domingo, janeiro 11, 2004
Este ano, o Outono chegou muito cedo
[…] Quando me visitava, Anna Akhmátova recitava poesias do «Requiem», também a sussurrar, mas na sua casa do Fontanka nem a isso se atrevia; de repente, no meio da conversa, calava-se e, mostrando-me com os olhos o tecto e as paredes, pegava num papel e num lápis, ia dizendo qualquer coisa de mundado — «toma chá?» ou «a senhora ficou muito bronzeada» — enchia o papel com umas letrinhas apresssadas e entregava-mo. Eu lia a poesia, decorava-a e devolvia-lhe o papel. «Este ano, o Outono chegou muito cedo» — pronunciava em voz alta e, riscando o fósforo, queimava o papel em cima do cinzeiro.
Era o ritual: mãos, fósforo, cinzeiro — um ritual belo e amargo.
[…]
Lídia Tchukovskaia, Notas sobre Anna Akmátova, vol. 2, «Soglácie», 1997, Moscovo
in Introdução a “Só sangue cheira a sangue”, tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra, edição da Assírio & Alvim