quarta-feira, fevereiro 12, 2003
E aqui fica a saga da família dos Pardos (assim mesmo com caixa alta), uma família antiga mas que ainda sobrevive com a sua cor de “burro quando foge”
Esta história faz parte do livro Cores de Ruben A., editado pela Assírio & Alvim.
Para evitar encher a página toda vou dividir a história em duas partes e fazer uma espécie de novela (esta sim da vida real/real!)
Agradeço que, para redimir a janela deste “roubo” à Assírio e aos herdeiros de Ruben A., procurem os livros dele, comprem e leiam – só faz bem.
Pardos
Os Pardos viviam fora da cidade. A família de avó, pais e dois filhos não se preocupava muito com a vida nos grandes meios – levavam-se no existir pela periferia. Várias vezes já os Pardos tinham mudado de arredores: de Algés ultrapassaram-se para Sete Rios e mais tarde para a Amadora. Formavam meio-alegres um semicírculo que ia de ponta a ponta do Tejo deixando a capital englobada pelo seu aspecto dromedário.
A avó dos Pardos permanecia no estado de viúva desde a primeira guerra mundial. Não que o marido se tivesse uniformizado para ir a campanhas da França ou de terras escuras de Angola, mas sim por ter caído de cama com a bicha da pneumónica a roer-lhe os bofes. Tinha sido uma morte de segunda classe num dia cinzento e sem futuro. O marido nem sequer era sargento. Nesse dia o céu mesclara-se sujo desde a manhã e, quando o esquife saiu para o Alto de São João, todos de preto se puseram em andamento. Estava um céu a ameaçar chuva de trovoada – coisa sufocante para quem ia no caixão.
Nesse ano a avó Parda, com o filho e a nora, mudou-se de Algés para Sete Rios. Os pequenos precisavam de ar do campo, não fosse já o excesso da praia, ali mesmo à beira-mar, fazer-lhes mal.
A casa alugada em Sete Rios era um terceiro andar com vista para o comboio e lá ao longe para as traseiras de outras capoeiras humanas. Era uma casa normal sem qualquer outra qualidade a não ser a renda, que era mesmo em conta. Não havia dúvida: os Pardos tinham tido sorte com a casa, compunha-se de todas as serventias e até de um semicúpio de lata que o senhorio incluía no aluguer. Aí podiam tomar, de vez em quando, um banho morno para não se constiparem.
O Pardo filho trabalhava na Companhia das Águas e era fiscal dos contadores – tinha uma farda cinzenta para as suas inspecções mais importantes nos bairros elegantes. Fiscalizava às tardes e pelas manhãs via qual o movimento geral de trabalhos. Quando tomava qualquer líquido era sabido que bebia um café com leite, pois só leite caía-lhe mal no estômago e só café pesava-lhe na cabeça. Assim, equilibrava a mistura. A mãe de Pardo ficava em casa e a mulher de Pardo era professora de instrução primária. Não se pode dizer que nadassem em dinheiro, mas também seria injusto dizer que viviam com dificuldades e pregavam o cão ao merceeiro ou ao padeiro. O Pardo satisfazia modestamente as suas contas.
Ao jantar não comiam carne nem peixe. A avó costumava fazer o caldo e depois batatas com um pouco de chourição ou uns burriés da época, ou mesmo, um coelho da gaiola da varanda. Não passavam fome, mas também não se refastelavam em arrotos. Vinho, havia sempre: era do carvoeiro e parecia pólvora disparada do cartaxo.
Os Pardos tinham um rapaz e uma rapariga. A rapariga andava a aprender costura em casa da mulher do chefe da Companhia das Águas, que tinha um atelier de modista ao pé do Campo pequeno; o rapaz andava de paquete num escritório da Baixa e já o patrão lhe prometera subir para escriturário.
A tragédia dos Pardos era serem Pardos. Não se livravam da cor que tinham nem podiam definir-se num sim ou sopas. Aquele terceiro andar com vista para o comboio deixava-os pendurados entre o segundo e o quarto, sempre numa espera de melhorarem a situação: o Pardo podia ainda ser chefe dos inspectores, a Parda podia ainda ter mais duas diuturnidades, o Pardo neto podia ainda subir à vontade e a Parda neta podia um dia ser modista. A avó, coitada, é que só podia descer – estava a mirrar, a ficar sem cor e a rabugentar-se um pouco de vez em quando.
Em frente à modista onde trabalhava a Parda neta, havia um quartel de tropa, com oficiais, sargentos e soldados. Um dia um sargento cinzento começou a reparar na cor parda da rapariga e ao fim de várias tentativas, depois do toque da ordem, começou a travar conversa à janela.
O sargento morava na Amadora e tinha lá o pai com quem vivia desde a morte da mãe. Ia todos os dias de comboio e voltava todos os dias de comboio – era uma vida sem mais nem menos e que estava mesmo bem para encaixar com a vida dos Pardos. Nenhum deles tinha muitas preocupações e nenhum deles se atirava ao mar sem motivo justificado.
O Pardo quando chegava a casa, depois de um dia de visitas de inspecção aos contadores, vestia o casaco de pijama e aliviava os joanetes com duas pantufas bem forradas. Ia até á janela e de palito na boca assistia ao passar das carroças para o mercado da Ribeira. Gostava de estar ali na varanda, à pesca, gozando a passagem inferior do movimento. Quando algum comboio apitava, ele dirigia-se para as traseiras e ia ver quem passava; geralmente ficava aborrecido quando eram longas bichas de vagões de mercadorias, cheios de feijão ou gasolina. Nunca estava o Pardo muito bem disposto, mas também se pode dizer que nunca estava mal disposto – o que tinha chegava-lhe, mas ainda era pouco para mudar em direcção a um primeiro andar em sítio mais acolhedor, como, por exemplo, perto da Avenida Almirante Reis.
Os Pardos eram muito unidos e nunca se manifestavam em estridência com açafates de luxo. Viviam-se em Sete Rios com um pouco de vinho fino por alturas do Natal. Os Pardos tinham a cor de burro quando foge e nunca iam de mal a pior nem ganhavam o céu com as suas orações – viviam num purgatório doméstico que os deixava indiferentes perante a religião. A Igreja servia-lhes numa verdade para baptizados, casamentos e enterros e também para tirar o chapéu quando se passavam em frente à porta do Santíssimo.
A história dos Pardos não tinha romance nem poeira – era uma história que sabia a papel de música. Cada vez que os Pardos mastigavam a vida nada lhes trazia de notável, apenas se rareava de indigestões. Com grande custo, mas pagando pontualmente a sua quota mensal, o Pardo filho e o Pardo neto pertendiam à nobre e desvelada instituição chamada os Pardos de Portugal.