Tive em miúdo uma doença
E fome e medo. Grossas escamas soltando-se
Dos lábios, que eu humedecia. Nunca esqueci
Esse sabor, salgado e frio.
Mas não parava de andar, andar, andar.
Sentava-me nos degraus do alpendre ao sol,
Caminhava no meu modo leve como se dançasse
A melodia do caçador de ratos, no rio. Sentava-me
Ao sol nos degraus, a tiritar.
E a mãe vinha ali, acenando, parecia
Tão perto, e eu sem poder tocar-lhe:
Movo-me para ela, que sete degraus acima
Acena; movo-me para ela, que acena
Sete degraus acima.
Sentia-me quente,
Desapertei o colarinho e adormeci,
As trombetas soaram, cavalos a galope, a luz
Batia suave minhas pálpebras, a mãe,
Que voava sobre o caminho, acenando,
Partiu...
E agora sonho com
Um branco hospital entre as macieiras,
E um lençol branco sob o meu queixo,
E um médico de branco que olha para mim,
E uma branca enfermeira à cabeceira
Batendo as asas. Estavam todos ali.
Quando a mãe veio, acenando —
E partiu...
Arsenii Tarkovskii, "8 ícones"
Tradução de Paulo da Costa Domingos, edição da Assírio & Alvim (gato maltês #17)
posted by Anónimo on 18:37
Nostalghia
É difícil falar sobre os filmes de Tarkovksy. Posso falar das cores de “Nostalghia”, que são belas e ao mesmo tempo aguadas e luminosas, parecem pintadas; ou então falar dos personagens, Gorchakov, perdido dentro de si próprio, ou Domenico, perdido na humanidade. Posso falar dos espaços: da piscina de Santa Catarina com os seus vapores ou da casa de Domenico com o espelho, as garrafas e a chuva. Posso falar dessa arquitectura da decomposição, das igrejas sem tecto, submersas, das casas invadidas pela água, pelo fogo ou pelas ervas, pelo musgo, uma arquitectura roída, escaqueirada pelo tempo. Ou ainda do cão que segue o Stalker e segue Domenico, das imagens da infância, das árvores, dos objectos partidos, rasgados…
Mas nada disto é suficiente porque o que há nos filmes de Tarkovsky de mais importante é indizível. Numa das cenas de “Nostalghia” Gorchakov encontra uma rapariguinha, não se sabe de onde ela veio, de outro tempo talvez (“o cinema é um mosaico de tempo”, diz Tarkovsky). Ela senta-se numa pedra, com as pernas cruzadas, tão pequena e no entanto tão segura, frente a Gorchakov que já está um bocado bêbado e vacila. E então Gorchakov bêbado e com água pelos joelhos conta-lhe um segredo:
— Sabes, nas grandes histórias de amor, nos clássicos? Não há beijos… não há beijos… nada de nada… são puríssimas. É por isso que são magnifícas. Os sentimentos não expressos em palavras não se esquecem nunca.
Nostalgia: Etimologia Hebdomadária, pela Charlotte:
«Nostalgia não é uma palavra antiga, mas nóstos e álgos são. Nóstos significa o regresso a casa ou a viagem e trata-se de um vocábulo que apareceu na Odisseia de Homero, pois onde havia de ser? Álgos, significa dor de alma, desgosto e terá sido Sófocles quem primeiro escreveu a palavra (o que também me parece credível). Algía é o plural do neutro álgos. A nostalgia será a dor pelo regresso a casa. Há quem lhe chame a saudade de casa. É isso, mas mais forte, mais profundo e não só».
e em Junho havia tantos lilases / que o brilho do mundo se fez turquesa
[...]
Lembro-me de uma entrevista em que Tonino Guerra pedia a Tarkovski para lhe contar a última cena de "Stalker", como se ele fosse cego. E às vezes é tão difícil encontrar as palavras para falar de algo que existe com muita força. Como "Bairro Judaico", que pode facilmente tornar-se um dos livros da vida de alguém. No final de "Nostalghia", pouco antes de imolar-se pelo fogo (a paixão pelo fogo encontra-se em Tarkovski, em Giacometti, em Tonino Guerra, em Mário Rui de Oliveira), Domenico diz: "ouve, é a voz da natureza, é a voz de Deus". E por algum motivo me lembro dessas palavras quando folheio este livro.
Ana Teresa Pereira, "Os Homens, Os Animais e Os Anjos ", no Mil | Folhas
ele começou por ser uma personagem num dos meus livros
No livro "Il vecchio con un piede in Oriente", Tonino Guerra fala-nos de uma das suas viagens à Rússia, de um passeio com Paradjanov, à procura de igrejas abandonadas. De vez em quando surpreendiam-se ao encontrar velas acesas nos muros em ruínas. Entraram numa igreja escura, que tinha nas paredes frescos mais ou menos destruídos pela humidade. Um grande S. Jorge, montado num cavalo branco, dava o golpe mortal no dragão. Na escuridão imóvel da igreja algo aconteceu. Por uma fissura da parede entrava um pouco de luz branca. E nessa luz um ramo de nogueira foi agitado pelo vento. As sombras deslocaram-se, o dragão contorceu-se de dor, e Paradjanov começou a dançar porque o movimento também o contagiava. E de repente parou, dominado por um pensamento, que disse em voz alta: "a morte é uma dança imóvel". O mesmo Paradjanov que numa cama de hospital explicou a Tonino como através da morte de uma cor ia descrever no seu filme a morte de uma mulher; o que contava que as camponesas da Ucrânia bordavam ao luar as suas camisas delicadas; e que ficou com os olhos cheios de lágrimas quando Tonino afirmou perante um grupo de cineastas que o filme "A lenda da fortaleza de Suram" era uma obra-prima. É nesse livro que está "Il cacciatore cieco", um dos contos mais belos que já li, e a história daquele conde que se enamorou de uma princesa representada num fresco do seu castelo, e por causa desse amor encontrou a morte.
[...]
Ana Teresa Pereira, "O Santuário dos Pensamentos", no Mil | Folhas
sexta-feira, março 05, 2004 Sigmund Freud, L'invention de la psychanalyse, no canal arte às 21h15:
Documentário em duas partes de Élisabeth Kapnist (França, 1998, 2x57mn) Escrito por Élisabeth Kapnist e Élisabeth Roudinesco Intervenientes: Jean Clair, Peter Gay, Régine Lockot, Riccardo Steiner e Yosef Hayim Yerushalmi
La première partie présente trois moments essentiels de l'invention de la psychanalyse: le traitement de l'hystérie féminine à la fin du XIXe siècle; la création à Vienne, autour de Freud, d'un premier cercle de disciples qui veulent comprendre la subjectivité humaine et libérer l'homme de ses entraves en explorant les profondeurs du rêve, de la sexualité et de l'inconscient; et enfin la fondation d'un mouvement international ayant pour objectif de diffuser à travers le monde la nouvelle doctrine et la nouvelle technique de guérison des maladies psychiques. Au centre du récit, on découvre l'histoire des médecins qui permirent à Freud de faire ses découvertes (Josef Breuer ou Wilhelm Fliess), puis celle de femmes hystériques (en particulier Anna O.). Homme de science et aventurier, Freud s'inspire de Darwin et se compare à Christophe Colomb. Il s'entoure d'un premier cercle de compagnons, juifs et viennois pour la plupart (les "hommes du mercredi"), hantés comme lui par l'idée de la mort et du déclin de la société dans laquelle ils vivent: l'empire des Habsbourg. Viennent ensuite les disciples non viennois, fidèles et infidèles, parmi lesquels Sandor Ferenczi (Budapest), Karl Abraham (Berlin), Ernest Jones (Londres), Carl Gustav Jung (Zurich). Animés par un esprit de conquête et par un désir d'utopie, tous ces hommes appartiennent à la première génération freudienne. Le monde qu'ils ont connu s'effondre avec le déclenchement de la Première Guerre mondiale...
La seconde partie raconte les transformations de la psychanalyse après la Première Guerre mondiale: son expansion hors de Vienne, sa conquête des grands pays démocratiques, puis l'exil vers les États-Unis et la Grande-Bretagne de tous les praticiens d'Europe continentale. Le cas de la France est abordée à travers le rôle pionnier de Marie Bonaparte et des surréalistes. En Allemagne, les livres de Freud sont brûlés, et sa doctrine condamnée comme "science juive". Soutenus par Jones, quelques praticiens médiocres acceptent de collaborer avec le régime nazi au nom d'un prétendu "sauvetage" de la psychanalyse. Au c?ur du récit, la vie et le travail de Freud, ses livres, sa maladie et ses relations avec sa famille, notamment avec sa fille Anna. Cette dernière deviendra un chef d'école après avoir été analysée par son père. L'exil de Freud à Londres et les derniers moments de sa vie sont montrées par des images en couleur d'une grande beauté. La première génération freudienne était restée proche des théories du maître, malgré de violents conflits. La deuxième génération, formée à Berlin, s'éloignera de la doctrine initiale. C'est notamment le cas de Mélanie Klein, rivale d'Anna Freud et principale représentante, dès 1925, de l'école anglaise. Fondatrice de la psychanalyse des enfants, elle oriente toute la clinique freudienne vers l'étude des origines de la psychose et des relations du nourrisson avec sa mère. Cette seconde partie du documentaire évoque également le devenir de la psychanalyse après la mort de Freud: les doutes, les illusions, l'impact des traitements pharmacologiques, ainsi que le nouvel élan donné par des psychanalystes qui n'ont pas connu son père fondateur, comme Jacques Lacan ou Donald Woods Winnicott.
Esta é a primeira gravação de Águas de Março, com Tom Jobim cantando. Feita para a coleção Disco de Bolso, um encarte do semanário carioca O Pasquim, foi lançada em maio de 1972. O compacto, 33 rpm, vinil, tem do outro lado "Agnus Sei", de João Bosco, que fazia sua estréia em disco.
Tom não toca nenhum instrumento, e sua voz deixa transparecer a dificuldade de cantar a letra em um andamento um pouco mais rápido que o das outras gravações que fez mais tarde.
posted by Anónimo on 13:27
É um dos fotógrafos espanhóis mais importantes de sempre. Amigo de Dalí e Miró, fixou como ninguém a atmosfera urbana de Madrid e Barcelona. Na Galeria Mitra, em Lisboa, Català-Roca passeia pelas ruas destas cidades. Nos anos 50.
Català-Roca: Barcelona/Madrid - Anos 50 Lisboa | Galeria Municipal da Mitra | Rua do Açúcar, Xabregas | De 3ª a dom. | das 14h às 19h | Entrada livre | Até 15 de Abril
«(Uma) das séries mais fascinantes da autora: Strip. Nesta série de fotografias a artista faz-se fotografar enquanto faz um strip-tease perante convidados masculinos. A autora despe-se diante de cada um deles e é a cada um deles que compete escolher o momento do registo fotográfico mas, na imagem final, a artista é vista de costas e são eles que surgem retratados de frente.
A aparente submissão a uma das mais comuns fantasias associadas ao olhar masculino objectificador da mulher transforma-se, assim, numa subordinação desse olhar masculino ao poder de uma encenação feminina que, ao gratificá-lo de modo excessivo, acaba por o esvaziar de poder colocando-o, afinal, na posição de objecto da nossa curiosidade malsã. O que atrai o nosso voyeurismo nestas fotografias não é o modo como a artista se despe mas o modo como os seus colaboradores masculinos "aguentam" a situação.
O facto de os colaboradores convidados serem, todos eles, homens com funções e nomes consagrados no mundo da arte (crítico, dealer, escritor, curator) vem trazer a esta operação estético-sexual uma nova dimensão de implicações, no âmbito de uma sociologia da arte que tenha consciência da indissociabilidade entre significações artísticas e significações culturais, contextuais, construídas no âmbito das lógicas de interacção social no interior do mundo da arte. Entre a economia do desejo e a sociologia da arte, entre a economia da arte e a sociologia do desejo, onde é que está o meu corpo?»
Alexandre Melo, "Onde é que está o meu corpo", Catálogo da Exposição de Jemima Stehli no Centro de Artes Visuais, distribuído com o Jornal Público, no dia 1 de Março
Hoje só fotografei árvores,
Dez, cem, mil.
Vou revelá-las à noite.
Quando a alma for câmara escura.
Depois vou classificá-las:
Segundo as folhas, os anéis dos troncos,
Segundo as suas sombras.
Ah, como as árvores
Entram facilmente umas nas outras!
Vejam, agora só me resta uma.
É esta que vou fotografar outra vez
E vou observar com assombro
Que se parece comigo.
Ontem só fotografei pedras.
E a pedra afinal
Parecia-se comigo.
Anteontem — cadeiras —
E a que resultou
Parecia-se comigo.
Todas as coisas se parecem terrivelmente
Comigo...
Tenho medo.
Marin Sorescu, "Simetria"
Tradução colectiva revista, completada e apresentada por Egipto Gonçalves
Poetas em Mateus, Quetzal
Não precisamos de mais polícias, precisamos de mais pessoas
Este artigo ajuda a perceber porque é que as salas de cinema da cidade fecham: A Cabisbaixa, por Luís Fernandes, no Público.
posted by Anónimo on 13:21
O Passos Manuel vai reabrir #2
O Cinema Passos Manuel pretende assumir-se como um novo "espaço de charme e de intervenção multicultural" do Porto. Encerrada desde Agosto passado, aquela sala de cinema vai reabrir (ver PÚBLICO de anteontem), completamente transfigurada: além de duas sessões diárias de cinema temático e de autor, haverá espectáculos de dança, música electrónica e teatro. A somar a esta oferta, as portas estarão abertas a quem procure um espaço alternativo para conversar, ler ou beber um copo.
[...]
O Silêncio - Ingmar Bergman - dia 5, às 19:00.
La Guerre est Finie - Alain Resnais - dia 6, às 21:30.
A Hora do Lobo - Ingmar Bergman - dia 8, às 19:00.
Os Malditos - Luchino Visconti - dia 8, às 21:30; dia 9, às 22:00.
Morangos Silvestres - Ingmar Bergman - dia 10, às 19:30.
Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse - Vincente Minnelli - dia 11, às 21:30.
Lágrimas e Suspiros - Ingmar Bergman - dia 12, às 21:30; dia 15, às 21:30.
Não sei se alguém reparou mas hoje de manhã a antena 2 passou a Kevin Blechdom. A culpa foi de Natxo Checa, da Galeria Zé dos Bois.
Para perceberem o que isto quer dizer têm mesmo de ouvir: Kevin Blechdom e o seu insólito banjo ---> Binaca
Ontem à hora do almoço deram-me a notícia. Saiu um texto no Público (Local Porto) que não tive tempo para ler nem está disponível on-line, por isso não posso adiantar mais pormenores. Sei apenas que a sala vai ser gerida pelo proprietário do Aniki Bóbó, que vai programar ciclos de cinema e, se não me engano, estão previstas duas sessões por dia.
Estou pronta para a inauguração mas tenho uma dúvida: e o público? Vai aparecer? No primeiro, no segundo e nos restantes dias?
Ele escreve, evidentemente. Uma vez por outra toma um transporte para Berna, para casa dos amigos de gostos literários e aí lê o que porventura escreveu. É claro que é enormemente elogiado, mas ele acha toda aquela gente um pouco estranha e sinistra. Escreve A Talha Quebrada. Mas para quê tudo isso? Chegou a Primavera. Os campos em redor de Thun estão densamente cobertos de flores, o ar é perfumado e zumbe e ressoa e faz preguiça, ao sol está um calor de endoidecer. Sobe à cabeça de Kleist como ondas incandescentes e rubras e atordoa-o sempre que se senta à secretária e quer escrever. Amaldiçoa o seu trabalho. Quis ser camponês quando chegou à Suiça. Que bela ideia, essa. Em Potsdam é possível pensar facilmente numa coisa dessas. Em geral os poetas têm tanta facilidade em imaginar uma coisa. Com frequência senta-se à janela.
[...]
Já me não entendo com essa gente dos comboios suburbanos; esses homens que homens se julgam e que, no entanto, como as formigas, estão reduzidos, por uma pressão que não sentem, aos hábitos que lhes criam. Quando ociosos, em que ocupam eles os seus absurdos e insignificantes domingos?
Certa vez, na Rússia, ouvi tocar Mozart numa fábrica. Escrevi a esse respeito. Recebi duzentas cartas insultuosas. Não quero mal aos que preferem um reles café-concerto. Nenhuma outra harmonia eles conhecem. Mas abomino o dono do café-concerto. Não gosto que degradem os homens.
Outras vezes, porém, o céu parece que foi varrido, e as faixas leves de nuvens não têm uma direcção precisa, mas atravessam de forma estranha e aleatória a atmosfera mais alta. Uma outra forma, mais rara, mas mais bela, surge quando uma grande parte do céu se apresenta como que coberta por uma grelha. Todos estes casos correspondem à designação de cirrus, tal como aquelas nuvens que pairam levemente e se atravessam à frente da Lua.
[...]
Johann Wolfgang Goethe, "O jogo das nuvens"
Tradução de João Barrento, edição da Assírio & Alvim
não se queixe do engano quem pela amostra compra o pano...
Artemidoro de Daldis, oriundo de Éfeso, na Ásia Menor, redigiu um curiosíssimo tratado de interpretação dos sonhos. A obra, composta por cinco livros, é tanto mais interessante quanto rara pois foi redigida em meados do século II da nossa era. Alvo de várias edições no mundo romano, esteve desaparecida e veio a ser reeditada em finais do século XV graças à acção do grande mecenas Lourenço o Magnífico, de cuja versão existem publicações modernas a partir de 1970 (ver ed Akal, 1999).
Aqui fica um exemplo dessa hermética arte da onirocrítica que de tão certeira até dá para se dizer que nem Freud foi tão longe...
“ acerca dos que sonham com loucura e estado de embriagues”
Estar louco resulta favorável para os que iniciam um projecto, pois em qualquer assunto que empreendam não é possível deter os loucos. Sobretudo, é propício este sonho para os que querem ser demagogos, governar as massas e para os que aparecem em público, pois obtêm maior acolhimento. Também é proveitoso para os que querem dedicar-se ao ensino, posto que os jovens tendem a seguir os dementes. Assinala também que os pobres estarão melhor providos de bens, porque o louco recebe de toda a parte. Anuncia saúde para o enfermo, porque a loucura incita a mover-se, ir de uma lado para o outro e a não estar prostrado como os doentes.
Estar embriagado não é positivo, nem para o homem nem para a mulher, pois é sintoma de uma grande insensatez e obstáculo aos seus empreendimentos; certamente que a embriagues é a causa destes significados. No entanto, embriagar-se é um bom sintoma para os temerários, pois os ébrios são indiferentes a tudo e não têm medo.
Em outros tempos chegavam à ponte das candeias multidões
em penitência suplicando graças
para os soldados da guerra, as histórias de amor,
as doenças, para ganhar dinheiro, juventude,
para desejos secretos, por exemplo muitos homens
desentendiam-se com a sua gaita,
se lhe diziam: preparada? Ela respondia: não!
Bastava cruzar a ponte com uma vela acesa
que não podia apagar-se até à cruz do moinho.
Mas o vento soprava, uma brisa descia
da montanha e as mãos fatigavam-se
de tanto proteger a chama e então toca a tentar,
tentar de novo, um mês, um ano…
A uma velha quase a chegar ao fim
pegou-se-lhe fogo à roupa e lá se foi tudo, roupa, tempo e feitio.
Desde essa desgraça os crentes
abandonaram a devoção e mais ninguém lá vai.
No passado domingo dei uma espreitadela à ponte
e vi o filho tolo de Filomena
com uma vela acesa na mão.
A chama estava firme e nem a brisa do fundo
do rio a movia. Qual será a graça que suplica?
Uma vida normal ou continuar a sua loucura?
Antes de chegar à cruz do moinho
logo ali, a dois passos, parou
e soprou sobre o lume.
Na Sexta-feira o Francisco José Viegas publicou dois fragmentos de “O Mel” de Tonino Guerra. Eu prometo o Canto Décimo Sexto para logo à noite, antes da última sessão.
Porque é que o cotão se amontoa debaixo da cama? Porquê precisamente aí? (O assunto já foi abordado pela Dona Violeta n’ As recordações da casa amarela. Abordado sim mas não explicado. É sem dúvida uma questão complexa mas se nem uma mulher experiente como a Dona Violeta a consegue dissecar, que posso eu dizer?)
Porque é que ainda não silenciaram os aspiradores? (Perplexidade partilhada com o gato, que entretanto se escondeu)
Porque é que quando passo camisas a ferro, tarefa tão ingrata e cansativa, o meu apartamento modesto não se transforma na casa ampla e soalheira de João Vuvu, algures num bairro antigo de Lisboa? Fecho e abro os olhos, mas nada acontece. Se não me acautelo queimo a camisa e é tudo o que consigo.
Porque é que as paredes não são suficientemente grandes e altas para poder afixar este cartaz em tamanho real?
Outras perplexidades haveria a apontar mas fico-me por aqui. É fastidiosa a lida doméstica e tenho mais que fazer: Sabbath está à espera.
Ontem encontrei a Alexandra na Rua da Boa Hora. Parámos a conversar um pouco. Quando nos despedimos ela entregou-me umas luvas de pelica que, por engano, levara nos bolsos da gabardine.
Hoje de manhã deixei-as na portaria, nas mãos do escrivão. "Eu sei a quem pertencem", disse ele enquanto sacudia os confetis e sorria.