Havia um relógio por cima da entrada ?a ubíqua e sincronizada face, insensível, premonitória, oracular: ainda tinha vinte e dois minutos. E vai levar só dois minutos a contar ao Mac o que levei meses a descobrir pensou. ? Eu tinha-me transformado em marido ?disse ele ?. Foi isto. Eu nem sabia, até ela me dizer que lhe tinham oferecido continuar no emprego. A princípio eu costumava vigiar-me, ensaiar-me de cada vez para ter a certeza de dizer ?a minha mulher? ou ?Mrs. Wilbourne?, e depois descobri que durante meses eu me vigiava para não dizer; até dei comigo, duas vezes, desde que voltámos do lago, a pensar ?Quero que a minha mulher tenha tudo do melhor?, exactamente como qualquer marido com o seu envelope de paga ao sábado e a sua vivenda suburbana cheia de aparelhos eléctricos que aliviavam as esposas e o seu tabuleiro de relva para aparar ao domingo pela manhã, e que tudo será seu, se, nos próximos dez anos, não for despedido ou atropelado por um automóvel... o verme condenado, e cego para a paixão e morto para a esperança, e nem sequer sabendo, obnubilado e insciente em face da treva do desconhecido, da subjacente e displicente aposta que estourará com ele. Até deixei de ter vergonha da maneira como ganhava dinheiro, desculpando-me das histórias que escrevia; eu não tinha mais vergonha delas do que o empregado que compra a prestações a vivenda, em que a esposa pode ter o melhor, tem vergonha da insígnia do seu emprego, o desentupidor de retretes que leva consigo. Com efeito, eu chegara a escrevê-las, mesmo independentemente do dinheiro, como o rapaz que nunca viu gelo fica entusiasmado logo que aprende a patinar. Além de que, depois de ter começado a escrevê-las, aprendi que não tinha ideia das profundezas de depravação de que a inventiva humana é capaz, o que é sempre interessante...
?De que é capaz não; em que se compraz ?disse MacCord.
?Isso. Está bem... Interessante para a respeitabilidade. Foi isto. Eu compreendi, há algum tempo, que a ociosidade gera as nossas virtudes, as nossas mais suportáveis virtudes: a contemplação, a equanimidade, a preguiça, o deixar os outros em paz; boa digestão mental e física: a sabedoria de concentrar a atenção nos prazeres da carne: comer e evacuar e fornicar e estar sentado ao sol; que não há manda melhor, nada que se compare, nada no mundo senão viver o breve tempo em que nos é emprestado o respirar, estar vivo e sabê-lo... oh, sim, ela ensinou-me isso; ela marcou-me para sempre...nada, nada. Mas só recentemente é que eu vi claramente, tirei a conclusão lógica, que o que nós chamamos primaciais virtudes: economia, trabalho, ?independência?, isso é que gera todos os vícios; fanatismo, petulância, mexeriquice, medo, e pior que tudo, respeitabilidade. Nós, por exemplo, sabíamos ao certo de onde viria a comida de amanhã (o maldito dinheiro, demais, à noite, ficávamos acordados a pensar em como gastá-lo; na Primavera, andaríamos com folhetos de turismo na algibeira), eu tornara-me tão completamente amarrado e escravo da respeitabilidade, como qualquer...
?Mas ela não?disse MacCord.
?Não. Mas ela é mais homem do que eu.