ele começou por ser uma personagem num dos meus livros
No livro "Il vecchio con un piede in Oriente", Tonino Guerra fala-nos de uma das suas viagens à Rússia, de um passeio com Paradjanov, à procura de igrejas abandonadas. De vez em quando surpreendiam-se ao encontrar velas acesas nos muros em ruínas. Entraram numa igreja escura, que tinha nas paredes frescos mais ou menos destruídos pela humidade. Um grande S. Jorge, montado num cavalo branco, dava o golpe mortal no dragão. Na escuridão imóvel da igreja algo aconteceu. Por uma fissura da parede entrava um pouco de luz branca. E nessa luz um ramo de nogueira foi agitado pelo vento. As sombras deslocaram-se, o dragão contorceu-se de dor, e Paradjanov começou a dançar porque o movimento também o contagiava. E de repente parou, dominado por um pensamento, que disse em voz alta: "a morte é uma dança imóvel". O mesmo Paradjanov que numa cama de hospital explicou a Tonino como através da morte de uma cor ia descrever no seu filme a morte de uma mulher; o que contava que as camponesas da Ucrânia bordavam ao luar as suas camisas delicadas; e que ficou com os olhos cheios de lágrimas quando Tonino afirmou perante um grupo de cineastas que o filme "A lenda da fortaleza de Suram" era uma obra-prima. É nesse livro que está "Il cacciatore cieco", um dos contos mais belos que já li, e a história daquele conde que se enamorou de uma princesa representada num fresco do seu castelo, e por causa desse amor encontrou a morte.
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Ana Teresa Pereira, "O Santuário dos Pensamentos", no Mil | Folhas