti the first black republic. In often violent demonstrations, the opposition clashes with police, pro-Aristid Lavalas supporters and the gang-style irregulars "chimeres."
domingo, janeiro 11, 2004
Termino esta curta viagem a São Petersburgo com mais um poema de Anna Akhmátova (também retirado de “Só o sangue cheira a sangue”, da Assírio & Alvim), dedicado a Ossip Mandelstam (que nasceu no dia 15 de Dezembro de 1891 e morreu (talvez) no dia 27 de Dezembro 1938, numa prisão na Sibéria ou a caminho dela); e ainda com o convite para outros poemas (infelizmente disponíveis apenas em alemão) e fotografias: convém vestir agasalhos, está frio na cidade branca, façam o favor, a entrada é por aqui...
Vorónej*
Toda a cidade imóvel e gelada.
Árvores, muros e neve sobre vidro.
Piso cristais a medo, o desfilar
dos trenós ornados é indefinido.
Sobre a catedral de Pedro voam gralhas,
erguem-se álamos, o verde-claro da abóbada
desbotada, baça, em poeiras de sol.
Sopram batalhas de Kulikovo os declives
da terra pujante e vitoriosa.
E os álamos tilintam sobre nós
com mais força, como taças a brindar,
como bebessem nas bodas à nossa
alegria convidados aos milhares.
No quarto do poeta em desgraça fazem
a Musa e o medo, por turnos, sua velada,
e continua a noite
que não conhece madrugada.
Anna Akhmátova, 1936
* Ossip Mandelstam passou três anos (1935-1937) exilado em Vorónej, região a oeste da Rússia, na fronteira com a Ucránia. "Cadernos de Vorónej" é o nome do seu último livro, mais pormenores aqui.
Postal e poema gentilmente enviados pela Carla Bryeva
Leningrad
I returned to my city that I know like my tears,
Like my veins, like childhood's swollen glands
You've come back here, so swallow at once
The cod liver oil of Leningrad's river lamps,
Recognize, right away, the brief December day,
Egg yolk commingled with ominous tar.
Petersburg! I'm not yet ready to die!
You've still got my telephone numbers.
Petersburg! I still have the addresses
Where I can call on the speech of the dead.
I live on a back staircase, and the clapper
Yanked out with flesh hits me in the temple,
And all night through I wait for precious guests,
Rattling like shackles the chains on the doors.
Ossip Emelievich Mandelshtam, December 1930
O original em russo pode ser visto/lido aqui. Não sei se este poema está traduzido para português mas se o encontrar prometo substituí-lo.
posted by Anónimo on 14:11
À laia de prefácio
Nos terríveis anos do ejovismo(1) passei dezassete meses nas bichas da cadeia de Leninegrado. Uma vez, até alguém me «reconheceu». Por esta altura, uma mulher de lábios azuláceos que estava atrás de mim, e que de certeza nunca ouvira sequer pronunciar o meu nome, despertou da letargia própria de todas nós e perguntou-me ao ouvido (ali toda a gente sussurrava):
— Pode contar isto?
Respondi:
— Posso.
Então, uma espécie de sorriso deslizou por aquilo que outrora fora o rosto da mulher.
Anna Akhmátova, Abril de 1957, Leninegrado
“Só sangue cheira a sangue”, tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra, edição da Assírio & Alvim
(1). De Ejov, chefe da polícia secreta (NKVD — comissariado popular dos assuntos internos), antecessor de Béria, e que, tal como este, foi no seu tempo o braço direito de Stáline. (N. da T.)
posted by Anónimo on 13:25
só o sangue cheira sangue…
Pó cheira a raio de sol,
mel bravo à liberdade,
boca de moça à violeta,
e o ouro não cheira a nada.
A reseda cheira à água,
amor à maçã rescende,
mas agora já sabemos –
só o sangue cheira sangue…
Em vão o pretor romano
se lavava as palmas grossas
sob os gritos da plebe.
E a raínha da Escócia
debalde raspava as gotas
vermelhas da mão esguia
na penumbra sufocante
da real moradia.
Anna Akhmátova, 1943
“Só sangue cheira a sangue”, tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra, edição da Assírio & Alvim
[…] Quando me visitava, Anna Akhmátova recitava poesias do «Requiem», também a sussurrar, mas na sua casa do Fontanka nem a isso se atrevia; de repente, no meio da conversa, calava-se e, mostrando-me com os olhos o tecto e as paredes, pegava num papel e num lápis, ia dizendo qualquer coisa de mundado — «toma chá?» ou «a senhora ficou muito bronzeada» — enchia o papel com umas letrinhas apresssadas e entregava-mo. Eu lia a poesia, decorava-a e devolvia-lhe o papel. «Este ano, o Outono chegou muito cedo» — pronunciava em voz alta e, riscando o fósforo, queimava o papel em cima do cinzeiro.
Era o ritual: mãos, fósforo, cinzeiro — um ritual belo e amargo.
[…]
Lídia Tchukovskaia, Notas sobre Anna Akmátova, vol. 2, «Soglácie», 1997, Moscovo
in Introdução a “Só sangue cheira a sangue”, tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra, edição da Assírio & Alvim
Josefa de Óbidos, Santa Maria Madalena, 1650, óleo sobre cobre, 22,8 x 18,4 cm, Museu Nacional Machado de Castro, Coimbra (presente na exposição virtual "Seis Séculos de Pintura Portuguesa")
A exposição "Seis Séculos de Pintura Portuguesa" é um projecto concebido e mantido por Eduardo Mota (Gouveia, Portugal). Para a sua concretização contou com a colaboração de Rui Bebiano (Coimbra, Portugal) e o apoio do Instituto de História e Teoria das Ideias da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
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