sábado, janeiro 17, 2004
Este não é para roubar, é oferta da casa:
Do mel e do Granito
Para mim a experiência de Portugal significou a experiência da arquitectura de granito e a consciência diária da sua presença: “Estamos a comer mel numa casa de granito” – o verso veio-me à mente no Alto Minho, e com ele a ideia de que o pão de milho de Portugal barrado com mel trazia ao presente um gosto de coisas que seguramente não eram indiferentes ou falsificadas.
É claro que não é apenas o granito do noroeste peninsular que me atrai a Portugal. Entre demolições e desenvolvimento indiferente, celebro num poema como “Rua do Carriçal” uma rua do Porto que, apertada entre vias de grande tráfego, de algum modo sustenta um sentido de continuidade, com algo do passado nos seus velhos muros, e num particular quintal, que é suficiente para dar a um poeta um significado próprio. Se me retorquirem que muitas das coisas que admiro em Portugal pertencem cada vez mais ao seu passado, apenas posso responder que se o passado deixar de pertencer ao presente, se for deitado fora numa qualquer febre de desenvolvimento, então o presente tornar-se-à numa estéril terra desvastada. Os poetas, com o seu amor tanto pelo passado como pelo presente, são testemunhas atentas que recusam acomodar-se a esta perigosa conjuntura da civilização europeia, a este ponto no tempo a propósito do qual escreveu Simone Weil: “Uma vez destruído o passado nunca volta. A destruição do passado é talvez o maior de todos os crimes. A preservação do pouco que dele resta deveria tornar-se nos dias de hoje quase uma obsessão”.
Alto Minho
Não, não é nesse lago entre rochedos...
Pessoa
Voam abelhas entre a rosa e o rosmaninho.
As laranjas esperam o momento da apanha.
Os cunhais de granito junto à eira,
A marca rúnica inscrita pelo pedreiro
Pedem a clarificação pelo sol oculto.
(Mais tarde, o sol descobre sobre o rio
Para mostrar até onde chegou a enchente
E manchou com lama as folhas baixas das árvores
Da cor de pedra, uma orla pétrea refletida
Na superfície calma...)
Aqui reconciliam-se o pão e a realidade
Na excelência do milho, nos nacos barrados.
Estamos a comer mel numa casa de granito.
Quinta do Baganheiro
Rua do Carriçal
Os moradores da Rua do Carriçal
na sua rua insular —
a sua Innisfree* urbana
apertada entre duas estradas —
vivem bem longe, quer seja
da psicose ou de qualquer convento, e contudo
alguém escreveu na parede
Psychotic Lesbian Nuns.
A mulher que lava o seu terraço
não sabe ler estes rabiscos
porque estão garatujados em inglês,
e vai entretanto torcendo a sua rodilha
em inocência islenha. O vizinho
encaminhou as videiras
por uma rede de arame e aparece
por entre a verdura lá em baixo
a regar um jardim em miniatura —
morangueiros em vasos de plástico, um delgado
rectângulo de terra onde
crescem couves e jarros
lado a lado, e onde rosas gigantescas
se elevam sobre alfaces,
chilas e batateiras.
Sitiados por postes de alta-tensão,
uma antena de rádio, tráfego
do fim da rua e a nota monomaníaca
de um gerador,
os carros estacionados
aglomeram-se como uma plantação de abóboras,
onde, imune a qualquer mal,
a pré-freudiana Rua do Carriçal segrega
na tarde lusitana
uma calma conventual.
Charles Tomlinson, “Poemas Portugueses”, traduzidos por Gualter Cunha e editados pela Relógio d’Água
* Innisfree é uma pequena ilha num lago do Norte da República da irlanda (Lough Gill, na província de Sligo), celebrizada num poema de William Butler Yeats publicado em 1893, “The Lake Isle of Innisfree”, onde aparece como lugar simbólico de paz e pacatez bucólica por contraste com a vida cinzenta da cidade. (nota do tradutor)