Há um ano atrás o Luís começou a escrever o nosso moleskine preferido. A prenda dispensa embrulho:
Paisagem VI
Este é o dia em que as brumas do rio saem
para a bela cidade no meio de prados e colinas
e a esfumam como uma recordação. Os vapores confundem
os verdes, mas as mulheres das cores vivas ainda
caminham por ela. Vão na branca penumbra
sorridentes: na rua tudo pode acontecer.
Pode acontecer que o ar embebede.
A manhã
ter-se-á aberto num dilatado silêncio
atenuando as vozes. Até o pedinte,
que não tem cidade nem casa, o terá respirado,
como aspira o copo de aguardente ao desjejum.
Vale a pena ter fome ou ter sido traído
pela boca mais doce, só para sair com aquele céu
e voltar a encontrar no hálito as mais diáfanas recordações.
Cada rua, cada simples esquina
na bruma conserva um antigo tremor:
quem o sente não pode abandonar-se. Não pode abandonar
a sua embriaguês tranquila, feita de coisas
duma vida cheia, descobertas ao acaso
duma casa ou duma árvores, dum súbito pensamento.
Também os grandes cavalos que passarão
entre as brumas de madrugada falarão daquele tempo.
Ou talvez um rapaz fugido de casa
volte precisamente hoje em que a bruma
se eleva sobre o rio e esqueça toda a vida,
a miséria, a fome e as lealdades traídas,
para parar a uma esquina bebendo a manhã.
Vale a pena voltar, mesmo que seja diferente.
Cesare Pavese, "Trabalhar cansa"
Tradução de Carlos Leite, edição da Cotovia