domingo, agosto 03, 2003
Nunca percebi porque é que este livro não esgotou. Porque é que não houve mais tiragens, porque é que desapareceu das livrarias.
Escrito em 1989, traduzido (por Ana Luísa Faria) e editado em 1993, encontro-o às vezes nas feiras de saldos e fico triste, porque a "Marca de água" não devia estar fechado em armazéns com cheiro a mofo.
É a mais bela viagem a Veneza (e muito para além dela) que conheço.
Em tempo de férias, a Janela abre-se para a água, na companhia do Joseph Brodsky:
Marca de água
Veneza, anos trinta
Os olhos, nesta cidade, adquirem uma autonomia análoga à das lágrimas. A única diferença está em que não se desprendem do corpo, mas subjugam-no por completo. Ao fim de algum tempo – ao terceiro ou quarto dia aqui passado – o corpo começa a considerar-se como mero portador dos olhos, como uma espécie de submarino ao serviço do seu periscópio pronto a dilatar-se ou a semicerrar-se. Apesar da abundância dos alvos, as explosões do submarino atingem sempre, claro está, o seu próprio casco: é o nosso coração, ou o nosso espírito, que soçobra; só os olhos vêm à tona. Isto deve-se à topografia da cidade, às ruas – estreitas, sinuosas como enguias – que por fim nos conduzem ao linguado de um campo com uma catedral ao centro, cravejada de santos como um rochedo de lapas, e ostentando as suas cúpulas medusinas. Seja qual for o destino com que aqui saímos de casa, estamos condenados a perder-nos nestas vielas e ruas enoveladas que nos convidam a decifrá-las, a segui-las até ao fim impalpável, pois geralmente terminam na água, de forma que nem sequer podemos chamar-lhes becos. No mapa esta cidade parece um par de peixes grelhados na mesma travessa, ou talvez duas pinças de lagosta ligeiramente sobrepostas (Pasternak comparou-a a um croissant inchado); mas não tem Norte, nem Sul, nem Este nem Oeste; o único rumo que tem é o enviesado. Cerca-nos como um mar de algas geladas, e quanto mais corremos de um lado para o outro, procurando orientar-nos, mais nos perdemos. As setas amarelas nos cruzamentos também não ajudam muito, pois também elas se encurvam. Algas que são, não ajudam, iludem. E na mão de gestos fluídos do indígena a quem detemos para pedir informações, o olhar, alheio à torrente confusa dos seus A destra, sinistra, dritto, dritto, distingue prontamente um peixe.