terça-feira, junho 17, 2003
Hoje temos um post especial que muito nos agrada publicar. Trata-se de duas excelentes propostas do Rui Manuel Amaral, a quem passo a palavra:
Sandro Penna & Seamus Heaney
Gostaria de falar de dois livros de poemas editados nas últimas semanas e que julgo merecerem uma referência especial. Refiro-me a "No Brando Rumor da Vida" de Sandro Penna, editado pela Assírio, com tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo, e "Luz Eléctrica", de Seamus Heaney, lançado pela Quasi, e com tradução de Rui Carvalho Homem.
Sandro Penna (1906-1977) é um dos mais fascinantes e extraordinários poetas italianos do século XX, ao lado de Cardarelli, Palazzeschi, Ungaretti, Montale ou Pavese. Pasolini, por exemplo, considerava-o o maior poeta lírico italiano. Em português, e até à data, mantivera-se mais ou menos secreto. Conheciam-se apenas algumas versões dos seus poemas pela mão de Jorge de Sena (Poesia do Século XX, 2ª ed., 1994), Albano Martins (Dez Poetas Italianos, 1992), e, mais recentemente, Gastão Cruz (revista Relâmpago, nº11, 2002).
Do irlandês Seamus Heaney (1939), pelo contrário, existiam já duas extensas recolhas em português: "Da Terra à Luz: poemas, 1966-1987", numa tradução de Rui Carvalho Homem (Relógio d’Água, 1997) e "Antologia Poética", organizada e traduzida por Vasco Graça Moura (Campo das Letras, 1998), ambas editadas ainda no rescaldo da atribuição do Prémio Nobel ao autor, em 1995. A estes livros podíamos ainda acrescentar a tradução brasileira da Companhia das Letras. Heaney é uma das referências mais importantes da literatura de expressão inglesa da segunda metade do século XX. É um autor extremamente popular no Reino Unido, com os seus livros a assumirem contornos de best-sellers. "Luz Eléctrica" é a tradução do seu último livro de poemas originais "Electric Light", editada pela Faber, em 2001.
O lançamento destes livros é, para quem gosta de poesia, um dos acontecimentos literários de 2003.
De Sandro Penna reproduzo um pequeno e belíssimo poema incluído na breve recolha de Gastão Cruz. De Seamus Heaney, escolhi um dos poemas do seu primeiro livro, "Death of a Naturalist" (1966), intitulado "Digging", que eu tive a sorte de ouvir dito pelo próprio autor, numa noite chuvosa de 2001, na Biblioteca Almeida Garrett.
Céu vazio. porém nos olhos negros
deste rapaz eu rezarei a um deus.
Mas o meu deus de bicicleta afasta-se
ou molha o muro com desenvoltura.
Sandro Penna, tradução de Gastão Cruz
Cavando
Entre polegar e indicador
Aconchega-se a caneta; firme como arma.
Sob a janela, o som seco e áspero
Da pá que se enterra em chão pedregoso:
O meu pai, cavando. Baixo o olhar
Sobre o dorso esforçado entre os canteiros
Vergando-se, erguendo-se a vinte anos de distância
Curvado ao ritmo de regos de batata
Onde cavava.
A bota rude fincando-se na pá, a perna
Firme contra o cabo, em alavanca.
Ele arrancava ramas, a lâmina brilhante ia bem fundo
E espalhava batatas novas que apanhávamos,
Gozando a dureza fria nas nossas mãos.
Meu Deus, o velho manejava bem a pá.
Tal como o velho dele.
O meu avô cortava mais turfa num dia
Que qualquer outro homem na turfeira de Toner.
Levei-lhe uma vez leite numa garrafa
Com rolha amolecida de papel. Ergueu-se apenas
P’ra beber, e logo se vergou de novo
Sachando e cortando com gana, lançando torrões
Sobre o ombro, buscando mais e mais fundo
A boa turfa. Cavando.
O odor frio do húmus da batata, os sons lodosos
Da turfa molhada, os golpes bruscos da lâmina
Em raízes vivas acordam-me na mente.
Mas não tenho uma pá p’ra lhes seguir o exemplo.
Entre polegar e indicador
Aconchega-se a caneta.
Com ela hei-de cavar.