Quando o vi na livraria a capa fez-me imaginar um desfile das mesmas imagens que sempre se repetem em tantos livros e em tantas galerias de Doisneau. Este fim-de-semana um amigo apareceu com o livro debaixo do braço. Ignorei. Mostrou-o. Ignorei. Pousou-o na mesa. Ignorei. Acenou-me com ele. Ignorei. Passaram-se horas. Abri-o distraidamente numa pausa de conversa. O mundo cessou. Quando regressei, sabia que não tinha visto Doisneau antes. Jean-Claude Gaufrand escreveu e organizou assim o livro:
> Lessons of the Street
> Paris: The Luck of the Stroll
> Robert Doisneau's Legacy
> Photos
1912/1939 - The Early Years
1939/1944 - The War
1945/1960 - A Thirst for Images
1960/1994 - From Toil to Consecration
Admiráveis todas fotografias, tentei encontrar as que queria deixar na Janela mas não foi possível (ainda). Impressionam mais as de 1944 e dos anos imediatamente seguintes. Nas de 1944 não há indicação de mês, não se sabe se foram tiradas antes ou depois de Agosto, mas para que precisaríamos dessa nota se Doisneau fotografou, silenciosos mas muito nítidos, o cansaço, o alívio, a alegria enorme e genuína das pessoas? Essa alegria é imensa em cada imagem - nos gestos, nos olhos, nos corpos, nos passos que param sob a chuva (não, a chuva não mata, não é a chuva que mata). Mais tarde as ruas de Doisneau voltam a ser habituais e a alegria dá lugar à pressa ou ao abandono, os olhos voltam-se para o chão, o chão é mais sujo, as caras envelhecem, mesmo as das crianças que nunca conheceram a guerra.
Porque precisaremos sempre disto? De habitar a morte para saber que ter tudo, mas absolutamente tudo, é parar sob a chuva e abrir os braços, que a alegria é este momento, este dia e mais nenhum? Que cada árvore que não vemos e cada riso que calamos são ofertas feitas à nossa própria morte? Complicamos, complicamos. Nós merecemos as guerras. Merecemos o pior do mundo que temos. Só depois do limite sabemos quais são as coisas prioritárias. De resto somos cobardes, mesquinhos, cegos com status, com o ego, com a cor do carro, com a galinha da vizinha, com paternalismos inúteis e hipócritas, com o eterno jogo da moeda para pessoas minimamente informadas que é a divisão política do mundo entre esquerda e direita, arte incluída nesse jogo torpe como arma de arremesso ou vestido de gala, não pensamos, não queremos saber. Ficamos pois muito chocados quando descobrimos que, sim, a morte existe. Wow! E ficamos muito felizes quando lhe sobrevivemos. Descobrimos subitamente como é simples viver bem. E esquecemo-lo facilmente. Com um mínimo de dignidade não teríamos a lata de nos queixarmos da triste e patética condição humana que a nossa estupidez, só a nossa estupidez, nos impõe.
posted by camponesa pragmática on 01:36