Ontem na biblioteca encontrei uma preciosidade: “Ah Q”, de Bernard Chartreux e Jean Joudheuil.
Escrevemos uma peça, uma “tragédia chinesa” como lhe chamámos, qualquer coisa que quisemos a meio caminho entre da “tragédia” e a “comédia popular” e, portanto, alheia às regras do género trágico, com base num folhetim outrora publicado num jornal de Pequim pelo escritor Lu Sun: “A verdadeira história de Ah Q”. Este folhetim trata de uma personagem, Ah Q, despojada de tudo, dinheiro, mulher, nome, que no fim (nos últimos capítulos) é confrontada com a revolução de 1991, como explica Jean Jourdheuil no prefácio.
A peça foi estreada em Março de 1976 pela Cornucópia e, quatro meses depois, editada em forma de livro, pela Livraria Ulmeiro (com tradução de Luísa Neto Jorge).
Na net consegui encontrar uma entrevista ao Jorge Silva Melo que representou o Ah Q e da qual respiguei esta resposta:
Uma das maiores lições que tive sobre a arte deu-ma o Jean Jourdheuil na Cornucópia. A maior vergonha da minha vida, mas conto. A seguir ao 25 de Abril, a companhia de que gostávamos mais era a do Théâtre de l´Espérance (do Jean-Pierre Vincent e do Jean Jourdheuil). Fomos a Paris, o Luís Miguel Cintra e eu, ainda em 1974, e o Jean deu-nos quatro peças à escolha.Entre elas, o Ah Q, escrita por ele próprio. Começámos a ensaiar e ele vinha só de vez em quando. Eu era o "protagonista principal" (como diz a D. Eugénia Vasques), tinha três horas e meia de cena. No primeiro dia de ensaio geral, fizemos a peça inteira para o Jean ver. Acaba-se o ensaio e o Jean faz comentários à Márcia Breia, ao Luís Miguel... e a mim nada. Meti-me no carro, preocupado, tinha de o levar a casa. A certa altura, ao pé do cinema Paris, ele diz-me: "Espera aí, tenho umas coisas para te dizer: o trabalho está engraçado mas fizeste uma coisa que está errada. Vou-te contar um texto do Lessing sobre a estátua de Laocoonte." A estátua apanha o Laocoonte no momento em que as serpentes ainda não mataram as crianças nem ele matou as serpentes. Porque se o tipo que fez a estátua tivesse apanhado o Laocoonte antes ou depois, não havia dinamismo. E eu estava a representar a peça como se já tivesse matado as serpentes, já as crianças estavam crescidas, já tinha feito a festa e deitado os foguetes todos: estava a mostrar tudo e não a sugerir. Lembro várias vezes esse texto aos actores: a arte da sugestão, o não-fazer, é muitas vezes mais importante do que o fazer. Também insisto sempre no Marceneiro como cantor obrigatório: como o Lou Reed, canta sem cantar, canta mais quem ouve; é na pausa ou na maneira de não-cantar que eles nos convidam a ir até à melodia. É o que eu gostava que o teatro fosse: a partilha de um gesto inacabado, um convívio sobre esses gestos esquecidos, gestos perdidos.