Um livro e algumas cerejas eram as condições para trocar uma tarde de estudo pela ida à Feira. “Estou pior que a mãe, eu sei”, acrescentou a J., como se o contrato fosse mesmo a sério e o papel de imperatriz lhe pudesse assentar como uma rima perfeita. Rimos as duas, cereja para mim, cereja para ela, a tarde ao encontro da feira.
Faço sempre uma lista. Com o que ficou da lista do ano passado. Com as leituras impossíveis do mesmo ano colhidas amigo aqui, blog lá, toque-na-contracapa-mas-tens-de-ficar aqui, fórum ali. Com as sempre-últimas-mas-primeiras sugestões da Ana. E com um lugar imenso, descampado, no final da folha onde cabem todos os livros.
Acabamos as cerejas já dentro da tenda, o Verão a querer dizer alguma coisa entre tanta palavra escrita. Talvez que só o sol saiba que “Quando uma abelha/se enamora,/ nasce uma flor.” (Albano Martins, Com as flores do Salgueiro).
Não encontrei tudo da lista. Pisei o descampado. Todas as manhãs do mundo, de Pascal Quignard continuam longe e a perseguir-me, sem regresso. Trouxe Vida Secreta, “Quando os amantes deixam os seus corpos nocturnos, um poisa num ramo ao longe, o outro apoia os cotovelos na janela./ O amor é a alma contra a alma.”, à procura de uma certa respiração. A minha.
Entre os livros possíveis para que se cumprisse o desmentido contrato, a J. referiu Poemas de Alberto Caeiro e o livro estava escolhido. O José Gomes Ferreira ainda foi uma alternativa à altura e assim continuará. A redondez das cerejas tem destas coisas. É tudo tão perfeito que se desfaz na boca. Quem é que se esqueceu do caroço?
No descampado, como o “Segredo” da contracapa, Minha Senhora de Mim, de Maria Teresa Horta e outra Maria, do Rosário Pedreira porque me faltava A Casa e o Cheiro dos Livros. O primeiro foi o último, “Dizem os ventos que as marés não dormem esta noite”.
A J. também escreve. Em tons de amarelo torrado porque todas as histórias de amor devem ter a importância das cores. Ou das cerejas, que são um fruto bonito, ainda que à J. só os morangos lhe façam não parar de os comer.
Entre uma série de livros para outras histórias da História, veio, como quem não quer histórias mas não faz outra coisa senão pedi-las, o Equador. A culpa é da Ana que há tempos não me deixou matar o David Crockett e me apresentou outro Miguel Sousa Tavares. A Ana gosta de me baralhar, ou não me teria aconselhado “os tártaros confundem as suas almas porque acreditam que não se podem conhecer”, Seis Falsas Novelas que começam com uma advertência anedótica do próprio Ramón Gómez de La Serna. A Ana sabe que preciso de me rir.
A J. puxa uma certa praia com muitos godos para cima dos outros livros. Eu vou lá e escondo-a. “Deve ser cá uma sensação ver um nosso livro na montra”, a J. também escreve e traz ainda nas mãos o sabor das cerejas.
A Leve Têmpera do Vento, de Carlos Oliveira, porque “Contar os grãos de areia destas dunas é o meu ofício actual”. Quase impossível escrever tão carregadas estão as sombras. Estremecessem todas as flores se te tocasse. Dos blogs, virando à esquerda de repente, Nuvens & Labirintos, de José Mário Silva. No sentido inverso, lado a lado, Eliot e Outras Observações, de Pedro Mexia.
“É aqui no Domingo?”, “Ah! Nem tinha visto...”. Parece que sim, as mesas estavam vazias e não consta que as cerejas façam parte do cardápio.
Por causa de Domingo, trouxe Um martini e o mar de João Pedro Costa e Contos Acrónicos de António Eça de Queiroz. Teatro, contos e poesia em estreia. Será que ainda faço “da maresia, a minha respiração”?
Hoje em dia, quase tudo termina com uma sms: “agora quando comer cerejas, lembrar-me-ei sempre de ti”. A J. tinha chegado a casa.