"Tu tens a sombra e a luz e eu penso que a música é a combinação das duas. Apenas luz não tem sentido para mim. Mas se for apenas sombra é demasiado escuro, não consegues ver nada. Precisas de luz e sombra, precisas do contraste de tristeza e esperança, amor e raiva. É isso que faz com que a minha música seja dramática, bonita. Esse conflito está sempre presente na minha vida. Por muito que queira caminhar para a luz, tenho de passar pela escuridão para chegar à luz." – dizia Lhasa ao Luís Rei há uns tempos atrás.
Ontem
às onze
fumaste
um cigarro
encontrei-te
sentado
ficámos para perder
todos os teus eléctricos
os meus
estavam perdidos
por natureza própria
Andámos
dez quilómetros
a pé
ninguém nos viu passar
excepto
claro
os porteiros
é da natureza das coisas
ser-se visto
pelos porteiros
Olha
como só tu sabes olhar
a rua os costumes
O Público
o vinco das tuas calças
está cheio de frio
e há quatro mil pessoas interessadas
nisso
Não faz mal abracem-me
os teus olhos
de extremo a extremo azuis
vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós
mas não te importes
não te importes
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem
o estranho verbo nosso
Alguns Vocábulos para a Compreensão
por Mário Cesariny
AA - Vocábulo germânico celta que significa Água.
AHAB - Rei caldeu tão mau que foi lançado aos cães.
ÁGUA LUSA - Água limpa e clara. "O mar está muito lúsio".
ÁGUAS DO CHEFE - Esteira da nau capitânea.
CORREREM AS ÁGUAS COMO SANGUE - Grande força de água.
MAR - ... agitado, de água branca, atravessado, cavado, cruzado, desencontrado, desfeito, espelhado, esperto, estanhado, verde, em flor, de fora, grande, interior, lançado, largo, de leite, livre, vivo. Ver em "Isso Ontem Único", de António Maria Lisboa.
...
Architecte: Walter Gropius Créé par l'architecte Walter Gropius en 1926 pour abriter son école supérieure de création, le Bauhaus de Dessau est l'un des édifices les plus célèbres du XXe siècle. Fondé par Gropius, le mouvement Bauhaus se propose de réconcilier l'art et l'artisanat pour créer une nouvelle esthétique industrielle fondée sur une pédagogie pluridisciplinaire. Pendant plusieurs années, une incroyable créativité jaillira de ce bâtiment étrange aux murs de verre, aux angles droits et aux toits plats...
Maybe I should go and live in Amsterdam
in a side street near a big canal
spend my evenings in the Van Gogh Museum
what a dream, Van Gogh Museum
Maybe its time to see Tangiers
a different life-style, some different fears
and maybe I should be in Edinburgh
in a kilt in Edinburgh
Doin' a modern dance
doin' a modern dance
Or maybe I should get a farm in southern France
where the winds are wispy and the villagers dance
and you and I we'd sleep beneath a moon
moon in June and sleep till noon
And maybe you and I could fall in love
regain the spirit that we once had
you'd let me hold you and touch the night
that shines so bright, so bright with fright
Doin' a modern dance
doin' a modern dance
Shit, maybe I could go to Yucatan
where women are women, a man's a man
ah, no one confused, ever loses place
with their place in the human race
Maybe I'm not cut out for city life
the smell of exhaust, the smell of strife
and maybe you don't wanna be a wife
it's not a life being a wife
Doin' a modern dance
doin' a modern dance
So maybe I should go to Tanganyika
where the rivers run, down mountains tall and steep
or go to India to study chants
and lose romance to a mantra's dance
I need a guru, I need some law
explain to me the things we saw
why it always comes to this
it's all downhill after the first kiss
Maybe I should move to Rotterdam
maybe move to Amsterdam
I should move to Ireland, Italy, Spain
Afghanistan where there is no rain
Or maybe I should just learn a modern dance
where roles are shifting the modern dance
you never touch you don't know who you're with
this week, this month, this time of year
this week, this month, this time of year
Doin' a modern dance
you don't know who you're with modern dance
I should move to Pakistan, go to Afghanistan
Dance, you don't know who you're with
dance, you don't know who you're with
modern dance
And maybe you don't wanna be a wife
it's not life being a wife
doin' a modern dance
you never touch you don't know who you're with
Dance, modern dance
the roles are shifting dance
you never touch you don't know who you're with
Dance, modern dance
maybe you don't wanna be a wife
it's not a life being a wife
O Alfacinha publicou um excelente tratado sobre beijos (post "kiss", de 7.08.). Não resisti e roubei-lhe esta imagem porque, bom, porque ela é cá de casa.
Logo à noite esqueçam a Marilyn e mudem para o canal 2: “Nick’s movie: Lightning over water”, um documentário a não perder.
É um documentário profundo sobre os últimos dias de vida do realizador de culto Nicholas Ray.
Lentamente a morrer de cancro, Ray é reflexo de uma vida inteira de feitos realizados, falhados e compromissos, com muito tempo dedicado às suas memórias de Joan Crawford, James Dean e outros que apareceram nos seus filmes.
A maior parte do filme foi filmada no modesto apartamento de Ray na cidade de Nova Iorque, um agudo contraste com a vida de luxo dos anos de Hollywood.
A exposição Pacheco, a memória de um tempo e de um país que está no Centro Português de Fotografia (Cadeia da Relação, à Cordoaria) é uma autêntica viagem no tempo.
As fotografias feitas no estúdio mostram-nos desportistas em poses estudadas sobre fundos bucólicos; famílias como já não há, compostas por doze irmãos que se alinham em escada, rapazes vestidos à marinheiro e meninas de vestidinhos rendados e laçarotes; damas cheinhas em poses sensuais; artistas e escritores pensativos. Pessoas que se deslocaram à Casa Pacheco para "tirar o retrato", para registar a sua imagem.
Há também fotografias de reportagem: das ruas da cidade, do porto (de Vigo) fervilhante e das fábricas. Ficamos a saber que as mulheres trabalhavam nos têxteis, nas conservas ou faziam roupas para os militares enquanto os homens trabalhavam nas fundições ou na pesca.
Numa fotografia vê-se a rotativa do Faro de Vigo e noutra a redacção onde não há mulheres nem aparelhos eléctricos, apenas papel, canetas e senhores pesados, sentados à secretária.
Na rua vêem-se algumas carruagens e raríssimos automóveis.
Há manifestações de apoio ao nacional-socialismo de Hitler e numa outra fotografia vemos os opositores, de punho erguido, os "camaradas padeiros". Um século que sonhou pesadelos.
É uma lição de história com a vantagem de não ter intenções camufladas, apenas a vontade de registar, fotografar o quotodiano.
o calor deve afectar a memória.
não é que me tinha esquecido da "porta da ravessa" no fundo do tanque.
o que me salvou foi ter visto antes um "monte velho", antes de chegar a esta porta.
posted by Anónimo on 22:47
Olá!
O calor é tanto que há quem opte por fazer os seus afazeres à porta de casa.
Mas no bairro dos pescadores as pessoas vivem mais fora das quatro paredes, do que dentro delas. Ou menos é o que parece.
Não veio em Junho, sabe-se lá se virá no outono mas, enquanto não chegamos aos 54° (salvo seja), é com o Joãozinho que vou p'ra sombra...
“The legendary João Gilberto” reune os três primeiros álbuns de João Gilberto ("Chega de Saudade," "O Amor, O Sorriso e A Flor," e "Joao Gilberto.").
N’ O amor o sorriso e a flor , Tom Jobim escrevia assim na contracapa:
Em janeiro, não aguentei mais e subi a serra. Todos sabem como foram as águas em 60. Como choveu! Cheguei à fazenda, meti-me numas calças velhas e esperei a chegada daquela burrice calma que nos dá nove horas de sono sem sonhos.
O mau tempo e o barro mantinham a todos presos em casa. Bom era quando o dia amanhecia melhorzinho e eu e meu filho, ainda de pijama, íamos ver o trabalho das formigas cortando as roseiras do jardim. Mas qual! Quando o sol começava a querer esquentar vinha logo a chuva e nós corríamos para dentro.
Uma noite, já ia apagar os lampiões, quando ouvi o motor de um carro que pelejava para subir a rampa. João Gilberto e Sra. estavam chegando. Tínhamos combinado que ele viria, mas, devido ao mau tempo já não acreditávamos que Joãozinho chegasse, e logo de taxi!
Depois ele me contou que, atolado na lama, esperou um trator puxar o carro. Vinha cansado e descansou uns dois dias. Então começamos a trabalhar. Fugíamos da sala onde brincavam as crianças prêsas pela chuva. Íamos para um dos quartos vazios, com fôrro de madeira, que aliás dão boa acústica. Lá, longe da cidade e do telefone, trabalhamos sossegados uns dez dias. De vez em quando o trabalho era interrompido pelas crianças que irrompiam no quarto trazendo algum filhote de tico-tico ou de coleiro "caído" do ninho. Nessa época do ano a trepadeira da varanda fica cheia desses ninhos de passarinhos pequenos. Às vêzes também as patroas entravam com um café cheiroso, biscoitos, e ficavam alí um pouco.
Quando o tempo melhorava vinha o sol quente. Tomávamos banho de cachoeira e íamos flanar um pouco pelas redondêzas.
Aí Joãozinho partiu. Dias depois recebo um recado; o disco estava atrazado e o Aloysio havia marcado a gravação. Desci também e começou a correria: estúdio, cópias, músicos.
E tudo foi feito num ambiente de paz e passarinhos.
P. S. - As criancas adoraram "O Pato".
(O pato vinha cantando alegremente, quém, quém / Quando um marreco sorridente pediu / Pra entrar também no samba, no samba, no samba/...)
1. Ora aqui está uma boa notícia: os Artistas Unidos assinaram finalmente um acordo com a Câmara de Lisboa que lhes garante um tecto. Vão ocupar o Teatro Taborda (Costa do Castelo) durante dois anos, que é o tempo necessário para a recuperação do espaço d' A Capital.
Uma feliz coincidência marca a estreia da sala com a peça "A festa" , de Spiro Scimone. Para festejar em Setembro!
Mais pormenores aqui
2. A rtp1 continua o ciclo dedicado a Marilyn Monroe. Hoje é a vez de "The seven year itch" (O pecado mora ao lado), de Billy Wilder. Um filme brilhante que que tem uma das mais irresistíveis imagens da actriz. Pode um pacato marido resistir a uma vizinha tão encantadora ? A culpa será de Rachmaninoff? Para conferir logo à noite.
3. O regime jurídico do Museu do Prado, de Madrid foi alterado. Apesar de continuar dependente do Ministério da Educação e Cultura, o Museu será governado como entidade de direito público, isto é, a sua gestão será autónoma do Estado e terá objectivos muito concretos: subir o número de visitantes e aumentar a capacidade de autofinanciamento.
Recebemos um convite insólito, mas aliciante, para comprar as cadeiras do cinema Odeón. O leilão decorre no site www.lisboa-abandonada.net:
Porque o Odéon já está fechado há 6 anos, as intempéries podem estragar muita coisa, e os especuladores imobiliários não dormem em serviço; e a conselho de um bom amigo da causa odeoniana; colocámos hoje à "venda" (simbolicamente) as 700 cadeiras que formam a plateia e os dois balcões do Cinema Odéon.
...
Objectivo: lutar para que o Odéon não morra como o Éden ou o Monumental, nem entre em coma como o Paris, nem sequer seja reciclado como o Condes; ficando só na memória privilegiada das antigas gerações. Lisboa merece um cinema como o Odéon.
Logo às 00h55, na rtp1: Niagara com Marilyn e Joseph Cotton.
A Monroe? Não passava de uma maltrapilha, uma divindade desleixada – no mesmo sentido que um banana split é desleixado mas divino.
Os seus lábios escorregadios, a sua transbordante beleza loura e as alças deslizantes do soutien, as rítmicas convulsões da carne irrequieta retorcendo-se por entre decotes sem espaço – são os seus emblemas, os traços susceptíveis de serem caricaturados e que, supostamente, a tornaram imediatamente reconhecível em todo o mundo. Todavia, naquela que se diz ser a vida real, não será fácil identificar a Monroe. Circula pelas ruas de Nova Iorque sem que os olhares dos outros a molestem, faz sinal a táxis que não param, é servida de sumo de laranja numa esplanada Nedick's por um empregado alheio ao facto de a sua cliente ser o sujeito de algumas das suas mais ambiciosas ambições; na verdade, o mais frequente é terem de nos dizer que Monroe é Monroe, visto que, à primeira vista, parece apenas mais um espécie da gueixa americana, a boneca de luxo, uma dessas jovens atrevidas de cabaré cujas carreiras progridem do cabelo pintado aos doze anos para um ou três maridos confiscados aos vinte.
Esses estranhos que nós amamos
e nos amam
olhamos para eles e são sempre
adolescentes, assustados e sós
sem nenhum sentido prático
sem grande noção da ameaça ou da renúncia
que sobre a luz incide
descuidados e intensos no seu exagero
de temporalidade pura
Um dia acordamos tristes da sua tristeza
pois o fortuito significado dos campos
explica por outras palavras
aquilo que tornava os olhos incomparáveis
Mas a impressão maior é a da alegria
de uma maneira que nem se consegue
e por isso ténue, misteriosa:
talvez seja assim todo o amor
José Tolentino Mendonça , De Igual para Igual,
Assírio & Alvim, 2001
É verdade, vivo em tempos de trevas.
É insensata toda a palavra ingénua. Uma testa lisa
revela insensibilidade. Os que riem
riem porque ainda não receberam
a terrível notícia.
Que tempos são estes, em que
uma conversa sobre árvores é quase um crime
porque traz em si um silêncio sobre tanta monstruosidade!
Aquele ali, tranquilo a atravessar a rua,
não estará já disponível para os amigos
em apuros?
É verdade: ainda ganho o meu sustento.
Mas acreditem: é puro acaso. Nada
do que eu faço me dá o direito de comer bem.
Por acaso fui poupado (quando a sorte me faltar, estou perdido.)
Dizem-me: come e bebe! Agradece por teres o que tens!
Mas como posso eu comer e beber quando
roubo ao faminto o que como e
o meu copo de água falta a quem morre de sede?
E apesar disso eu como e bebo.
Também eu gostava de ter sabedoria.
Nos velhos livros está escrito o que é ser sábio:
Retirar-se das querelas do mundo e passar
este breve tempo sem medo.
E também viver sem violência
pagar o mal com o bem
não realizar os desejos, mas esquecê-los.
Ser sábio é isto.
E eu nada disso sei fazer!
É verdade, vivo em tempos de trevas!
Bertolt Brecht tradução de João Barrento
O TEMPO DAS TREVAS
QUE NA TERRA LHE FOI DADO
1. Na antena 1, António Cartaxo fala sobre a Ária (Cantilena) da Bachiana nº5 de Heitor Villa-Lobos. Fico comovida, é uma das minhas músicas preferidas e sempre que a ouço o mundo parece-me melhor. Doce ilusão.
Fixei esta frase do compositor brasileiro: “O meu primeiro tratado de harmonia foi o mapa do Brasil.”
2. Tenho descoberto alguns blogs dedicados ao teatro: Campo de Afectos e Teatro no Ar, ambos de Carlos Alberto Machado e Teatro/Portugal , de José Luís Ferreira.
Ainda sobre teatro, destaque para um excelente apontador: Teatro links Todos merecem uma visita atenta.
3. Há um novo farol na blogosfera a apontar para o cinema, livros, artes, ideias, viagens e actualidades.
Não consigo imaginar o fogo, o sufoco, as chamas, a morte. Vejo as fotografias, olho para as imagens da televisão, ouço os lamentos de quem esteve nesse inferno, mas é impossível. Não consigo imaginar esta realidade. Não de modo a ter medo. Resta-me apenas uma profunda tristeza, uma espécie de luto.
Drama, calamidade, horror. As palavras são pesadas mas ainda mais pesada é a certeza que tudo se irá repetir. Ano após ano, a tragédia chega e nós choramos. De certeza que se pode fazer algo. Os incêndios não podem ser visto como má sina do verão. Perante esta resignação a tristeza transforma-se em náusea, raiva e vergonha.
No seguimento de uma animada conversa entre BCers (bookcrossers) sobre livros obrigatórios, surgiu a ideia de nos aventurarmos em conjunto na audaciosa leitura do "Ulisses", de James Joyce. Muitos eram os que confessaram referências sobre este livro, recomendações de alto gabarito, e alguns até tinham o volume em casa à espera da coragem da leitura...
Ora, nada melhor do que a união! Decidiu-se ali mesmo fazer uma leitura partilhada do livro. Cada um dos aderentes a esta ideia leriam o livro capítulo a capítulo, e no intervalos trocariam ideias sobre a leitura, emoções, partilhariam dificuldades e entusiasmos. Todos convencidos que com esta empenhada companhia seria mais fácil e agradável concluir tamanha viagem.
É uma óptima ideia e extremamente bem concretizada em forma de blog.
Ontem na biblioteca encontrei uma preciosidade: “Ah Q”, de Bernard Chartreux e Jean Joudheuil.
Escrevemos uma peça, uma “tragédia chinesa” como lhe chamámos, qualquer coisa que quisemos a meio caminho entre da “tragédia” e a “comédia popular” e, portanto, alheia às regras do género trágico, com base num folhetim outrora publicado num jornal de Pequim pelo escritor Lu Sun: “A verdadeira história de Ah Q”. Este folhetim trata de uma personagem, Ah Q, despojada de tudo, dinheiro, mulher, nome, que no fim (nos últimos capítulos) é confrontada com a revolução de 1991, como explica Jean Jourdheuil no prefácio.
A peça foi estreada em Março de 1976 pela Cornucópia e, quatro meses depois, editada em forma de livro, pela Livraria Ulmeiro (com tradução de Luísa Neto Jorge).
Na net consegui encontrar uma entrevista ao Jorge Silva Melo que representou o Ah Q e da qual respiguei esta resposta:
Uma das maiores lições que tive sobre a arte deu-ma o Jean Jourdheuil na Cornucópia. A maior vergonha da minha vida, mas conto. A seguir ao 25 de Abril, a companhia de que gostávamos mais era a do Théâtre de l´Espérance (do Jean-Pierre Vincent e do Jean Jourdheuil). Fomos a Paris, o Luís Miguel Cintra e eu, ainda em 1974, e o Jean deu-nos quatro peças à escolha.Entre elas, o Ah Q, escrita por ele próprio. Começámos a ensaiar e ele vinha só de vez em quando. Eu era o "protagonista principal" (como diz a D. Eugénia Vasques), tinha três horas e meia de cena. No primeiro dia de ensaio geral, fizemos a peça inteira para o Jean ver. Acaba-se o ensaio e o Jean faz comentários à Márcia Breia, ao Luís Miguel... e a mim nada. Meti-me no carro, preocupado, tinha de o levar a casa. A certa altura, ao pé do cinema Paris, ele diz-me: "Espera aí, tenho umas coisas para te dizer: o trabalho está engraçado mas fizeste uma coisa que está errada. Vou-te contar um texto do Lessing sobre a estátua de Laocoonte." A estátua apanha o Laocoonte no momento em que as serpentes ainda não mataram as crianças nem ele matou as serpentes. Porque se o tipo que fez a estátua tivesse apanhado o Laocoonte antes ou depois, não havia dinamismo. E eu estava a representar a peça como se já tivesse matado as serpentes, já as crianças estavam crescidas, já tinha feito a festa e deitado os foguetes todos: estava a mostrar tudo e não a sugerir. Lembro várias vezes esse texto aos actores: a arte da sugestão, o não-fazer, é muitas vezes mais importante do que o fazer. Também insisto sempre no Marceneiro como cantor obrigatório: como o Lou Reed, canta sem cantar, canta mais quem ouve; é na pausa ou na maneira de não-cantar que eles nos convidam a ir até à melodia. É o que eu gostava que o teatro fosse: a partilha de um gesto inacabado, um convívio sobre esses gestos esquecidos, gestos perdidos.
Esqueci a data mas o certo é que ontem fizemos seis meses. Não sei se é muito ou pouco em termos de blogs. Desconfio que é pouco porque acredito neste novo meio. Não quero discuti-lo em demasia mas não partilho a má fá dos que veêm nos blogs um espelho de narciso.
Incorporei os blogs nas minhas leituras diárias, junto aos livros e aos jornais e custar-me-ia abdicar deles. Assim como também não seria fácil abandonar esta janela porque, mais do que um espelho, ela transformou-se num instrumento de trabalho excepcional. Ajuda-me a sistematizar os conhecimentos, exige-me que vá além do banal, empurra-me a aprender mais e, acima de tudo, abre-se para uma audiência excepcional.
É a todos os que leêm a janela que gostariamos de agradecer, porque, apesar de não entrarmos no jogo contabilístico das audiências, temos consciência que são as pessoas que estão do outro lado que nos fazem continuar. A todos: muito obrigado.
Nunca percebi porque é que este livro não esgotou. Porque é que não houve mais tiragens, porque é que desapareceu das livrarias.
Escrito em 1989, traduzido (por Ana Luísa Faria) e editado em 1993, encontro-o às vezes nas feiras de saldos e fico triste, porque a "Marca de água" não devia estar fechado em armazéns com cheiro a mofo.
É a mais bela viagem a Veneza (e muito para além dela) que conheço.
Em tempo de férias, a Janela abre-se para a água, na companhia do Joseph Brodsky:
Marca de água
Veneza, anos trinta
Os olhos, nesta cidade, adquirem uma autonomia análoga à das lágrimas. A única diferença está em que não se desprendem do corpo, mas subjugam-no por completo. Ao fim de algum tempo – ao terceiro ou quarto dia aqui passado – o corpo começa a considerar-se como mero portador dos olhos, como uma espécie de submarino ao serviço do seu periscópio pronto a dilatar-se ou a semicerrar-se. Apesar da abundância dos alvos, as explosões do submarino atingem sempre, claro está, o seu próprio casco: é o nosso coração, ou o nosso espírito, que soçobra; só os olhos vêm à tona. Isto deve-se à topografia da cidade, às ruas – estreitas, sinuosas como enguias – que por fim nos conduzem ao linguado de um campo com uma catedral ao centro, cravejada de santos como um rochedo de lapas, e ostentando as suas cúpulas medusinas. Seja qual for o destino com que aqui saímos de casa, estamos condenados a perder-nos nestas vielas e ruas enoveladas que nos convidam a decifrá-las, a segui-las até ao fim impalpável, pois geralmente terminam na água, de forma que nem sequer podemos chamar-lhes becos. No mapa esta cidade parece um par de peixes grelhados na mesma travessa, ou talvez duas pinças de lagosta ligeiramente sobrepostas (Pasternak comparou-a a um croissant inchado); mas não tem Norte, nem Sul, nem Este nem Oeste; o único rumo que tem é o enviesado. Cerca-nos como um mar de algas geladas, e quanto mais corremos de um lado para o outro, procurando orientar-nos, mais nos perdemos. As setas amarelas nos cruzamentos também não ajudam muito, pois também elas se encurvam. Algas que são, não ajudam, iludem. E na mão de gestos fluídos do indígena a quem detemos para pedir informações, o olhar, alheio à torrente confusa dos seus A destra, sinistra, dritto, dritto, distingue prontamente um peixe.