Parece-me que Klee inspirou constantemente a pintura de Henri Michaux; de forma nenhuma na aparência, nas coisas que em geral constituem as afinidades, mas no caminhar invisível. Essa mesma inspiração existe em Plume.
Michaux encontra Klee, a obra de Klee, em 1925. «Extrema surpresa». Klee já pintara alguns dos seus mais belos quadros, alguns dos seus mais belos guaches. As cenas de teatro e ballet, os portões de mesquita, os jardins, as lagunas, os carnavais, as comédias de pássaros, os ventos de fogo, as árvores com números, as demónias, as flores, os peixes, os quadrados, as rendas, as fachadas de vidro, as cidades submersas, os lugares de eleição. Ab Ovo, A Montanha do Gato Sagrado, O Recurso Vocal da Cantora Rosa Silber, A Máquina de Chilrear, O Pregoeiro no Pântano, Lomolarm. Fora da Alemanha, porém, só é obra conhecida por coleccionadores, pintores, fauves ou cubistas que em Munique tomaram parte nas exposições do Cavaleiro Azul (Braque, Picasso, Derain, Vlaminck, Gleizes...) e, é bem verdade, por alguns escritores curiosos ou pacientes como Fargue, Bousquet, Arland, Paulhan. No entanto, nesse mesmo ano Klee participa na primeira exposição colectiva do grupo surrealista na galeria Pierre em Paris. Paul Éluard dedica-lhe um poema. Depois volta a fazer-se silêncio. Ao passo que Ernest e Chirico - que Michaux também cita - são divulgados graças às galerias e às revistas de vanguarda.
Aos olhos de Michaux, Klee confirma que a poesia e talvez a verdade estão na metamorfose (uma parte da alma modifica-se, outra é posta a dormir): Michaux diz a trajectória, Klee pinta a flecha. As infinitas fragmentações - espaços esburacados, estilhaços de tempo, pedaços do ser, poeiras - dão conta da totalidade do espaço, do tempo, da consciência, sem perder nada do seu poder de fuga, de extravio, de conjuração, de multiplicação, de nostalgia. A vida e o sinal são uma só coisa. Aqui, o nosso habitat, o labirinto onde imprudentemente, desastradamente o instalámos; lá, uma colecção de sinais. E sem parar, de uns para os outros, um desequilibrio: casa, habitantes, perspectivas - e este olho ou este astro, o nosso olhar.
Poder-se-ia imaginar que um dia Michaux e Klee combinaram dar uma caminhada paralela: seriam Mes Proprietés e Plume - as folhas coloridas.
(Mais secreta, talvez exista outra base comum, «base de necessidades»: a música. Em 1921, e sem qualquer dúvida antes disso, Rainer Maria Rilke reconheceu no desenho de Klee uma transcrição musical. Numa carta ao crítico Hausenstein, escreve: «... Não posso assistir sem uma espécie de arrepio a esta conivência das artes feita nas costas da pintura: como se um dia tivéssemos de sofrer um assalto dessas regiões e ficar pavorosamente desfalcados». Michaux sente isto à sua maneira: Só temos, diz ele, que deixar chegar, deixar actuar. Toda a arte tem a sua tentação própria, e as suas ofertas.)
Relacionando Plume com o Belga (ou «Dinamarquês»), ou Charlot admiti uma personagem que aliás é complexa mas talvez lhe tenha dado mais coesão e, de qualquer modo, mais coerência do que ela própria possui. Não se deveria, pelo contrário, descentrá-la, afastá-la de si própria?
Plume é uma mancha de tinta, um eriçamento, uma nebulosa. Às vezes, porém, concentra-se, atinge qualquer coisa que é, nele, essencial. De maneira nenhuma aquilo que o cerca. Talvez antes uma forma, uma significação menos incerta do que as outras.
... Longe do centro, mas ainda assim um centro, um centro menos evidente.. Deste modo se exprime Michaux quando fala de Klee.
Excerto de "Plume e os anjos" de René Micha incluido na edição "Um certo Plume" da Hiena
Edward Hopper, Night Shadows , 1921, Philadelphia Museum of Art.
A partir de 1915 Hopper dedica-se à gravura onde aproveita para se afastar do pendor narrativo da influência de John Sloan, aproximando-se do ambiente da pintura metafísica de De Chirico.
Giorgio de Chirico,Mistério e Melancolia de uma Rua, 1914.
posted by zazie on 01:55
> Budapeste - Chico Buarque
[Dom Quixote, Fevereiro de 2004]
Gostei de «Estorvo», gostei menos de «Benjamim» e, se o autor fosse outro, talvez tivesse agora ignorado «Budapeste». Mas, tratando-se de Chico Buarque, como passar ao lado de um livro novo sem, pelo menos, abrir e folhear? Foi o que fiz e, depois de alguns minutos de leitura, compreendi que não sairia da livraria sem «Budapeste» e que gostaria mais deste livro do que dos outros dois.
«Budapeste» conta a história de José Costa, que ganha a vida a escrever artigos, discursos e biografias que outros assinam e que, no regresso de um congresso de escritores anónimos na Austrália, passa uma noite em Budapeste e se apaixona pela língua húngara, apesar de não entender nada e porque não entende nada. Será, não muito mais tarde, Zsoze Kósta, dividido entre Budapeste e o Rio de Janeiro, entre Vanda e Kriska, que lhe ensina do húngaro todas as palavras excepto a mais humilhante, o que não o impedirá de se tornar escritor anónimo também na Hungria.
José Costa é anárquico, orgulhoso, caótico e indolente (por exemplo, na noite em que pensa ter ficado cego, depois de um breve pânico, resolve dormir, que já é às escuras, e preocupar-se a sério com isso no dia seguinte). A história angustia, provoca o riso, nunca pára, ouve-se e prende. Genial toda a sequência da passagem de ano no Rio de Janeiro, que começa com José e o filho, Joaquinzinho, em casa, na incerteza da chegada de Vanda, atravessando o deserto do Saara, um dos momentos mais dramáticos, intensos e belos do livro, um desespero em espiral e crescendo dentro da música.
Eu pensava que ia gostar mais deste livro do que dos outros, mas não foi só isso que aconteceu. «Budapeste» não habita o mesmo mundo de «Estorvo» e de «Benjamim». É um mundo, outro mundo. É muito bom. Quando comecei a aproximar-me do fim, comecei a ficar nervosa e a adivinhar uma adaptação penosa às horas depois da última página. Em livros assim apetece morar e eu queria ter mais uns dois ou três como este para ler. Da próxima vez que sair um livro de Chico Buarque, não vou folheá-lo porque é de Chico Buarque, vou lê-lo porque é do mesmo escritor que assina «Budapeste».
Lamentamos informar que mais uma vez Henri Michaux não vai estar presente na Feira do Livro do Porto e por isso mesmo não vai dar autógrafos. Informamos também que possivelmente as únicas obras de Michaux presentes no Pavilhão são a (magnífica, já agora) "Antologia", traduzida por Margarida Vale de Gato e editada pela Relógio d' Água e "Ideogramas na China", editada pela Cotovia.
No entanto a editora que recebe o prémio de persistência neste autor é a Fenda que tem nada mais nada menos que quatro livros traduzidos e editados. Podem procurar nas livrarias (creio que à semelhança do ano passado a Fenda não está representada na Feira do Livro do Porto): "Um Bárbaro na Ásia", "Equador", "As Minhas Propriedades" e "O Retiro pelo Risco". Convém ler tudo.
Há ainda: "Um certo Plume", editado em Junho de 1992 pela Hiena (não sei se ainda está disponível ou não; se houvesse bom senso, claro que tinha esgotado em Julho); "No País da Magia" (Hiena); "Estou a Escrever-te de Um País Distante" (Hiena, esgotado); "Nós Dois Ainda" (& etc, esgotado).
Espero receber muitos mails a dar conta dos imperdoáveis esquecimentos e talvez quem saiba acabar por descobrir que afinal a obra de Michaux está toda editada em Portugal, eu é que estava distraída. Nesse caso sujeito-me ao castigo e começo a aprender chinês.
posted by Anónimo on 13:22
Reedições para breve
Informação proveniente de algumas conversas na Feira do Livro de Lisboa.
- O homem sem qualidades, Robert Musil, Livros do Brasil: não só vai ser reeditado, como revisto (uns parágrafos repetidos serão eliminados e passarão a ser 2 volumes).
- Michael Koolhaas, Heinrich von Kleist, Antígona: deverá sair, em princípio, a meio de Julho. (ouviste, Cristina?)
posted by picatostes on 12:57
"um café e Harold Pinter", por favor
De manhã ainda apanhei um pedaço da conversa de Jorge Silva Melo na antena 2. Fiquei com vontade de ver a história do miúdo que levantou o braço e não mais o pousou (um dia destes na Culturgest, em Lisboa). E depois ouvi este bocado de "O Amante" de Harold Pinter. Tão sucinto e tão bom:
Porque é que o corpo não é um espelho da nossa alma?
Não é dos filmes mais conhecidos de David Lynch, digamos que ainda não tem a imagem de marca do realizador; não há símbolos ou enigmas para desvender, nem orelhas cortadas ou caixas azuis, e os anões que aparecem estão dentro do contexto, são apenas anões estravagantes de circo.
É uma história insólita realizada de forma clássica, lógica e sequencial, uma espécie de relatório clínico.
Filmado num rigoroso preto e branco, com actores exemplares, "O homem elefante" conta a triste história de Joseph Merrick, um homem que nasceu com o corpo deformado e foi andando de feira em feira, explorado por homens que exibiam a sua anormalidade de forma sórdida. Até que um dia um médico resolve aproximar-se de Merrick. Pretende estudar o seu caso e devolver-lhe a dignidade que ele merece. Compra-o e leva-o para o hospital. Tenta mostrar à sociedade que John Merrick não é um animal mas sim um homem. Juntos vão lutar contra a estupidez, a repulsa e os preconceitos. Mas é uma luta em vão. Merrick sofre então como nunca sofreu antes, este homem que tem um corpo que não corresponde à sua sensibilidade, este homem que é humano, tão profundamente humano.
É um dos meus filmes preferidos de Lynch. Gosto da sua austeridade formal e da forma como Merrick transborda de humanidade e de dor. Tocante e comovente.
O homem elefante de David Lynch no arte às 19h45 (repete de 7 de Junho às 23h15)
O mundo às avessas e a corrupção pelo jogo. Pode observar-se um tabuleiro do jogo de trictrac. O jogo de azar era muito comum no século XIV, igualmente conhecido por quaecspel ; tafelspel ou drinquet em na Holanda. O tabuleiro possuía cores alternadas, era eleita uma delas e, de seguida, lançavam-se os dados apostando-se em qual das cores viriam a cair. Se os dados ficavam somente na metade dos espaços de cor, dizia-se drinken (beber ou água) e eram invalidados. Estas jogatinas acabavam muitas vezes em homicídios porque se faziam falcatruas como golpear o tabuleiro para viciar o jogo. Supõe-se que seja equivalente ao jogo castelhano da jaldeta, mencionado em época coeva, entre outros, por Harcipreste de Hita no Libro do Buen Amor.
(ver: Govert Westerveld, La reina Isabel la Católica: su reflejo en la dama poderosa de Valencia, cuna del ajedrez moderno y origen del juego de damas, Generalitat Valenciana, 2004.)
Há dias, num computador antigo, numa pasta chamada "ficheiros antigos" que tinha outras pastas antigas que tinham outras pastas antigas descobri o Sherlock. Esse computador, além de velho, sofreu algumas catástrofes provocadas por mim: Sherlock, quem diria?, de cachimbo impecável, resistiu a todas. Fiquei mesmo nostálgica. Sherlock foi um dos meus grandes vícios nos últimos meses de faculdade. Fiz rapidamente um atalho, sob pena de não conseguir encontrar o caminho de regresso quando quisesse jogar outra vez. O jogo continua a ter os mesmos encantos lógicos:
Os quadros da minha mãe, Clotilde Vautier, são o que me resta dela, um traço da sua vida, dos seus gestos, do seu pensamento. Representam também uma metáfora do segredo. Foram escondidos ao mesmo tempo que as circunstâncias da sua morte.
Para que conste: Henri Eugène Marie Ghislain Michaux nasceu no dia 24 de Maio de 1899 na casa dos seus pais, rue de l'Ange, 36 em Namur na Bélgica.
posted by Anónimo on 13:30
ontem em Serralves
Jackson Pollock |Mural | 1943 | óleo em Tela | The University of Iowa Museum of Art
A sala estava à pinha para ouvir António Damásio. Ele falou com a clareza que lhe é habitual. Falou sobre Guernica de Picasso e sobre este Mural de Jackson Pollock.
O quadro foi pintado para a casa de Peggy Guggenheim. É uma tela grande com quase sete metros de comprimento. Quando Peggy se mudou para Veneza ofereceu o "Mural" à Universidade de Iowa, que é onde ele está agora.
António Damásio vive a cinco minutos do quadro e muitas vezes à hora do almoço vai ao museu, senta-se no banco em frente, olha-o e de cada vez vê coisas diferentes, sempre fascinado pelo ritmo e pela música que transbordam da tela e fascinado também pelo próprio Pollock que como ele disse, citando John Berger, "poderia ter falado mas preferiu ficar mudo".
Nota: o ciclo de cinema russo ainda não tem programa mas a magnolia grandiflora já está em flor
Foi a primeira frase que me ficou nos ouvidos "Devo então eu desistir de mim mesmo?", pergunta Sósia quando encontra Mercúrio, disfarçado de si mesmo, à porta do Palacio de Anfitrião, na segunda cena do primeiro acto. E dizer disfarce é dizer pouco porque se trata de uma apropriação. O deus grego roubou a verdadeira " essência" de Sósia.
Apesar de se apresentar como uma "comédia ao jeito de Molière", Anfitrião de Heinrich von Kleist empurra-nos para uma zona muito escura onde as personagens ficam desorientadas e já não sabem bem quem são. O riso acaba muitas vezes num esgar, ou deveria. Por trás de um jogo de escondidas cruel no qual os deuses se divertem a seu bel prazer e nós os humanos nos damos conta da nossa pequenez e das nossas incertezas, é tudo sombrio.
E foi por isso que não gostei quanto queria; havia cores a mais, luz a mais. Teria preferido uma cenografia diferente, mais escura; os actores iluminados por archotes, velas ou lanternas. Queria ver as sombras nos seus rostos. Assim seria o meu Anfitrião, na penumbra, pronto a desistir, apesar do final aparentemente feliz, ou por causa dele. Um outro Anfitrião.
Pintado dois anos antes da sua morte. De acordo com testemunho de Jo, sua mulher, representava o casal despedindo-se, como duas figuras de pantomina.
posted by zazie on 01:25
terça-feira, maio 25, 2004
Espelho no espelho
I could compare my music to white light which contains all colours. Only a prism can divide the colours and make them appear; this prism could be the spirit of the listener.
Andrei Tarkovsky: Mostly towards the protagonist, towards the Stalker. In a certain sense I am convinced that there is something within me that connects me to him. I would like to help him in some way, to defend him. Let's say that for me he is like a brother. A lost brother, perhaps, but a brother nevertheless. In any case, I feel, in a heart-rending manner, his moments of conflict with the world that so easily wounds him. I feel that his psychological make-up, his approach and reaction to reality, are similar to my own. So much so that, despite being an outlaw, he is much more cultured, educated, and intelligent, in the film, than the writer or the scientist, who nevertheless, as characters, express the very idea of intelligence, science, education. From the very beginning I had the urge to make a bookshelf stuffed full of books appear, suddenly, in the film. And it appears in the film's finale, in a scenography that is entirely inappropriate for such an object. I would like to have such a bookshelf in my home. I've never had such a bookshelf. And I would like to have it in the same disorder in which the Stalker keeps his.
1. Aquilo que escrevo, talvez seja um conto de fadas
2. Presentemente cumprimento uma rapariga
3. Na verdade não devia escrever sobre ela
Três fragmentos inéditos de Robert Walser publicados na revista Ler #62, (Primavera 2004). Onze páginas imprescindíveis.
posted by Anónimo on 15:11
le cinema filme la mort au travail
Le cinema est le seul art qui, suivant la phrase de Cocteau (dans Orphée, je crois), «filme la mort au travail». La personne qu'on filme est en train de vieillir et mourra. On filme donc un moment de la mort au travail. La peinture est immobile; le cinema est intéressant, car il saisit la vie et le côté mortel de la vie.
Jean-Luc Godard, entrevistado pelos Cahiers du Cinéma #138, dezembro de 1962 (número especial dedicado à Nouvelle Vague)
posted by Anónimo on 15:06