Isto tudo começou o ano passado com o cianómetro que encontrei no "Jogo de Nuvens" de Göethe, no voo entre as ilhas e o continente. O escritor descrevia-o como um instrumento para medir o azul do céu. Gostei da ideia e, apesar do invento não ter hoje em dia qualquer utilidade científica, pensei recriá-la sob a forma de um pequeno livro de fotografias que mostrasse as variantes da cor do céu ao longo do dia.
Fui esquecedo o projecto porque me faltava o meio de produção (uma máquina fotográfica digital) e, admito, por uma certa preguiça mas ocorreu-me há pouco que talvez o livro se possa fazer de outra forma, isto é, com as nossas e as vossas fotografias.
Já tenho o desenho do livro na cabeça, só preciso que me enviem fotografias do céu. No enquadramento podem aparecer apenas nuvens, aviões, pássaros e outros objectos voadores não identificados. O objectivo é mostrar as variantes da cor do céu, todos os outros elementos não devem ter destaque. Junto com a fotografia devem referir o local e a hora em que foi tirada. O livro será feito em formato digital (PDF) e será gratuito por isso esqueçam os royalties. A imagem deverá ser gravada em formato jpeg, com aproximadamente 12 X 12 cms e definação de 200 pixels por polegada (para permitir uma boa impressão). Podem mandar mais do que uma fotografia e, como não faço ideia se vai haver muitas ou não, aviso já que talvez seja obrigada a deixar algumas de fora ou então, caso não haja imagens suficientes, a não fazer livro nenhum.
Quem estiver interessado pode mandar um mail de inscrição, mas por favor não enviem já as fotografias que a caixa não aguenta, eu depois forneço um endereço mais compatível com o projecto.
Ao Navio de Espelhos que festeja hoje o seu primeiro aniversário. É uma das mais bonitas e apetecíveis livrarias que conheço. Vale a pena ir a Aveiro, ir à festa, ir à prestidigitação poética de António Poppe.
sexta-feira, julho 23, 2004
Como se impunha, o programa foi alterado. A RTP está a homenagear Carlos Paredes.
music filled with such longing, such unfulfillable longing. Nas palavras de Salieri, tão a propósito recordadas pelo Tó .
posted by zazie on 22:52
A Primavera de Botticelli
Daqui a nada na RTP1- Vidas- (22.30), um documentário da BBC acerca dos mistérios da Primavera de Botticelli.
De acordo com alguns estudiosos em que se deve salientar Warburg em 1845 e posteriormente Pasnofsky, a Primavera faria pendant com o Nascimento de Vénus e os dois quadros teriam uma leitura de cariz neo-platónico numa alegoria entre o Amor Sagrado e o Amor Profano, a Vénus Terrena e a Vénus Celestial.
No Nascimento, Vénus saída das águas, despida como uma deusa, pura e imaculada, recebida por Zéfiro agarrado à amada Flora; na Primavera, a deusa fértil da época das fecundações, recebendo as setas amorosas de Cupido, ladeada pela Primavera e por Flora, a deusa da fecundação, que se escapa dos braços do vento Zéfiro para fertilizar o solo, segundo o mito da renovação das estações.
Vénus a par da deusa Deméter, responsável pela manutenção das sementeiras que na Primavera tem a recompensa da companhia da filha- Proserpina (a deusa da primavera), raptada por Vulcano e obrigada a passar o tempo invernal nas profundezas do solo.
Warburg foi o primeiro a associar esta pintura com as festividades de Maio, na poderosa corte dos Medicis que, inteligentemente, aproveitavam a tradição pagã para festejos citadinos em sua honra. O poeta Poliziano escreveu em 1475 um poema em gesta dedicado ao jovem nobre Giulano de Médicis. Segundo os relatos da festividade, as jovens florentinas percorreram a cidade num carro alegórico, largando flores à sua volta e, chegando-se perto do jovem príncipe desafiaram com cânticos o seu coração empedernido.
Botticelli teria aproveitado este acontecimento para subtilmente o referir na sua Primavera. No lado esquerdo da pintura, as jovens graças viram as costas a Mercúrio, que recusa o amor profano e ergue o braço com o caduceu, procurando repelir os farrapos de nevoeiro que se prendem aos ramos das laranjeiras. A razão que despreza tudo o que as deusas da beleza, do amor e da Primavera têm para oferecer. O jovem e casto Giulinao de Médicis representado pelo deus da Razão e da solidão, única potência psicológica que é excluída das regiões do Amor Divinus e que se auto exclui do próprio Amor humanus.
ver: Erwin Panofsky, Renascimento e Renascimentos na Arte Ocidental, Ed. Presença, Lisboa, 1981.
Não é um devaneio de Göethe, o cianómetro existe mesmo. Foi inventado em 1787 por Horace-Bénédict de Saussure. É um instrumento de meteorologia; um simples cartão com uma escala de dezasseis azuis, do mais escuro ao mais claro; uma tentativa para medir e organizar algo tão instável como é o azul do céu. Saussure pensava que através da cor do céu poderia prever o tempo.
A sua descrição encontra-se no livro "Voyages dans les Alpes" de H.-B de Saussure. Arago François e Alexandre de Humbolt também utilizaram cianómetros nas suas expedições científicas.
Estas informações foram recolhidas aqui mas são os alunos da Escola de Lully (de Genebra) que melhor descrevem o cianómetro. Ora vejam se isto não é bonito.
posted by Anónimo on 13:02
- Apanhei folhas de hortelã. Fazemos um Pimm's?
- Num copo alto, cheio de gelo, como no Claridge's.
- Não estou vestida a preceito...
- Roubamos um modelo do Galliano.
- A saia vermelha, rodada?
Há uns anos arrastavam-me para o Blues Café uma vez de quinze em quinze dias. Eu condescendi até à altura em que comecei a trabalhar todos os dias e o meu tempo livre passou a ser mais raro, mais valioso e absolutamente insusceptível de desperdícios. Nas noites em que lá ia precisava de cerca de quinze a vinte minutos para deixar de ouvir. Quando conseguia, ficava a observar o bar mudo, as pessoas mudas, tudo mudo. Isso divertia-me e permitia-me permanecer no bar de forma discreta e urbana. Certas coisas, sem som, de insuportáveis passam a hilariantes.
Outras vezes, subia as escadas e ia limpar e absolver os olhos, até que de mim, ali, só restava o meu corpo vazio. Também as fotografias nos salvam. E esta é tão bonita.
Foi durante a minha passagem pelo Café Society que nasceu uma canção que se tornou o meu protesto pessoal: «Strange Fruit». O embrião da canção estava num poema escrito pelo Lewis Allen. A primeira vez que o vi foi no Café Society. Quando ele me mostrou aquele poema fiquei logo impressionada. Parecia que falava de todas as coisas que tinham morto o meu pai.
O Allen também tinha sabido das condições em que o meu pai morrera e, claro, estava interessado na minha voz. Ele sugeriu que Sonny White e eu fizéssemos a música para o poema. Por isso juntámo-nos os três e fizemos o trabalho em três semanas. Também tive uma grande ajuda do Danny Mendelsohn, um outro músico que já me tinha feito arranjos. Ajudou-me com muita paciência a fazer o arranjo para a canção porque não tinha a certeza se conseguia transmitir essas coisas, que tinham um significado para mim, ao público de um clube fino.
Tinha medo que as pessoas a detestassem. A primeira vez que a cantei fiquei com a sensação que tinha sido um erro e tinha razões para ter medo. Não houve sequer um ameaço de palmas quando acabei de cantar. Então uma só pessoa começou a bater palmas nervosamente. E de repente toda a gente estava a bater palmas.
My faith in the Creative Writing course (...) has been strengthned considerably by a very good response to the 'What is it Like to be a Bat?' exercise. I've just looked at the work handed in yesterday, and there are some excellent, if rather ribald, parodies or pastiches. (...)
What is it Like to be a Vampire Bat?
By Irv*ne W*lsh
We goat back to the auld cave aboot the same time, Gamps n me, jist is the sun wis rizin. Scotty wis back already, hangin from the ceiling feelin sorry for hisself. Ah hud goat ma fix from one ay they Highland bullocks that feel like shagpile rugs n legs, n Gamps hud foond a sheep wi its throat torn oot by a fox, the jammy cunt, but Scotty hud goat fuckall. (...)
What is it Like to be a Bat?
By S*lm*n R*shd**
What kind of question is that, sir? With all due respect, what would you say if I asked you, 'What is it like to be a man?' You would undoubtedly reply, 'It all depends on what kind of man.' What race, what colour, what class, what caste, what situation in life? Likewise with bats. We are of many kinds. (...)
What is it Like to be a Blind Bat?
By S*m**l B*ck*tt
Where? When? Why? Squeak. I am in the dark. I am always in the dark. It was not always so. Once there were periods of light, or shades of darkness. Squeak. There would be a faint luminosity from the mouth of the cave. When it faded I knew it would soon be time to leave the cave, with the others, to go flittering throught the dusk. Squeak. Now it is always dark, uniformly dark. Whether at any given moment it is dark outside my head as well as inside, I do not know. All I know, if know is the word, and it is not, is that I can see nothing. I can feel, hear, smell, but not see. Squeak. (...)
Como sabemos pelo menos desde que Epiménides de Creta se tornou famoso pela sua frase "Todos os homens de Creta são mentirosos", é possível criar paradoxos lógicos, ou afirmações cujo valor lógico não pode ser decidido, utilizando proposições que de algum modo se referem a elas próprias. Um exemplo já clássico é o paradoxo de Bertrand Russell, sugerido pela tentativa de definir o "conjunto de todos os conjuntos". [...bla bla bla demonstrações...] Por outras palavras, não conseguimos atribuir um valor lógico à afirmação "N pertence a N" [N conjunto].
A um nível superficial, a lição a tirar deste exemplo é simplesmente que é necessário algum cuidado com definições recursivas (...).
A um nível mais profundo, no entanto, as dificuldades lógicas com definições recursivas, ou mais geralmente com proposições que se referem a elas próprias, parecem inevitáveis e estão relacionadas com alguns dos problemas mais difíceis contemplados por matemáticos e filósofos. É possível dar uma definição (rigorosa) de "definição regirosa"? Podemos compreender o funcionamento da nossa própria inteligência? Como podemos conciliar o aspecto mecânico das deduções lógicas, espelhado no funcionamento dum programa de computador, com a infinita adaptabilidade que chamamos comportamento "inteligente"? Afinal de contas, e regressando à vida "prática", este é o problema central do desenvolvimento da Inteligência Artificial.
Manuel Ricou e Rui Loja Fernandes, Introdução à Álgebra (DMIST)
Numa palestra, Russell afirmou não ser possível quebrar as regras da matemática sem que isso tivesse consequências desastrosas. Se uma afirmação falsa for introduzida, torna-se possível provar o que quer que seja. Nessa altura, uma voz dentre o público interrompeu-o: «Se dois multiplicado por dois é cinco, então você deve conseguir provar que eu sou o Papa. Prove-o!»
Sem hesitações, Russell respondeu: «Se dois multiplicado por dois é cinco, então quatro é cinco. Subtraia três de ambos, então um é igual a dois. Mas você e o Papa são dois, portanto você e o Papa são um.»
Bertrand Russell em 90 minutos, Paul Strathern (Editorial Inquérito)
Esta tarde escrevi mal o endereço da Janela na barra de endereços e fui parar a outro blog com o mesmo nome. Quase o mesmo nome. Pestanejei várias vezes. O que é que eles andam a tramar? Por que é que ninguém me disse nada? Foi então hoje que a Lídia pôs em prática o seu velho plano. Descobri por fim o meu erro. A diferença que faz um ponto.
posted by camponesa pragmática on 17:22
- Oh, muy pocas... Que me lleve con usted a ver señoras bien vestidas... como se visten ahora. ¡Oh, condescienda usted!... Hace miles de años que tengo este deseo, pero nunca como... desde anoche. Antes nos preocupábanos muy poco del vestido... Ahora ha llegado la mujer al límite en el sentimiento del arte.
- Esquece a praia, vamos passear.
- Contas-me uma história?
- De Horacio Quiroga, como fazia a avó da Lucrecia Martel?
- Há tigres em Entrequintas?
- Nem toda a gente os vê.
- Esa de negro que sonrie desde la pequena ventana del tranvia se asemeja a Mme. Lamort - dijo.
- No es posible, pues en Paris no hay tranvias. Ademas, esa de negro del tranvia en nada se asemeja a Mme. Lamort. Todo lo contrario: es Mme. Lamort quien se asemeja a esa de negro. Resumiendo: no solo no hay tranvias en Paris sino que nunca en mi vida he visto a Mme. Lamort, ni siquiera en retrato.
- Usted coincide conmigo - dijo -, porque tampoco yo conozco a Mme. Lamort.
- ¿Quien es usted? Deberiamos presentarnos.
- Mme. Lamort - dijo -. ¿Y usted?
- Mme. Lamort.
- Su nombre no deja de recordarme algo - dijo.
- Trate de recordar antes de que llegue el tranvia.
- Pero si acaba de decir que no hay tranvias en Paris - dijo.
- No los habia cuando lo dije, pero nunca se sabe que va a pasar.
- Entonces esperemoslo puesto que lo estamos esperando
"Foi uma grande desgraça. Quando a sua carreira como showman tinha apenas começado, o infeliz Cesáreo Rodriguez, conhecido pelo seu número em que comia máquinas fotográficas peça a peça, e que, depois de as digerir, as voltava a montar, faleceu. Nunca mais poderemos apreciar a sua rara habilidade."
Esta e outras notícias do extinto "Notícias do Mundo", n'O Céu sobre Lisboa.
Não acredito: perdi vinte minutos do melhor programa de rádio da antena 2. Ainda ouvi as desventuras de Plume/Henri Michaux lidas por Marguerite Duras em francês e por Alexandra Lucas Coelho em português (a tradução de Margarida Vale de Gato para a Relógio d'Água) e depois a música de Carlos d'Alessio e as vozes de Jeanne Moreau e Marguerite Duras na Rumba des îles. Mas perdi a Alice, a conversa com os mineiros e...
A Assírio & Alvim ainda vai provocar a minha ruína. Depois de mais um Thomas Bernhard e "Uma Coisa em Forma de Assim" de Alexandre O'Neill, soube ontem que a editora se prepara para lançar dois livros de Blaise Cendrars e, sim, pasmem: a primeira antologia poética de Eugenio Montale.
Um dia não muito longe
assistiremos à colisão
dos planetas e o céu diamantado
acabará submerso em escombros.
Então colheremos flores rutilantes
e estrelas de néon.
Olha, eis o sinal, um fogo
acende-se no céu, chocam-se
Júpiter e Órion e no terrível
estampido onde acabou o homem?
Certo que basta um sopro neste mundo
em que vivemos para que ele acabe.
Ficará talvez um grito, o da
terra que não quer perecer.
poema de Eugenio Montale publicado na revista "Palavra", Editora da Palavra - Belo Horizonte (MG), ano 1, nº 7, Outubro/1999, tradução de Ivo Barroso
Nós vivemos numa constelação
De retalho e retinir de sons,
E não num mundo uno, nas coisas ditas
Acuradamente em música ou fala,
Como em piano ou página de poesia -
pensadores sem pensamentos últimos
Num cosmos sempre e sempre incipiente,
Como, ao se subir uma montanha,
Vermont reúne seus vários pedaços.
Sometimes I am filled with a sense of absolutely breathtaking happiness, which shakes my very soul, and in those moments of harmony the world around me begins to look as it really is - balanced and purposeful; and my inner, mental structure or system corresponds with the outer structure of the milieu, the universe - and vice versa. At those moments I believe myself to be all-powerful: that my love is capable of any physical feat of heroism, that all obstacles can be overcome, that grief and yearning will be ended, and suffering be transformed into the fulfilment of dreams and hopes. This is one of those moments. I believe that Larissa will succeed in bringing Andriushka here, and that we sahll drink orange juice and eat ice-creams in Via Cola di Rienzo, in the café Leroy. I don't just believe it, I know that's how it will be.
On the set of the film The Mirror, Andrey Tarkovsky inclued himself in one scene, lying in a hospital bed and holdinng a tiny bird on his right hand. And this is what happened to him at the end of his life: in his sickroom in Paris, the room where he died, a little bird would fly every morning through the open window and come to light on him.
Ministério para a Promoção da Virtude e a Erradicação do Vício
"Uma nova ofensiva das autoridades contra as mulheres e adolescentes que não usam o véu de forma apropriada está a provocar um profundo debate na sociedade iraniana. Os próprios meios conservadores do país estão divididos quanto à atitude a adoptar face ao desrespeito pelos valores islâmicos.
Nas últimas semanas, a polícia levou a cabo uma série de operações em diversos bairros de Teerão, interpelando numerosas jovens que deixam o cabelo sair do lenço, usam vestidos cada vez mais curtos e calças que deixam à mostra a barriga da perna.
Segundo testemunhos oculares, as adolescentes têm sido detidas em parques, restaurantes e centros comerciais. Em seguida, são conduzidas para a esquadra mais próxima e libertadas depois de submetidas a uma prédica sobre os valores morais do Islão." - por Stefan Smith; continua no Público.
posted by camponesa pragmática on 11:52
Recomendo aos meus pósteros
(se os houver) em matéria literária
que façam, o que é improvável,
uma bela fogueira de tudo o que se refira
à minha vida, a meus feitos, a meus não feitos.
Não sou um Leopardi, deixo pouco que queimar
e já é demais viver com percentagem.
Vivi a cinco por cento, não aumenteis
a dose.
Demasiado amiúde, pelo contrário, chove
no molhado.
Claro que Leonardo não foi propriamente um mestre-de-cerimónias apesar dos esforços na educação das maneiras à mesa dos seus ilustres amos. Uns anos mais tarde, no Norte da Europa protestante, Erasmo de Roterdão vai redigir um pequeno tratado para a educação dos jovens príncipes- o De civilitate morum puerilium (Da civilidade dos costumes das crianças) editado em 1530. Parece que teve enorme sucesso, pois nos seis anos que se seguiram (até à morte de Erasmo) teve pelo menos trinta edições. Ao todo contam-se cento e trinta edições, das quais treze só no século XVIII, sem contar com as imitações e adaptações. Quatro anos depois da primeira edição foi transformado em catecismo e introduzido como manual escolar para ensino dos rapazes. Trata-se da divulgação do conceito de civilité, palavra que passa a dar novo sentido à noção de civilitas, tornando-se sinónimo de decoro; do comportamento do homem em sociedade.
Atente-se, no entanto a algumas das suas recomendações:
- É incivil saudar alguém que está a urinar ou defecar.
-Há alguns que recomendam que o rapaz deve reter os gases, comprimindo o ventre. Mas não é curial contrair uma doença pretendendo parecer-se urbano. Se se fazem sair os gases sem barulho nem som, óptimo, Todavia é preferível que saiam com som a que fiquem guardados e retidos. Dissimular o ruído com uma tossidela: fingem tossir aqueles que, por pudor, não querem que o ruído se ouça. Segui a regra de Chiliades: tosse conforme o traque.
Do assoar:
- Assoar-se ao barrete ou às vestes é rústico, fazê-lo com o braço ou o cotovelo é próprio dos mercadores de peixe e também não é muito civil fazê-lo com a mão, se logo a seguir a esfregares nas vestes para limpar o muco. O que é decente é assoar o nariz com um pano, virando-se um pouco para o lado, se estiverem presentes pessoas de mais dignidade.
Se, ao assoar o nariz com os dois dedos, cair alguma coisa no chão, deve ser logo esmagado com o pé.
Do cuspir:
- Cospe para o lado, para não atingires ninguém. Se for lançado para o chão algo de mais purulento, esmaga-o com o pé, para que não provoque nojo a ninguém. Se tal não é permitido, cospe para o lenço. Não é urbano reabsorver a saliva, como o não é aquilo que vemos em alguns, que cospem a cada três palavras, não por necessidade, mas por hábito.
E na prática, terá tido Erasmo resultados com a sua pedagogia?
Parece que nem por isso. Parece que algumas maneiras à mesa, ainda que entre cortesãos, continuaram a ter o seu quê de picaresco. Os hábitos de alívio de necessidades, por exemplo são muito curioso. Que o digam as Ordenações da Corte de Wenigerode de 1570:
- Que ninguém faça as suas necessidades em frente da sala das senhora, das alcovas e das portas das janelas de outros aposentos, desavergonhadamente e sem qualquer recato, como os campónios que nunca estiveram na corte ou em casa de pessoas honradas e decentes...
E ainda em 1589, referia-se nas Ordenações da Corte de Braunschweig:
- Do mesmo modo, que ninguém, quem quer que seja, antes de, depois de, ou entre as refeições, tarde ou cedo, suje os degraus das escadas, os corredores, os aposentos, com urina ou outra imundice, mas que, para tais necessidades, vá aos lugares adequados prescritos.
E por cá, como terá sido? Não muito diferente, é o mais certo. Nas poesia satírica há mesmo um peculiar gosto pelo humor coprófilo e até o grande senhor conde de Vimioso usou a rima um tanto "aporcalhada" como troça de bazófias e "caganços" militares.
Num destes poemas mal cheirosos, o conde mete-se com o capitão que se destinava a acompanhar a expedição do conde de Tarouca à Turquia. Ao que consta, no serão real, o dito capitão teve uma aflição da barriga e não esteve com mais medidas: meteu-se "em hua chaminé e fez seus feytos num braseyro". Goza então o poeta de corte: "Na Turquia será ele um Aníbal e levará a cabo façanhas de Pompeu". E D. Gonçalo Coutinho escarnece: "Duas onças de serão, em noite fria, são melhor purgante do que cinco onças de escamónea. E se for homem de pé lesto, num braseiro fará ele o que eu não diria..." A farsa continua neste tom incluindo a intervenção do diabo que lhe recomenda levar um "privado de barro ou de madeira, como quem leva cadeira para ouvir o sermão, que nem sempre há um braseira à mão...".
Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, Coimbra, 1910-1917, t.4, pp.345-352, cfr. Mário Martins, O riso, o sorriso e a paródia na literatura portuguesa de Quatrocentos, Instituto da Cultura e da Língua Portuguesa, Ministério da Educação, 1987.
Norbert Elias, O processo civilizacional, 2 vols, Publicações D. Quixote, Lisboa, 1989 (1º.vol..)
Ludovico Sforza e Beatrice d'Este, Pala Sforzesca, Pinacoteca de Brera, Milão.c.1494.
Não é só carteira que se conhece um senhor. Há quem afiance que a gravata para eles e os sapatos para elas são critérios mais válidos mas o certo é que na mesa se tiram as teimas. Parece que já o afirmavam os tratados à Bobonne de alguns requintados cortesãos renascentistas e Leonardo da Vinci não tinha dúvidas. Por muito que se tenha esforçado na educação do gosto culinário dos seus Médicis, a verdade é que não aprenderam nada.
Bem pode ele inventar uma série de guardanapos e variadíssimos modos de os dobrar. Na corte de Ludovico Soforza a moda não pegou. Como conta o pintor, o magnífico senhor de Milão "tem por costume atar coelhos com fitas às cadeiras dos seus comensais para que estes possam limpar as mãos as mãos engorduradas às costas do animal, costume que considero impróprio da época em que vivemos. E, quando depois da refeição, os animais são recolhidos e trazidos para a lavandaria, o mau-cheiro infiltra-se nos outros panos que são lavados conjuntamente com eles..." Leonardo não desiste. Perante a imundice das toalhas de mesa avança com a ideia de guardanapos e dobrados de variadíssimos e artísticos modos. O problema foi o resultado... aqui fica o relato de Pietro Alemnanni, o embaixador Florentino em Milão.
"Ontem à noite apresentou à mesa a sua solução para o problema, consistindo num pano individual colocado diante de cada conviva, o qual deveria ser sujo no lugar da toalha de mesa. Mas, para grande perturbação de Mestre Leonardo, ninguém achou modo de o utilizar ou soube o que fazer com ele. Alguns foram ao ponto de se sentar em cima. Outros assoaram-se nele. Outros, ainda, serviram-se dele para o atirarem, em tom de brincadeira, a outros comensais. Mas houve também quem o utilizasse para envolver a vitualha e a ocultar na bolsa ou no bolso. E depois do repasto terminado, encontrando-se a toalha tão suja como de costume, Mestre Leonardo confiou-me a sua angústia de que o invento nunca chegasse a ter aceitação. Alem disso, nessa mesma semana, Mestre Leonardo sofreu novos reveses à mesa. Tinha imaginado um prato de salada para um certo prândio, pensando que a grande taça que a continha seria passada de mão em mão, cada um tomando para si um pequena quantidade. No centro viam-se ovos de codorniz, ovas de esturjão e cebolinhas de Mântua dispostas em cima e rodeadas de folhas de alface de Bolonha e de suculento aspecto. Mas quando a pessoa que servia à mesa colocou a taça diante do Convidado de Honra do Senhor Ludovico, Cardeal Albufiero de Ferrara, o dito Cardeal atafulhou no manjar os dedos de ambas as mãos e, como a maior rapidez, devorou todos os ovos, ovas e cebolinhas, servindo-se posteriormente das folhas de alface para limpar o rosto coberto de salpicos e devolvendo-as, enxovalhadas, à taça, que por disposição falha de siso de quem servia à mesa, acabaram por ser presenteadas à minha senhora d'Este. A aflição de Mestre Leonardo perante o ocorrido punha-o completamente fora de si e, na minha opinião, acho que a taça da salada não irá aparecer mais vezes à mesa"
Prjectos para dobrar guardanapos.
Dizem agora as análises aos restos mortais que a causa de morte de alguns dos Médicis se deve a intoxicação alimentar e o caso pode ter sido para menos. Uma vez, este esteta e amante da culinária, desenhou uma série de aríetes e escadas como instruções para uma guerra que o amo travava com o Papa e fê-las acompanhar de maquetas em maçapão e massa de pasteleiro. Lourenzo de Médicis parece que não entendeu a refinada mensagem bélica e decidiu oferecê-la como bolos aos convidados durante uma ceia.
Pior sorte foi a dos Sforza quando o pintor aprontou um monumental repasto para a boda de Ludovico Sforza com Beatrice D'Este. Teve a ideia de efectuar a cerimónia dentro de um bolo de 70 metros como réplica do palácio, confeccionado no próprio pátio dos domínios do amo com polenta e massa coberta de passas e nozes que acabou atacada por uma invasão de pássaros e ratazanas de todo a cidade.
Mas se à mesa as maneiras eram estas e a batalha da civilidade da culinária foi perdida pelo pintor, a verdade é que a cozinha onde fazia as experiências era um autêntico caos. Atente-se nesta descrição de um embaixador florentino que visitou os aposentos no palácio dos Sforza:
"A cozinha do meste Leonardo da Vinci é um manicómio. O senhor Ludovico Sforza contara-me que os esforços dos últimos meses tinham sido no sentido de economizar trabalho humano, mas, agora, em lugar dos vinte cozinheiros que as cozinhas costumavam ter, há umas duas centenas de pessoas afadigando-se, e nenhuma das que pude ver estava propriamente a cozinhar, mas antes ocupada com os grandes engenhos que enchem o chão e as paredes, nenhum dos quais parecendo funcionar de modo útil ou adaptado à finalidade par que fora criado. Numa das extremidades da cozinha encontrava-se uma grande roda hidráulica, que, posta em movimento por uma cascata que se despenhava sobre ela com fragor, salpicava e encharcava com os seus esguichos todos os que passassem por baixo, transformando o chão num verdadeiro lago. Foles gigantescos, medindo cada um quatro metros de comprimento, estavam suspensos dos tectos, bufando e rugindo, destinados a afastar o fumo dos fogões; mas o que conseguiam fazer melhor era aumentar as chamas, com prejuízo para todos os que necessitavam de executar as suas tarefas junto do lume, e as chamas eram tão intensas que exigiam uma fila permanente de homens com baldes de água a tentar apagá-las, se bem que outras águas jorrassem em cima de todos, vindas de todos os cantos do tecto. E por toda esta área de cataclismo vagueavam cavalos e bois, alguns andando às voltas para fazer girar o engenho, cuja função não parecia ser outra senão andar meramente às voltas, enquanto outros arrastavam dispositivos para limpar o chão, desempenhando heroicamente as suas tarefas, e todavia seguidos por outro igualmente extenso exército de homens para limpar os excrementos dos cavalos. Também me foi dado ver a grande trituradora de vacas, avariada, com metade de um mamífero ainda preso na engrenagem e quatro homens a tentar removê-lo com auxílio de alavancas. Num outro sítio, ainda, estava o dispositivo de lenha de Mestre Leonardo da Vinci: despejava ininterruptamente a sua carga na cozinha, e nada o conseguia fazer parar. De sorte que, em vez de dois homens que costumavam trazer lenha para a cozinha, era agora necessário empregar dez para a de lá tirar. Verificámos, então, que os gritos que ouvíamos provinham dos infelizes que se queimavam, afogavam ou sufocavam, e das explosões de pólvora, substância que Mestre Leonardo da Vinci insistia em usar para acender os seus fogos de combustão lenta; e, como se isso já não fosse suficientemente ruidoso, juntava-se ainda a música dos tambores que continuavam a rufar, embora, ao que parece, os tocadores de órgãos-de-beiços se tivessem já afogado. Como descrevi, a cozinha de Mestre Leonardo da Vinci, parecia um manicómio, o que, parece-me, não agradou ao senhor Ludovico Sforza."
1- triturador de vacas; 2-Plataforma giratória de gramofone manual que acabou transformado em cortador de toucinho fumado, posto em funcionamento por um moço de cozinha que se sentava no banco à esquerda.
Com cozinhas desta natureza, receitas mirabolantes, inventos inverosímeis e jantares pantagruélicos, muito bom estômago precisavam de ter estes cortesãos. Entre todos os delirantes apontamentos deste código, o mais avisado ainda é o conselho de um bom auxiliar para a digestão. Confessa o artista:
"Pergunto a mim mesmo se no intervalo dos pratos servidos à mesa do meu Senhor (sobretudo no caso de esses pratos não serem de primeira qualidade) em vez do aparecimento de acrobatas e anões, a exibição de alguma dançarinas licenciosas não seriam um melhor digestivo."
Shelag & Jonathan Routh, Notas de cozinha de Leonardo da Vinci, Ed. Arte Mágica, 2002, seg. Codex Romanoff, atribuído a Leonardo da Vinci.