quinta-feira, agosto 26, 2004 A noite da verdade
«Combat», 25.8.44
Assobiam ainda na cidade as balas da liberdade e já os canhões da libertação franqueiam as portas de Paris, por entre gritos e flores. Na mais bela e quente de todas as noites de Agosto, o céu de Paris junta às estrelas de sempre as balas errantes, o fumo dos incêndios e os foguetes multicolores da alegria popular. Perfazem-se nesta noite sem igual, quatro anos de uma história monstruosa e de um combate indizível, em que a França se debateu entre a vergonha e a raiva.
Os que nunca desesperaram de si próprios nem do seu país têm agora, diante dos olhos, a recompensa. Esta noite vale um mundo, é a noite da verdade. Uma verdade em armas e em combate, uma verdade em força, depois de ter sido, durante tanto tempo, uma verdade de mãos vazias e peito descoberto. Encontramo-la em toda a parte, nesta noite em que o povo e o canhão rugem em uníssono. Ela é a voz desse mesmo povo e desse canhão, tem o rosto triunfante e fatigado dos combatentes da rua, cobertos de suor e cicatrizes.
Faz quatro anos que homens se ergueram do meio dos escombros e do desespero e serenos afirmaram que nem tudo estava perdido. Diziam que era preciso continuar e que mediante um preço, as forças do bem podiam triunfar sobre as forças do mal. Preço esse que eles pagaram. Preço caro, com todo o peso do sangue, todo o peso horrível das prisões. Muitos desses homens morreram, outros há que vivem há anos entre cegas paredes. Era esse o preço a pagar. Mas mesmo esses homens, se o pudessem, não nos censurariam esta terrível e maravilhosa alegria que nos invade como uma maré.
Porque a nossa alegria não os atraiçoa. Pelo contrário, justifica-os e afirma que eles tinham razão. Unidos no mesmo sofrimento durante quatro anos, unidos estamos agora na mesma embriaguez, ganhámos a nossa solidariedade. E com espanto reconhecemos, nesta noite alucinante, que nunca, no decorrer destes quatro anos, estivemos sós. Que vivemos os anos da fraternidade.
Duros combates nos esperam ainda. Mas a paz voltará a esta terra esventrada, a todos estes corações torturados de esperanças e de recordações. Não se pode viver sempre de crime e de violência. A felicidade, a ternura mais que justa, a seu tempo virão. Mas a paz não nos tornará esquecidos. E, para muitos de nós, o rosto dos nossos irmãos desfigurados pelas balas, a enorme fraternidade viril e todos estes anos, jamais nos deixarão. Que os nossos camaradas mortos guardem para si a paz que nos é prometida nesta noite ofegante, paz que eles já conquistaram. O nosso combate será o deles.
Aos homens nada é oferecido de graça e o pouco que logram conquistar pagam-no com mortes injustas. Mas não reside aí a grandeza do homem. Reside sim, na decisão de ser mais forte que a sua própria condição. E se essa condição é injusta, há uma única forma de a ultrapassar, que é o ser ele próprio justo. A nossa verdade desta noite, a verdade que plana neste céu de Agosto, traz justamente uma consolação ao homem. E é com o coração em paz que podemos, nós e os nossos camaradas mortos, dizer, face à vitória alcançada, sem qualquer espírito de retaliação ou reivindicação: «Fizemos o que tínhamos a fazer.»
Albert Camus Tradução de Luiza Neto Jorge e Manuel João Gomes
Actualidades, Contexto Editora, 1ª edição: Abril de 2001 - pp. 19-22.