"A vida está cheia de homens a fazerem grandes gestos e a estatelarem-se no chão" disse uma vez Paula Rego, no seu desdém pela jactância do macho. A Carmen de Bizet parece uma ópera à medida do seu gosto pela encenação da competitividade amorosa, em torno de uma cigana tragicamente livre e infiel.
A ópera desenrola esse jogo de sedução à semelhança de um tourada que se transforma num combate mortal entre a bestialidade animalesca e aquele que a pretende dominar.
Na Carmen as mulheres fazem o papel de harpias que pelo canto e pela dança arrastam os homens fazendo-os quebrar promessas e todo o tipo de compromissos.
Georges Bizet compôs esta ópera realista entre 1873 e 74, provocando escândalo pelo realismo e o que não abalou o espírito dramático e expressionista do compositor, várias vezes acusado de "wagniarismo" e excesso de vanguardismo. A tudo isso respondia: "músicos, fazei-me rir ou chorar, exaltai-me o amor, o ódio, o fanatismo, o delito; prendei-me, abatei-me, raptai-me, e eu não me permitirei a injúria de vos classificar e catalogar como coleópteros". A ópera baseia-se na novela de Mérimée publicada em 1845, no seguimento de viagem a Espanha, onde teve conhecimento da história dos amores trágicos de um soldado por uma rapariga cigana de nome Carmen.
Apesar dos contratempos aquando da estreia e da morte súbita de Bizet três meses depois da sua estreia, a profecia de Tchaikovski concretizou-se: como ele disse, em dez anos a Carmen seria a ópera mais popular do mundo.
Nesta tela a composição em bandas é semelhante a La Bhòeme mas a sua latinidade revela-se nas cores fortes e contrastadas onde o negro e o vermelho prevalecem. O traço predomina igualmente sobre a pintura tornando-se mais denso na delimitação das figuras sobre campos de cor lisos e vastos.
D. José de Lizarrabengoa, basco e cristão velho, abandona a noiva que a mãe lhe destinara, a singela Micaela, camponesa de Navarra, por amor de uma cigana. A vadia e esquiva Carmen faz com ele deserte e cometa um crime partindo para as montanhas com um contrabandistas por feitiço de um amor que lhe traçou o destino.
No canto superior esquerdo da tela, tal como na Bhòeme vemos o relato em ante câmara e a expectativas acerca destes amores transviados.
De mãos dadas, o toureiro Escamillo e Carmen, escutam as palavras de um sábio mono de chapéu catedrático na cabeça, que pacientemente cruza as mãos e "bota" discurso. Por cima esvoaça o mesmo passaroco coscuvilheiro que também aparece na outra tela e que vai saltitando de quadro para quadro escutando os comentários dos personagens. No lado oposto entra em cena um cão de ar apalhaçado, com chapelinho na cabeça e mais abaixo vemos uma menina muito parecida com a própria artista, agarrada a um mastim, a acompanhar o relato e o desenrolar do que se passa na "praça".
Sur la place
Chacun passe
Chacun vient, chacun va ;
Drôles de gens, que ces gens-là!
Drôles de gens !
Drôles de gens !
A velha sevilhana, que lembra um dos fantasmas da pintora- D. Violeta, a professora que lhe aterrorizou a infância, agarra Carmen por um braço e repreende-a energicamente.
Mais abaixo Carmen, bem segura do seu charme, placidamente deitada, desafia D. José, aqui transformado em insecto que se consome de desejo. O pobre inseguro, de crucifixo a balançar ao pescoço, também parece hesitar entre a paixão e o dever e Carmen, transfigurada em cachorra, apoia-se no cotovelo aguardando com desdém.
l'amour est en enfant de bohème
Il n'a jamais jamais connu de loi,
Si tu ne m'aimes pas, je t'aime ;
Si je t'aime prends garde à toi!
As cigarreiras dançam lubricamente por entre as cenas. Uma está metamorfoseada em vaca e participa do ritual de sangue.
No sub mundo da banda/túnel inferior assiste-se a um duelo entre os rivais pretendentes da cigana; enquanto uma pequena Carmencita tenta separá-los.
mettez-vous en garde et veillez sur vous tant pis pour qui tarde à parer les coups
Por cima, no quadrinho narrativo, Escamillo reza de joelhos, preparando-se para a toureada, enquanto uma outra Carmen (mais uma vez idêntica a Paula Rego), tocando castanholas e tentando os amantes; ligeira e perversa na sua Habanera.
Tra la la la la la la la
Mon secret je le garde
Et je le garde bien ;
Tra la la la la la la la
J'en aime un autre et meurs
En disant que je l'aime.
Na marginalia inferior os contrabandistas fazem de coro em variações a negro, como sombras chinesas.
Dois gatos voyeurs espreitam às escondidas. Um faz lembra o Gato Félix.
Nos entre actos parodia-se o drama por meio de remakes de outras histórias e pinturas da autora.
As séries do macaco que batia na mulher voltam a aparecer, mas aqui, a mulher, em vez do rabo, corta o sexo do macaco. O macaco castrado queixa-se a outro, enquanto numa banda à parte outra mulher lhe tira o chapeuzinho de cátedra (ou de circo?).
A cena repete-se com uma coelha de facalhão em punho que se lança sobre um macaco e lhe agarra o sexo. As figuras precipitam-se num desmanchar caótico e humorístico, caindo umas sobre as outras. Um galináceo afocinha aos pés de um bicharoco que cruelmente se diverte a pontapeá-la.
No centro da composição, alheadas das outras figuras, destaca-se os amantes que se digladiam até à morte.
D. José, metamorfoseado em macaco, transtornado pelo ciúme agride Carmen, mas é ela que empunha o punhal...
O macaco capado, careca e nu, esconde a vergonha, pobre castratus de voz de falsete e retira-se cabisbaixo enfiando-se na banda lateral vermelha. Carmen e o José vão-se continuam o duelo, e vão-se desvanecendo na tela, ele apontando-lhe uma navalha às costas e ela revirando-se para trás, em recusa a render-se.
Ainsi, le salut de mon âme, je l'aurai
Perdu pour que toi,
Pour que tu t'en ailles,
Infâme! Entre ses bras,
Rire de moi.
Non, par le sang,
Tu n'iras pas.
Carmen, c'est moi
que tu suivras ! Non, non ! jamais ! Je suis las de te menacer. Eh bien! frappe moi
Donc ou laisse moi passer. Pour la dernière foi,
Démon, veux tu me suivre ? Non! Non !
Cette bague autrefois toi tu
Me l'avais donnée.
Tiens. En bien damnée...