há momentos que resulta tão difícil chegarmos
a um sentimento João Miguel Fernandes Jorge
de inverno foi assim ela
pelo traço possível de modo a mover-nos menos
desde o meu ombro ao modo de comermos gelados uma tarde
em que a terra se aquietou sob a neve
o último cigarro uma t-shirt por recordação
e depois aquele lugar onde se podia ver o mar
tudo isto de outra maneira algumas vezes um sorriso
uma fotografia ou uma espécie de noite de chuva para que fosses assim
até sentir o coração bater dizendo-me
que será apenas como esta mesa a fazer lembrar um amigo um café
aquela parede branca no fundo do mar
e nem sequer é um gesto uma árvore caindo
lentamente
enquanto a erva ou o musgo
e se por acaso a rua me parecer um navio alguém
dirá que sou eu a imaginar ter-te no colo a fingir
o descanso como formigas debaixo das pedras
porque as primeiras chuvas ou a vista de uma ave rio-me
choro baixinho rio digo isto tudo
mas já nem sequer te odeio olho em redor e já não oiço ninguém
estou mais alto sigo o caminho que me traz do teu nome
pela mão desta criança longamente perdida no teu olhar
exposta ao frio ao primeiro momento do telejornal
neste pijama que já foi teu agora apenas
um modo de procurar água no fundo de um barco
aquele beijo o saber dos dias por este frasco de comprimidos
e esta janela quase toda por uma bicicleta azul
como num sonho para não me perder um a cada refeição
e o corpo treme despe-se na sombra para depois sentir a terra
cheira-me as pernas dizes é necessário uma certa idade e uma casa
volto o rosto e o mar move-se nos teus olhos. rio-me
Joaquim Cardoso Dias, O Preço das Casas, Gótica (2002)