Nos últimos anos os Pardos mais notáveis na agremiação lusíada tinham-se reunido em sessão solene para deliberarem a formação de um grupo onomástico com o significativo e majestoso título de “Os Pardos de Portugal”. Ao apelo lançado nos jornais para a angariação de sócios, correspondeu uma verdadeira avalanche de inscrições – Pardos de todos os lados enviaram as suas incondicionais adesões em termos que não deixavam indiferentes os sócios fundadores. Arranjou-se uma sede com salas de jogos, de fumo, de leitura e outra onde o director e secretário dos Pardos recebiam as sugestões mais atraentes e construtivas dos Pardos de Portugal. Todos os sábados, à noite, o Pardo filho e o Pardo neto, iam à sede para usufruirem das regalias atribuídas aos sócios. Assistiam à leitura de textos selectos dos Pardos do passado, ouviam palestras dos Pardos mais importantes e no gabinete de leitura passavam os olhos pelas revistas e jornais que o Grupo assinava para regalia dos seus membros.
A decoração da sede tinha sido feita por um Pardo, pintor em voga, que decorava tudo de tons neutros para assim atrair os mais secundários ao criticar unânime.
Com grande solenidade, o Grupo festejou o primeiro aniversário da fundação dos Pardos de Portugal. Depois de uma romagem às campas dos Pardos mortos, em defesa do Grupo, realizou-se um almoço de confraternização. Para dar realce à solenidade, esperou-se um dia cinzento de chuva onde todos pudessem manifestar a sua tristeza – alguns estavam que nem gatos pingados.
O Pardo pai levou o filho ao almoço – era coisa dignificante tomar parte no banquete a que a imprensa dava tão largo realce. Ele, um dos Pardos fundadores, homem honesto e com filho, nas mesmas condições de pressão e temperatura, devia representar a Companhia das Águas em tão magnânima afirmação de amor pátrio. Ao fim do almoço, os vivas aos Pardos foram consecutivos – Pardos, Pardos, Pardos! Viva, Viva, Viva! - Pardos de Portugal Ip Ip Urra! Ip Ip Urra! Ip Ip Urra! E no auge do entusiasmo foram lidos telegramas dos Pardos da Província e dos pardos das colónias portuguesas e dos espalhados por todos os continentes. Eram mensagens elevadas dos sócios correspondentes. A certa altura o presidente dos Pardos de Portugal, com a bandeira cinzenta aos ombros, brindou pelas futuras prosperidades da colectividade. Fez um discurso de fino recorte literário que foi recebido por uivos de aprovação pela selecta e distinta assistência - o quilate da oração e o brilho espiritual das frases completamente inéditas do presidente da direcção dos Pardos lançou entre os assistentes uma demorada salva de palmas. Tributados mais alguns vivas aos Pardos e Hip Hip Hip Urras, a assistência de pé e com guarda-chuvas entoou o hino agremiativo:
“Pardos ilustres e distintos
Flores do espírito e do amor
Nós, Grandes e Unidos
Somos os Pardos de Portugal
Portugal, Portugal, Portugal.”
À noite, nos salões da rede, foi servida aos sócios e suas famílias uma ceia volante acompanhada por trechos de música afinadamente tocados pelo quinteto dos Pardos que tão gostosa e gratuitamente emprestava a sua colaboração.
A Parda neta ia-se desenvolvendo no íntimo do sargento da Amadora. A lengalenga do namoro dava os seus resultados num aumentar de volume físico. O pai Pardo, quando descobriu estas manifestações baixas do sargento, exigiu explicações aptas ao avanço prematuro do neto. Organizou-se o casamento e já de quatro meses ela deixou-se estafada ir ao altar. No entanto, a vizinhança, esperta e não cega de Sete Rios, observava atentamente o desenrolar pré-nupcial de ambos os sexos e começara a falar de permeio com a hortaliceira e o padeiro. Ao mesmo tempo resolveu-se que a Parda neta fosse então viver na companhia do marido para a casa do sogro viúvo, sito na Amadora e num dos locais mais aprazíveis dos arredores da grande urbe, capital do Império – a Lisboa cidade.
Pouco depois de estarem casados nasceu um pardozito sem que à vista desarmada se pudesse dizer qual o sexo fêmea ou macho a que pertencia. No entanto, para gláudio do pai e do avô, era um rapaz, pois trazia uma pequena diferenciação entre as pernas. Nessa altura a avó dos Pardos teve um chilique ou deu-lhe a trabuzana, como comentavam os vizinhos do rés-do-chão, e foi-se desta para melhor. Ao enterro compareceram vários Pardos, além dos familiares, e a direcção dos Pardos de Portugal enviou uma linda coroa de junquilhos com banda e fita onde dizeres sinceros exprimiam pêsames colectivos. Fazia parte da regalia atribuída à quota mensal de sócio o direito a uma coroa de flores por altura do terrível desenlace.
Depois da morte da mãe do Pardo Pai ele pôs contas à vida e decidiu-se mudar, com tarecos e tudo, de Sete Rios para a Amadora. Aí os três estavam perto da filha – as ligações de comboio eram muito boas e no Verão sempre era agradável a sensação de sair do túnel do Rossio para uma atmosfera mais suave e desafogada.
A Amadora é a terra ideal para sargentos e para escriturários de 2ª classe com direito a 75% de desconto para as viagens da esposa e filhos. Tem uma avenida principal que dá para a linha férrea donde se desfruta o maravilhoso panorama de vista para os comboios. “Ali, podia-se ver!”, como dizia o Pardo Pai em mensagem de exortação aos Pardos da Amadora. Após a sua chegada tentou logo, e mesmo sem estar ainda bem instalado, formar uma sucursal dos Pardos para defender os interesses regionais. Obtida a conveniente autorização das instâncias superiores, e tomando em conta os relevantes serviços em defesa do património nacional, foi decidido, com louvor, contribuir com uma comparticipação para o arranjo da sucursal nº1 dos Pardos de Portugal.
Claro que Pardo Pai começou a gozar de uma popularidade quase profissional. Os anos que ele dedicara ao seu grupo já não eram de amador. Ele tornara-se um autêntico carola. Até um campo de jogos tentou adquirir para dar liberdade aos pontapés e desabafos físicos dos Pardos mais atléticos. Na Companhia das Águas o Pardo ia sendo visto com mais consideração e até já se falava nele para o lugar de chefe dos contadores, pela vaga aberta por morte natural e caquética do seu antigo superior.
O filho, depois de vaguear sem promoção no escritório, tinha entrado para a C.P. e já era escriturário de 2.ª classe – na Amadora entabulou logo negociações e contactos com os desportistas mais locais e numa ânsia de se espalhar organizou o flagelo do hóquei em patins com todas as suas características e virtudes.
A filha – que desta vez não tinha caçado no defeso – já ia no 2.º filho em adiantado estado de composição.
A Mãe Parda, com mais uma diuturnidade, acompanhava este ingresso íngreme do marido – glória da terra que o viu nascer – nas altas esferas do domínio associativo.
A vida cinzenta dos Pardos ia-se assim concretizando numa simplicidade rotativa e estomacal. A vida corria bem, os comboios passavam às tabelas e a sucursal melhorava a olhos vistos. Nos baptizados da Igreja da freguesia, ultimamente, todos os meninos e meninas eram nomeados Pardos para que no futuro os pais e os filhos pudessem usufruir das imensas regalias que trazia o facto de se ser Pardo.
A certa altura, segundo o bom exemplo da sucursal n.º1 – a da Amadora como se lhe chamava vulgarmente – começavam a aparecer por todo o país nas sedes de concelho e até nas freguesias rurais, pequenas casas de estilo regional em semelhança às sucursais dos Pardos. Portugal cobria-se de um manto associativo de constatada benemerência – o desfraldar de mais uma bandeira dos pardos era motivo de orgulho e de enaltecimento patriótico por parte de todos os filhos da terra.
Pai Pardo um dia amanheceu ao contrário. Eram os primeiros pronúncios do caducar. Talvez melhor ainda, era a primeira vez que a vida se estirava ampla às portas da sua casa na Amadora. Todo o entusiasmo que dedicara aos Pardos seus correligionários esmorecia-se em declínio compreensivo e apático – a obra deixava realmente as suas sementes, mas o filho não era pessoa para se bater pelo progresso e ordem que tinha presidido à formação do grupo nos dias difíceis da consolidação clubista. Agora todos descansavam nos louros do passado sem qualquer gesto de alegria ou entusiasmo que os pudesse distinguir dos transeuntes visíveis à vista desarmada e alquebrados nos passeios públicos. Homens como Pardo Pai havia um de cem em cem anos: pai exemplar, filho estremoso, marido eterno, chefe honrado dos contadores nacionais, membro dedicado e com longa folha de serviços em prol da humanidade clubista. Enfim, todos os predicados que fazem um Pardo Pai homem de estirpe e de invulgar capacidade de sacrifício. No entanto, a tragédia da sua indecisão colorida não o deixava ultrapassar a linha férrea da Amadora. Tomando um capilé local, ou lendo os anúncos de agiotagem, o nosso Pardo não se comovia em grande escala, tudo para ele lhe era afim. Os horizontes da vida não se projectavam em cores puras – vivia nas mesclas que pouco ou muito lhe lembravam os tempos da farda de fiscal da Companhia das Águas, as brumas de Algés e as vistas de Sete Rios. Era uma vida morna e sem aquele tempero que dá às comidas normais um sabor de pitéu. Era uma vida vegetativa trazendo ainda um sabor a couve-galega disfarçada com molho branco.
E a sua família, arrumada no subúrbio da felicidade, não tinha já para ele a tonalidade marcada de uma organização inquieta de sentimento. Pardo Pai vivia da glória da sua obra clubista, incitando a ambição dos habitantes da Amadora quando pediam às entidades oficiais a instalação local de mais um fontanário público. No entanto, Pardo Pai não podia morrer – ele era de qualidade contínua – não se afirmava na mortalidade, mas sim dizia-se que vivia por cá no sempre – com ou sem família – defendendo o atacando o progresso – sorrindo ou contando histórias. E ainda nos últimos e eternos anos Pai Pardo na Amadora assistia à passagem dos comboios e, à noitinha, na filial n.º 1, respondia à correspondência mais urgente vinda da sede do seu clube — a única, verdadeira e benemérita instituição de indivíduos ligados pelo mesmo fim: – a amizade entre os indissolúveis Pardos de Portugal.
Hip Hip Urra! Hip Hip Urra! Hip Hip Urra!
Ruben A.
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E assim se conclui a história desta familia portuguesa.
Quem não gostava de Ruben A. era o Pardo Salazar, que afirmou a propósito de Caranguejo: “Quem escreve um livro do fim para o princípio e não numera as páginas não pode servir Portugal.”