D.S:— O que o levou a pintar uma figura que roda a chave na fechadura de uma porta com o pé?
F.B.— Acho que isso me veio… Não, não sei por que fiz um pé rodando a chave. Isso em grande parte saiu de um poema de Eliot: “Escutei a chave / Rodar uma vez na porta e rodar uma vez apenas…”. Você conhece isso. Está em "A terra devastada". Não sei por que teria colocado a chave rodada com o pé. Mas saiu desse poema.
D.S:— É um exemplo maravilhoso da maneira como interage a intenção e o resultado. A intenção, a imagem de Eliot, é a sua visão particular.
F.B.— Sem dúvida.
D.S:— Não está visível na obra.
F.B.— De maneira nenhuma.
D.S:— Enquanto a coisa mais evidente na obra, a coisa que parece ser o próprio tema, essa não foi planejada.
F.B.— Acho que essas coisas talvez tenham saído também do Surrealismo, até certo ponto. Quando se imagina que uma chave rodada com o pé e não com a mão, como usualmente se faz, seja de certo modo mais imediato.
D.S:— É verdade. Há aqui uma relação com o Surrealismo, não é? Estou pensando em Magritte que estava sempre escrevendo sobre o mistério da realidade banal o desejo de usar a pintura para expressar esse mistério. Só que ele pintava uma fruta ou um pão flutuando no ar; ele deslocava a coisa para que o mistério fosse aprendido de forma mais imediata, apesar de que, como ele mesmo dizia, uma fruta ou um pão em cima de uma mesa estão repletos de mistérios.
F.B.— Exacto. Isso praticamente é a mesma coisa que rodar uma chave na fechadura com o pé.
D.S:— Nunca tinha notado que havia uma relação entre esse quadro e Eliot, apesar de saber perfeitamente que você sempre foi louco por "A terra devastada". Existem outros versos de Eliot que tenham inspirado outras pinturas em particular? Fora, é claro, o tríptico Sweeney Agonistes?
F.B.— Sempre soube que eu era influenciado por Eliot. Sobretudo "A terra devastada" e os poemas que precedem essa obra sempre me emocionaram muito. E volta e meia estou lendo os "Quatro Quartetos", que, como versos, talvez sejam até melhores que "A terra devastada", apesar de não me tocarem da mesma maneira. Mas só muito poucas vezes fiz alguma coisa directamente inspirada em versos ou em algum poema em particular. Admiro a poesia, ela me emociona e me estimula a ir ainda mais fundo em meu trabalho. Essa é a maneira como ela me influencia. É muito difícil pegar uma poesia e fazer dela uma pintura; é toda a sua atmosfera que me emociona. Também sofri a influência de uma quantidade de poemas de Yeats. Acho que uma das coisas que mais admiro nele é a maneira como se foi construindo… Possivelmente Yeats sempre foi um grande poeta e, a meu ver, soube explorar sua pessoa de um modo verdadeiramente fantástico. Mas estamos aqui falando de poetas modernos, quando podemos encontrar o Eliot inteiro, o Yeats inteiro, além de tudo quanto é assunto e praticamente tudo quanto é poeta em Shakespeare, que simplesmente deu um vigor à vida, por mais fútil que a gente possa achá-la, de uma forma como nunca alguém foi capaz de fazer. Eles simplesmente põe a vida à mostra de uma forma excepcional. Revigora-a com sua profunda falta de esperança e seu pessimismo e, também, pode-se dizer, com seu humor. E, num certo sentido, com seu total cinismo, verdadeiramente diabólico. Por exemplo, o que pode haver de mais cínico do que Macbeth no final dizendo: “Amanhã, e amanhã, e amanhã”? Quer que eu vá pegá-lo para você? Justamente hoje eu o estavo lendo e pensava comigo: continua sendo realmente uma síntese fantástica.
retirado de “Entrevistas com Francis Bacon – A brutalidade dos factos” de David Sylvester, edição brasileira da Cosac & Naify
"A terra devastada" e "Quatro quartetos" estão traduzidos por Gualter Cunha e editados pela Relógio d'Água