domingo, junho 29, 2003
Andávamos já há algum tempo a aliciar a Zazie para participar na Janela. O contrato foi difícil de assinar mas chegamos todos a acordo (e não, não recorremos às tramas da Celestina eheheh).
Assim, senhores e senhoras, temos o prazer de anunciar em estreia absoluta, a coluna da Zazie, que se chama, como é óbvio:
Zazie dans le metro
JAVARDINHAS A FIAR
Muito recato e mãos ocupadas sempre foi receita aconselhada a mulher solteira ou casada. Evitava desocupações que só serviam para estimular manhas femininas e arranjar sarilhos a qualquer macho por mais filósofo que fosse e bem sabemos que nem Aristóteles ou Virgílio lhes escaparam...
Na Idade Média a mulher casta era representada pela imagem de uma jovem sentada a fiar com a roca e o fuso pois, como dizia o ditado: "a fiar e a tecer ganha a mulher de comer".
Casta fiação mas também “uma seca” como bem se queixava a coquete Isabel, da Farsa "Quem tem Farelos" do Gil Vicente:
"Faz a moça mui mal feita,
corcovada, contrafeita,
de feição de meio anel;
e faz muito mal carão,
e mal costume dolhar."
E a Inês Pereira que antes quer "asno que a carregue que cavalo que a derrube" também estava disposta a tudo para se ver livre dessas canseiras inúteis, renegando
“deste lavrar
E do primeiro que o usou;
Ó diabo que o eu dou,
Que tão mau é d'aturar.”
Como tudo tinha o seu oposto nas constantes psicomaquias medievas, a dedicação das fiadeiras também podia ser sinónimo de grandes "javardices" de rameira.
Um ditado da época lembrava este mundo às avessas: "quando a rameira fia, o letrado reza, e o escrivão pergunta quantos são do mês, mal vai a todos três"
(Francisco Roland (F.R.L.I.L.E.L.), Adágios e provérbios, rifãos e anexins da língua portuguesa... compilação de 1841)
A casta alterna com a porca e, para acentuar a troça, usava-se o bestiário satírico, mostrando-se uma javali atarefada na fiação doméstica como sinónimo de prostituição.
A "javali-fiadeira" aparece na marginália medieva sendo comum a sua representação em cadeirais de coro. Por cá existe uma, esculpida numa das misericórdias do cadeiral do Funchal, idêntica a outras como as de Kempen na Alemanha; Ciudad Rodrigo; Toledo ou da igreja de S. Nicolau em Amsterdão, bem como em gárgulas e gravuras da época.
A brincadeira escatológica tem vários paralelos na literatura da época. É referida na imortal tragicomédia La Celestina, escrita por Fernando Rojas, um judeu converso, editada pela primeira vez em 1499 em Burgos. A Celestina é a velha alcoviteira que trata de tecer as tramas dos amores dos jovens, num mundo cínico e cruel onde todos acabam vítimas das suas paixões. No acto III diz a velha alcahueta: "pocas vírgenes, a Dios gracias, has tú visto en esta ciudad que hayan abierto tienda a vender de quien yo no haya sido corredora de su primer hilado ". E mais adiante insiste-se na associação entre o fuso e o falo masculino: "con mal está el huso cuando la barba no anda de suso".(ver: Isabel MATEO GÓMEZ, Temas profanos en la escultura gótica espagñola. Las sillerias de coro, Madrid, Instituto Diego Velazquez, 1979)
Celestina vista por Picasso
As aparências iludem – a velha rameira Celestina ou a Brígida Vaz do Auto da Índia quando se lembram da roca e do fuso não é em trabalho casto que estão a pensar – "quero fiar e cantar/ segura de o nunca ver" suspirava a abandonada mulher do mercador embarcado desejando que ele não tornasse vivo a Lisboa.
Goya conhecia estas histórias todas não se vai esquecer das fiadeiras nas suas gravuras satíricas. No Álbum B que antecede os Caprichos assim representa as raparigas de má vida, tonsuradas e encerradas no reformatório, acrescentando a legenda irónica: San Fernando como hilan! Mais tarde vai representá-las a depenar os "frangos" que se deixam apanhar nas suas teias.
Goya, Album B (1796/97)
Estas javardinhas não deixaram de ser vistas com agrado num mundo goliardesco onde a virtude convivia descontraidamente com o pecado. Ao lado da javali gárgula de Plasencia vê-se um alegre campónio muito entusiasmado a tocar a gaita de foles.
Tocar gaita também era outra música e quem melhor a soprava ao desafio eram os porcos músicos, mas isso já é outra história ...