O tempo dual fez um ano. O nosso presente é uma fala da criada Zerlina. Esta pequena narrativa foi escrita por Hermann Broch, o poeta relutante e faz parte de "Os Inocentes". Hannah Arendt diz que talvez seja a mais bela história de amor da literatura alemã*. Eu não duvido.
- O Homem não vale nada, e a sua memória está cheia de buracos que ele nunca poderá passajar. É preciso, no entanto, fazer muitas coisas que nunca esquecemos. Cada um de nós esquece o seu quotidiano. Comigo, eram todos os móveis a que limpei o pó dia após dia, e a muita loiça que havia para lavar. E como cada qual me sentei para comer a minha refeição, mas como cada qual também era um simples saber de que não há que lembrar, como se não houvesse clima, nem o bom nem o mau tempo. Mesmo o prazer que gozei tornou-se para mim um espaço sem clima, e embora me tenha ficado o reconhecimento pela vida, foram-se apagando os nomes e os traços dos rostos que em tempos significaram prazer e mesmo amor. Desapareceram na transparência de um reconhecimento que já não tem conteúdo. Copos vazios, copos vazios. E no entanto, se não houvesse este vazio, se não houvesse este aquecimento, o inesquecível não poderia desenvolver-se. O esquecimento transporta o inesquecível nas suas mãos vazias, e nós somos transportados pelo inesquecível. Nós alimentamos o tempo, alimentamos a morte com tudo o que foi esquecido. Mas o inesquecível é um presente, é um presente que a morte nos dá, e no momento em que nós o recebemos estamos ainda neste momento aqui, onde nos encontramos, mas ao mesmo tempo estamos já além, lá onde o mundo se precipita na escuridão. O inesquecível é um pedaço do futuro, um pedaço do intemporal com que fomos presenteados antecipadamente, que nos transporta e suaviza a nossa queda nas trevas como se fosse um deslizar. O que se passou entre o Sr. de Juna e eu era um presente de morte, um presente escuro, suave e intemporal; e ajudar-me-á um dia a transportar-me, suavemente levada pela plenitude das minhas recordações. Todos dirão que foi o amor, o amor, até à morte. Mas não, não tem nada a ver com o amor, e ainda menos com o chorrilho sentimental. Muitas coisas se podem tornar no inesquecível, nos podem transportar acompanhando-nos, nos podem acompanhar transportando-nos sem que nunca tenham sido o amor, e sem que nunca se pudessem tornar no amor. O inesquecível é um momento de maturidade, produto de outros infinitos momentos, de infinitas semelhanças que o precederam, infinitamente numerosas, que os transportaram. É o momento em que sentimos que formando somos formados, fomos formados, que existimos. É perigoso confundir isso com o amor.
E foi deste modo que A. entendeu, e também não é de excluir que Zerlina tenha falado assim. Muitas vezes aos velhos acontece falarem num salmodiar por enigmas, e num tal salmodiar é fácil imaginar fantasias, em particular se acontecer numa tarde quente de Verão com as persianas fechadas.