Rui Chafes é escultor, mas não só. É um prazer coleccionar as suas palavras, desde os nomes que dá às peças que cria, a tudo aquilo que diz. No princípio do mês, o Mil |Folhas entrevistou-o a propósito da participação na Bienal de São Paulo , que arrancou ontem. Fiz alguns sublinhados, mas vale a pena ler tudo, tudo.
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Eu queria que a Vera não fosse uma pessoa, mas sim uma parte da escultura. Na altura escrevi-lhe: "Quero desenhar o teu corpo como uma folha de papel e desmaterializá-lo."
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Teria de ser algo contrário a uma prisão, a um objecto de tortura, o contrário de uma ferramenta. Teria de ser algo que tivesse que ver com a leveza. Tornou-se, então, evidente que eu não queria ver a Vera no chão. O trabalho da maior parte das dançarinas parte de uma relação com o solo, em que muitas vezes o voo ou a fugacidade do ponto é a sua linguagem. A Vera apareceu-me como um personagem que não podia tocar o chão e, imediatamente, propus-lhe que estivesse no ar, pendurada, não no sentido de suspensa, mas como se tivesse realmente a voar. Quis desenvolver uma ideia relacionada com as gravuras do séc. XIX de Odilon Redon: um céu sépia e um balão a voar, o balão como um olho divino que se eleva sobre o mundo.
... a escultura é uma encenação estática da morte, ao passo que a dança é uma luta contra a morte. No meu caso, as esculturas são uma luta contra a morte no sentido de serem uma luta contra a gravidade, o peso. Por isso é que muitas vezes não tocam no solo, ou, se o tocam, fazem-no de um modo fugaz, suspenso, elástico. A dança é uma luta contra a morte no sentido em que é um grito, mudo ou não, de um corpo que tenta elevar-se e movimentar-se, contrariando a horizontalidade, a gravidade, o peso e a imobilidade
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Eu nunca penso na beleza. Penso em termos de equilíbrio, de falhanço, de fracasso. A beleza só faz sentido no momento em que chega a alguém, em si própria não faz sentido, é estéril.
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Gosto de olhar o meu trabalho como se fosse uma espécie de sombra, como aquelas silhuetas negras que os românticos alemães faziam uns dos outros.
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Convém é não escrever deus com letra maiúscula e convém esclarecer mal-entendidos. Penso que na altura houve pessoas que entenderam que eu sou um cristão com uma grande fé e que ouço uma voz divina que me diz para fazer as coisas. A ideia não é, de todo, essa. Pelo contrário, a minha única religião, o meu único centro e a minha única razão de viver e de transcender é a arte.
- E a arte chega para nos salvar?
Acho que nada chega para nos salvar. Se só a arte chegasse, era fácil.