Para compreender este homem apartado que é Beckett seria preciso nos determos na expressão "manter-se à parte", divisa tácita de cada um de seus momentos, no que ela pressupõe de solidão e de obstinação subterrânea, na essência de um ser afastado que prossegue um trabalho implacável e sem fim. (...)
Ele não vive no tempo, mas paralelamente ao tempo. É por isso que nunca tive a ideia de lhe perguntar o que pensava desse ou daquele acontecimento. É uma dessas pessoas que fazem pensar que a história é uma dimensão de que o homem poderia prescindir.
Se fosse parecido com seus heróis, se não tivesse tido nenhum sucesso, seria exatamente o mesmo. Dá a impressão de não querer afirmar-se de modo algum, de ser igualmente alheio à ideia de êxito e de fracasso. "Como é difícil decifrá-lo! E que classe ele tem!" É o que digo para mim mesmo toda vez que penso nele. Se, por um absurdo, não escondesse nenhum segredo, ainda assim pareceria, aos meus olhos, Impenetrável! (...)
...As palavras, quem as terá amado tanto quanto ele?
São suas companheiras, e seu único apoio. Ele, que não se orgulha de nenhuma certeza, se sente bem seguro entre elas. Suas crises de desânimo coincidem, sem dúvida, com os momentos em que pára de acreditar nelas, em que julga que o traem, que o abandonam. Sem elas, fica desarmado, não está mais em nenhum lugar" (...)
Desde que conheço Beckett, quantas vezes não me perguntei (pergunta obsessiva e bastante estúpida, admito) sobre a relação que possa realmente ter com seus personagens. O que têm em comum? Pode-se imaginar disparidade mais radical? Devemos admitir que não apenas a existência deles, mas também a sua, está mergulhada naquela "luz de chumbo" que descreveu Malone morre ? Muitas de suas páginas me soam como um monólogo após o fim de algum período cósmico. Sensação de entrar num universo póstumo, em alguma geografia imaginada por um demónio, livre de tudo, até mesmo de sua maldição!
Seres que ignoram se ainda estão vivos, vítimas de uma fadiga imensa, de uma fadiga que não é deste mundo (para empregar uma linguagem que vai ao encontro das preferências de Beckett), todos concebidos por um homem que adivinhamos vulnerável e que, por pudor, usa a máscara da invulnerabilidade,-tive, não faz muito tempo, numa revelação súbita, a visão dos elos que os uniam a seu autor, a seu cúmplice...O que vi, o que sobreduto senti nesse momento não saberia traduzir numa fórmula inteligível. Isso não impede que, depois, a menor palavra de seus heróis me faça lembrar as inflexões de uma certa voz...Mas me apresso em acrescentar que uma revelação pode ser tão frágil e tão mentirosa quanto uma teoria.
E.M. Cioran,"Exercícios de Admiração", pág 64 a 70.