domingo, dezembro 28, 2003
Bailarina com meias vermelhas
Edgar Degas, c. 1884. Pastel sobre papel cor-de-rosa. Colecção privada
David Sylvester – Mas por que se tem de distorcer tão livremente, como fazem os artistas modernos – e como você próprio faz –, e não simplesmente executar aquele tipo de síntese à moda, por exemplo, de Degas?
Francis Bacon – Pode ser, mas a fotografia no tempo de Degas ainda não era desenvolvida como hoje. Outra coisa é que, quando você fala de Degas, os grandes Degas realmente são os pastéis, e não se esqueça de que nos pastéis ele sempre faz estrias na forma com aquelas linhas que são desenhadas através da imagem e, em certo sentido, isso ao mesmo tempo intensifica e diversifica a realidade. Sempre achei que o interessante em Degas é a maneira como fez as linhas ao longo do corpo: é como se ele colocasse o corpo atrás de venezianas, como se de certo modo vedasse a imagem com venezianas e depois pusesse uma enorme quantidade de cores permeando as linhas. E uma vez disfarçada a forma, a intensidade seria dada pelo colorido da carnadura. Do mesmo modo que as técnicas do cinema e de tudo quanto é forma de gravação foram aperfeiçoando-se, também o pintor está na obrigação de tornar-se cada vez mais inventivo. Ele tem de inventar o Realismo. Ele tem de, com a sua criatividade, trazer de volta o Realismo para o sistema nervoso, porque não existe mais um naturalismo na pintura de hoje. Mas alguém seria capaz de responder por que muito frequentemente, ou quase sempre, as imagens acidentais são mais reais? Talvez porque, não tendo sido modificadas pelo pensamento consciente, elas tenham encontrado um sentido mais puro e verdadeiro do que uma coisa que tivesse sido modificada pela consciência. Nesse sentido, isso é muito parecido, claro, com a arte que as crianças fazem; mas estou falando da arte de uma criança muito pequena, porque sabemos que, depois dos sete ou oito anos – ou até antes, quando elas começam a ser influenciadas pelo meio –, toda a espontaneidade e vitalidade desaparecem e tudo se torna muito chato. Mas o problema com a arte infantil é que mesmo quando ela é da melhor espécie ainda não basta.
retirado de “Entrevistas com Francis Bacon – A brutalidade dos factos” de David Sylvester, edição brasileira da Cosac & Naify e enviado para o Pedro.