NUNZIO: Pino...
PINO: Qu'é qu'é?
NUNZIO: Cando vultores do Brósi, tu cozes-me um espurguete cum'agura?
PINO: Cu molhe temate?
NUNZIO: E melaguete.
PINO: Melaguete.
NUNZIO: E tucinhe, tas de pôr um becade tucinhe tumbém. Puins, nu puins, tucinhe?
PINO: Cloro...
NUNZIO: E caje?
PINO: E caje.
NUNZIO: Tens de lo pur caje tumbém.
PINO: Está bum, punho caje.
NUNZIO: Maj d'uvalhe, 'stá bum... eu gusto é de caje d'uvalhe... Esse parmesum nu, nu, nu, nu gusto dessa cusa do parmesum. Maj gusto d'uvalhe. Aduro...
Sempre disse: 'Escrevo metade de histórias', são histórias incompletas. O público deve adicionar-lhe a sua própria história. Juntas elas fazem o teatro. A sugestão é muito importante. Não convém dar muito. O que gosto em MOUCHETTE é que há uma espécie de felicidade e desespero ao mesmo tempo. É negro e há humor. (...) Arsène e Coulette são dois cães, é um combate de boxe com os seus próprios instrumentos. É uma linguagem quotidiana da rua, mas a forma é teatro puro, um ringue... O público deverá sentir qualquer coisa do tipo Aaaah, isso não é muito simpático...! É a vida!
Eram quatro e meia duma madrugada de Abril
Eu caminhava, assobiando o St. Louis blues
Mas assobiava-o de modo muito meu
Assobiando dizia-me: quem dera igualasse
o meu assobio o cantar da tordeira
E querem ver, passado um pouco
o meu assobio do St. Louis blues
igualava o cantar da tordeira:
turdus viscivorus.
[...]
Muitas vezes, estabelece-se de outro modo ainda uma relação com a paisagem. Foi, se bem me recordo, Aldous Huxley quem escreveu que só percebeu a pintura de Mondrian quando do avião, sobrevoando a Holanda, viu pela primeira vez a geométrica ordenação dos campos de tulipas e dos prados. Sob influência dessa paisagem, a poesia neerlandesa revelar-se-ia, ela também, austera e sem retorcidos burlescos.
Hoje é o terceiro e último dia das Jornadas de Cinema Francófono no Porto. Às 17h00 passa Après la Réconciliation, de Anne-Marie Miéville e à noite Salut cousin!, de Merzak Allouache.
"A little nightmare about the fear connected with learning. It's very abstract, a pretty dense little film."
Zaziedanslemetro [7:25 PM PST]: About 11 Setember, Stockhausen said that terrorism is the only way now make us surprises that art can't do anymore? what do you think Mr David Lynch?
"You go by most paintings, and they don't stop you. You can walk by so much because it's merely beautiful. I like to feel that you could bite my paintings. Not to eat them, to hurt them. I like to feel like I'm painting with my teeth. I call my painting `bad' because bad painting has its own beauty. It's not a designer tapestry or a commercial hype. It makes you react to it."
Zaziedanslemetro [3:35 PM PST]: one question Mr. David Lynch: with so many analises and psic explications about our mind how can you be away from theory and keep your imagination so pure?
DAVIDLYNCH [3:38 PM PST]: ZAZIE - I USE THIS EXPRESSION OFTEN BUT IT WORKS - KEEP YOUR EYE ON THE DONUT AND NOT ON THE HOLE ---- THAT'S ALL IT TAKES
Zaziedanslemetro [4:03 PM PST]: just one more Mr David Lynch: Francis Bacons still is your favourite painter?i think he's great.
[...]
As três irmãs: é preciso dizer que são um trio de velhas cantoras do "music-hall" dos anos 30, uma piscadela de olho a Betty Boop. São elas que abrem "Belleville Rendez-Vous", num delirante "show" a preto e branco que inclui ainda Josephine Baker, Django Reinhardt e Fred Astaire - vejam como o desenho dança -, para desaparecerem, de seguida, quando a emissão televisiva é interrompida. São figuras angulosas numa cidade de obesos, Belleville, que é onde o transatlântico e a história vão dar. Belleville, ou seja, Nova Iorque, uma megalópole com edifícios altos, táxis amarelos e uma Estátua da Liberdade bovina. É aí que se descobre Madame Souza como uma invulgar precursora de "street music", de música concreta, e se dá o seu encontro com as três irmãs, as "triplettes de Belleville", agora mais velhas, mas que ainda continuam a viver para a música. Fazem aquilo a que Chomet chama "jazz doméstico", uma música de percussão produzida a partir de objectos quotidianos, um jornal, grelhas de um frigorífico, um aspirador - e, agora, Madame Souza, que fez dos raios de uma roda de bicicleta o seu xilofone.
[...]
A Pedalada de Madame Souza, por Kathleen Gomes no Y
Cinemas Cidade do Porto | Sala 4 | Sessões: 13h40, 15h20, 17h30, 19h20, 21h40, 24h
Tom fez Águas de Março no sítio da família em Poço Fundo, estado do Rio de Janeiro, em março de 1972. A propriedade estava passando por uma pequena reforma, que consistia basicamente no reforço de um muro. Chovia muito, e a estradinha que levava ao sítio estava enlameada. Neste ambiente de obra, chuva, e lama, Tom escreveu a letra e a música. No folheto que acompanhou a primeira gravação da música, lançada em um encarte da revista "O Pasquim" em 1972, Tom diz que foi inspirado pelos versos iniciais de Olavo Bilac em "O Caçador de Esmeraldas":
"Foi em março, ao findar das chuvas, quase à entrada
Do outono, quando a terra, em sede requeimada,
Bebera longamente as águas da estação
Que, em bandeira, buscando esmeraldas e prata
À frente dos peões filhos da rude mata
Fernão Dias Paes Leme entrou pelo sertão."
Há um ano atrás o Luís começou a escrever o nosso moleskine preferido. A prenda dispensa embrulho:
Paisagem VI
Este é o dia em que as brumas do rio saem
para a bela cidade no meio de prados e colinas
e a esfumam como uma recordação. Os vapores confundem
os verdes, mas as mulheres das cores vivas ainda
caminham por ela. Vão na branca penumbra
sorridentes: na rua tudo pode acontecer.
Pode acontecer que o ar embebede.
A manhã
ter-se-á aberto num dilatado silêncio
atenuando as vozes. Até o pedinte,
que não tem cidade nem casa, o terá respirado,
como aspira o copo de aguardente ao desjejum.
Vale a pena ter fome ou ter sido traído
pela boca mais doce, só para sair com aquele céu
e voltar a encontrar no hálito as mais diáfanas recordações.
Cada rua, cada simples esquina
na bruma conserva um antigo tremor:
quem o sente não pode abandonar-se. Não pode abandonar
a sua embriaguês tranquila, feita de coisas
duma vida cheia, descobertas ao acaso
duma casa ou duma árvores, dum súbito pensamento.
Também os grandes cavalos que passarão
entre as brumas de madrugada falarão daquele tempo.
Ou talvez um rapaz fugido de casa
volte precisamente hoje em que a bruma
se eleva sobre o rio e esqueça toda a vida,
a miséria, a fome e as lealdades traídas,
para parar a uma esquina bebendo a manhã.
Vale a pena voltar, mesmo que seja diferente.
Cesare Pavese, "Trabalhar cansa"
Tradução de Carlos Leite, edição da Cotovia
Se eu pudesse forrava este blog com música do Keith Jarrett. Forrar como os livros da escola ou como as paredes das casas das pessoas que Martin Parr fotografa. Martin Parr... não, hoje não me apetece.
posted by camponesa pragmática on 11:27
So long Calcutá
Kleist voltou à normalidade (aparentemente). Título tem, agora, fundo roxo, como aquelas terras ocupadas que, depois de reconquistada a independência, conservam as unhas e as lentes do inimigo, em exposição heroíca num qualquer lugar central e ameno onde as famílias felizes fazem piqueniques ao domingo. Ou como Lisboa onde, de vez em quando, tropeçamos num buraco com arranjo adiado desde 1755 até hoje. O presente não é, nunca será, só presente; terá, como certos bolos, algumas passas.
posted by camponesa pragmática on 11:23
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
José, Carlos Drummond de Andrade
posted by picatostes on 10:47
fila X
Desconhecia a existência de um grupo de cinema no IST até me deparar com o folheto num placard do Central. A visitar: fila X, blog do Cinema ParaIST.
Fevereiro no Nordeste argentino. Sol escaldante e chuvas tropicais. Algumas terras tornam-se pantanosas. Esses pântanos [ciénaga em espanhol] são mortais para os animais que neles se afundam. Mas esta história não é sobre pântanos, mas sim sobre a cidade La Ciénaga e os seus arredores.
Mecha tem 50 anos, um marido que pinta o cabelo e quatro filhos. Nada que dois ou três copos não possam curar. A família passa o Verão no campo, em La Mandrágora, numa casa com uma piscina decrépita, imunda, mas que mesmo assim é um alívio. Tali, prima de Mecha, também tem um marido e quatro filhos. Vive em La Ciénaga numa casa sem piscina. Um acidente vai reunir as duas famílias durante o tempo de um Verão, o tempo de uma estação no Inferno.
Cinema Nun’Álvares | Sessões 3ª e 4ªFeira (23 e 24 Março) às 19H30
A crítica literária às vezes é muito aborrecida, outras não:
O Idiota de Dostoiévski
O conteúdo de O Idiota de Dostoiévski persegue-me por todo o lado. Interessam-me muito os cãezinhos de estimação. Não há nada que eu procure tão ardentemente como uma Aglaia. Infelizmente, foi um outro que ela escolheu. À Marie, não a poderei jamais esquecer. Não fiquei eu já, uma vez, postado em admiração perante um burro? Quem me apresentará a uma Generala Epantchiná? Houve já também criados de quarto que ficaram surpreendidos comigo. Restaria ainda apurar se eu teria uma caligrafia tão bonita como o rebento da casa Míchkin e se eu herdaria uns milhões. Seria magnífico ganhar a confiança de uma mulher bela. Porque será que nunca vi uma casa comercial como a dos Rogójin? Porque não sofro eu de ataques espasmódicos? O idiota era franzino e pouca impressão causava. Era um bom rapaz e, uma vez, ao cair da noite, a dama de reputação duvidosa caiu de joelhos diante dele. Estou na expectativa de que me suceda algo de semelhante. Kólias conheço eu apenas uns dois ou três. Quem sabe se não irei, um dia, encontrar também um Ívolguin. De virar um jarrão seria eu bem capaz, duvidar de tal possibilidade seria subestimar-me. Fazer um discurso tem tanto de difícil como de fácil, tudo depende da inspiração do momento. Gente que não está satisfeita consigo própria encontro eu com muita frequência. Algumas dessas pessoas sentem-se descontentes, porque são demasiado exigentes. Depois disso, daria entrada no Instituto Schneider. Antes, porém, urgiria tranquilizar a Nastássia. Não tenho absolutamente nada de idiota, sou, pelo contrário, sensível a tudo o que seja racional; lamento não ser herói de um romance. Não estou à altura de desempenhar um tal papel, por ora só leio demasiado.
Robert Walser, “A Rosa”
Tradução de Leopoldina Almeida, edição da Relógio d’Água
"O Idiota", de Fiódor Dostoiévski. Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra. Editorial Presença
Em relação aos seus poemas que papel atribui ao leitor?
Atribuo-lhe sempre um papel activo. A poesia, quer se queira quer não, especializou-se. Aliás é um fenómeno que se verifica em qualquer domínio da cultura. Mesmo para se gozar de um desafio de futebol se têm de conhecer as regras. Ainda dentro do mesmo âmbito, contarei que desconfio sempre dos meus leitores, que além de o serem, são católicos. Sempre penso que se estarão a sentir acompanhados, que aderem ao que e não ao como eu digo. Ora é no como que está principalmente uma obra de arte.
Oh escuro escuro escuro. Todos vão para o escuro,
Os vazios espaços interestelares, o vazio para dentro do vazio,
Capitães, banqueiros comerciais, eminentes homens de letras.
Generosos patronos da arte, homens de estado e dirigentes,
Distintos funcionários superiores, presidentes de muitas comissões,
Magnates da indústria e pequenos empreiteiros, todos vão para o escuro,
Escuros o Sol e a Lua, e o Almanaque de Gotha
E a Gazeta da Bolsa, o Rol dos Directores,
E frio o senso e perdido o motivo da acção.
E nós vamos todos com eles, para o funeral silencioso,
O funeral de ninguém, pois não há ninguém para enterrrar.
Eu disse à minha alma, está quieta e deixa vir o escuro sobre ti,
O qual será a treva de Deus. Como, num teatro,
Quando as luzes se apagam, para ser mudada a cena,
Com um surdo rumor de bastidores, um movimento de treva na treva,
E nós sabemos que os montes e as árvores, o panorama ao longe
E a altiva fachada imponente estão todos a ser empurrados para fora —
Ou como quando um comboio do metro, no túnel, pára muito tempo entre estações
E a conversa se eleva e lentamente esmorece em silêncio
E se vê por detrás de cada rosto o vazio da mente aprofundar-se
E apenas resta o crescente terror de nada em que pensar;
Ou quando, sob o éter, o espírito está consciente mas consciente de nada —
Eu disse à minha alma, está quieta e aguarda sem esperança
Pois a esperança seria esperança na coisa errada; aguarda sem amor
Pois o amor seria amor pela coisa errada; há ainda fé
Mas a fé e o amor e a esperança encontram-se todos no acto de aguardar.
Aguarda sem pensar, pois não estás pronta para pensar:
Assim a treva será a luz, e a quietação a dança.
Sussuro de arroios a correr, e relâmpagos de Inverno.
O tomilho bravo invisível e o morango bravo,
O riso no jardim, repercutido êxtase
Que não se perde, mas reclama, aponta para a agonia
Da morte e do nascimento.
Dizes que repito
Algo que disse antes. Vou dizê-lo de novo,
Digo-o de novo? A fim de lá chegares,
De chegares onde estás, de saíres de onde não estás,
Tens de seguir um caminho por onde não há êxtase.
A fim de chegares àquilo que não sabes
Tens de seguir um caminho que é o caminho da ignorância.
A fim de possuíres o que não possuis
Tens de seguir o caminho do despojamento.
A fim de chegares àquilo que não és
Tens de seguir pelo caminho em que não és.
E aquilo que não sabes é a única coisa que sabes
E aquilo que tens é o que não tens
E onde estás é onde não estás.
T.S. Eliot, East Coker "Quatro Quartetos", tradução de Gualter Cunha, edição da Relógio d'Água, Janeiro de 2004
D.S:— O que o levou a pintar uma figura que roda a chave na fechadura de uma porta com o pé?
F.B.— Acho que isso me veio… Não, não sei por que fiz um pé rodando a chave. Isso em grande parte saiu de um poema de Eliot: “Escutei a chave / Rodar uma vez na porta e rodar uma vez apenas…”. Você conhece isso. Está em "A terra devastada". Não sei por que teria colocado a chave rodada com o pé. Mas saiu desse poema.
D.S:— É um exemplo maravilhoso da maneira como interage a intenção e o resultado. A intenção, a imagem de Eliot, é a sua visão particular.
F.B.— Sem dúvida.
D.S:— Não está visível na obra.
F.B.— De maneira nenhuma.
D.S:— Enquanto a coisa mais evidente na obra, a coisa que parece ser o próprio tema, essa não foi planejada.
F.B.— Acho que essas coisas talvez tenham saído também do Surrealismo, até certo ponto. Quando se imagina que uma chave rodada com o pé e não com a mão, como usualmente se faz, seja de certo modo mais imediato.
D.S:— É verdade. Há aqui uma relação com o Surrealismo, não é? Estou pensando em Magritte que estava sempre escrevendo sobre o mistério da realidade banal o desejo de usar a pintura para expressar esse mistério. Só que ele pintava uma fruta ou um pão flutuando no ar; ele deslocava a coisa para que o mistério fosse aprendido de forma mais imediata, apesar de que, como ele mesmo dizia, uma fruta ou um pão em cima de uma mesa estão repletos de mistérios.
F.B.— Exacto. Isso praticamente é a mesma coisa que rodar uma chave na fechadura com o pé.
D.S:— Nunca tinha notado que havia uma relação entre esse quadro e Eliot, apesar de saber perfeitamente que você sempre foi louco por "A terra devastada". Existem outros versos de Eliot que tenham inspirado outras pinturas em particular? Fora, é claro, o tríptico Sweeney Agonistes?
F.B.— Sempre soube que eu era influenciado por Eliot. Sobretudo "A terra devastada" e os poemas que precedem essa obra sempre me emocionaram muito. E volta e meia estou lendo os "Quatro Quartetos", que, como versos, talvez sejam até melhores que "A terra devastada", apesar de não me tocarem da mesma maneira. Mas só muito poucas vezes fiz alguma coisa directamente inspirada em versos ou em algum poema em particular. Admiro a poesia, ela me emociona e me estimula a ir ainda mais fundo em meu trabalho. Essa é a maneira como ela me influencia. É muito difícil pegar uma poesia e fazer dela uma pintura; é toda a sua atmosfera que me emociona. Também sofri a influência de uma quantidade de poemas de Yeats. Acho que uma das coisas que mais admiro nele é a maneira como se foi construindo… Possivelmente Yeats sempre foi um grande poeta e, a meu ver, soube explorar sua pessoa de um modo verdadeiramente fantástico. Mas estamos aqui falando de poetas modernos, quando podemos encontrar o Eliot inteiro, o Yeats inteiro, além de tudo quanto é assunto e praticamente tudo quanto é poeta em Shakespeare, que simplesmente deu um vigor à vida, por mais fútil que a gente possa achá-la, de uma forma como nunca alguém foi capaz de fazer. Eles simplesmente põe a vida à mostra de uma forma excepcional. Revigora-a com sua profunda falta de esperança e seu pessimismo e, também, pode-se dizer, com seu humor. E, num certo sentido, com seu total cinismo, verdadeiramente diabólico. Por exemplo, o que pode haver de mais cínico do que Macbeth no final dizendo: “Amanhã, e amanhã, e amanhã”? Quer que eu vá pegá-lo para você? Justamente hoje eu o estavo lendo e pensava comigo: continua sendo realmente uma síntese fantástica.
retirado de “Entrevistas com Francis Bacon – A brutalidade dos factos” de David Sylvester, edição brasileira da Cosac & Naify
"A terra devastada" e "Quatro quartetos" estão traduzidos por Gualter Cunha e editados pela Relógio d'Água
Retrato de Isabel Rowsthorne numa rua do Soho, 1967
D.S:— Pensa que é mais difícil pintar hoje em dia do que foi antigamente?
F.B.— Penso que é mais difícil hoje porque o pintores anteriormente tiveram um duplo papel.. Estou convencido que eles pensaram que estavam a fazer relatos, e então fizeram muito mais do que recordar. Penso que hoje em dia, com os métodos mecânicos de gravação, tal como um filme e a câmara e o gravador, teve de se regredir na pintura para algo mais básico e fundamental. Porque pode ser feito melhor por outros meios que eu considero de um nível mais superficial— não estou a falar de um filme, que é cortado e refeito de todos os modos possíveis, mas estou a falar de um directo fotográfico e de um directo gravado. Penso que estes ficaram com o aspecto ilustrativo que no passado os pintores julgavam que tinham de fazer. E penso que os pintores abstractos, tendo noção disto, pensaram: porque não tirar toda a ilustração e todas as formas de relatar e apenas dar os efeitos da forma e da cor? E logicamente isto estava muito certo. Mas não resultou, porque parece que a obsessão com algo na vida que se quer recordar dá muito mais tensão e muito maior excitação do que quando apenas se continua num modo de fantasia-livre e a recordar sombras e cores. Penso que actualmente estamos numa posição muito curiosa porque, uma vez que não existe qualquer tradição, estamos perante dois objectivos extremos. Existe a reportagem directa como algo que está muito próximo de um relatório policial. E então a única finalidade é fazer grande arte. E o que é considerado a meio caminho, a arte realista, num tempo como o nosso não existe. O que não significa que, no desejo de fazer grande arte, não haja quem a pratique. Mas pode dizer-se que é esse o factor que cria uma situação extraordinária. Porque, com estes maravilhosos meios de gravar factos, o que apenas se pode fazer é caminhar para uma coisa muito mais extrema, na qual se está a relatar o facto, não apenas como simples facto, mas a muitos níveis, que abrem áreas de sensação que lidam com um sentido mais profundo da realidade da imagem a que se quer chegar e por meio da qual essa coisa será captada em bruto e viva e deixada aí e, finalmente fossilizada, poder-se-á então dizer— aqui está.
in David Sykvester, Interviews with Francis Bacon (1975).