Já conhecia o seu belo rosto e os cabelos revoltos, já o tinha ouvido tocar. Conhecia a fama. Mas a primeira vez que o encontrei a sério foi n’ O Naúfrago, de Thomas Bernhard (edição da Relógio d’Água). Foi aí que conheci Glenn Gould. Uma personagem difícil. Lembro-me de um episódio que não tem nada a ver com a música mas é essencial para comprender a sua obstinação. Um dia ele apercebe-se que na casa que acabara de alugar há uma árvore, do lado de fora da janela, junto ao piano, que o irrita, que o desconcentra, e resolve cortar a árvore. Pega, talvez num machado, não me recordo mas deve ter sido um machado e abate a árvore, como se fosse um lenhador, com as mesmas mãos com que toca o piano. E desfaz a árvore em pedaços de lenha. No fim, um dos amigos repara que tudo isso era escusado, bastava ter fechado as cortinas e a árvore teria desaparecido e ele poderia tocar em paz.
Bernhard mostra-nos um Glenn Gould extraordinário. Não um pianista, não um intérprete mas um obsessivo, uma extensão do piano. O seu sonho seria fundir-se, desaparecer dentro das cordas. E foi isso que ele fez toda a vida.
Ontem voltei a Glenn Gould, às suas Variações de Goldberg. O disco (aliás, são três discos) chama-se “A State of Wonder” (The purpose of art is not the release of a momentary ejection of adrenaline but rather the gradual lifelong construction of a state of wonder and serenity, Glenn Gould) e reune as interpretações gravadas em 1955; em 1981; uma entrevista com Tim Paige gravada em 1982 em que Glenn Gould fala de cada uma das interpretações e as compara; e ainda alguns “outtakes” gravados em 55.
É uma edição preciosa. Pouco posso dizer sobre a música porque ou seria errado ou banal. Sei que prefiro as interpretações de 1981, mais lentas (uma diferença de quase treze minutos) mas não sei porquê. Devem ser ouvidas com auscultadores pois, por trás do som do piano, ouve-se o músico a cantarolar. Espanto-me porque volto a encontar a personagem de Bernhard. Afinal é este o verdadeiro Glenn Gould, sempre foi.
Não desistiremos de explorar
E o fim de toda a nossa exploração
Será chegarmos ao lugar de onde partimos
E conhecer o lugar pela primeira vez.
T. S. Eliot, Little Gidding “Quatro Quartetos”, tradução de Gualter Cunha, edição da Relógio d’Água