Fui tomar café muito rapidamente a meio da tarde. Pequeno café tinha televisor ligado num canal português. Fiquei agarrada assim que olhei. Era um programa de entretenimento, daqueles que passam a meio da tarde, e uma mulher cantava. Cantava coisa nenhuma. Havia uma melodiazeca e um acompanhamento frouxo, aquele tipo de som que não é nada e que por isso espanta, irrita, assusta e é incompreensível, e a voz dela também não era nada, nem estridente, nem grave, era um som de garganta atrás de algo vagamente melódico que, como eu já disse, embora na forma aparentasse ser música, também não era. Havia palavras mas não diziam nada.
Mas pior foi a seguir eu perceber que havia um público e julgo que dois apresentadores. Estas pessoas, enquanto a mulher cantava coisa nenhuma, batiam palmas. Batiam palmas a um ritmo muito, muito lento. Como o das leituras rítmicas na primeira semana de aulas. Estas palmas eram perfeitamente uniformes. As pessoas estavam sentadas perfeitamente quietas. Mexiam os braços para bater palmas. Pulsos imóveis. Todas iguais. A mulher não cantava coisa nenhuma.
Eu já não vejo televisão há muito tempo mas o meu parâmetro de horror era o da programação entre as 19 e as 22 ou 23 horas. A meio da tarde não sabia que era isto. Isto que eu vi nem era pimba, nem era horrível, nem era a adaptação televisiva de um romance de ficção científica, era o que eu imaginava depois disso no futuro, mas hoje, foi hoje, e era só vazio. Vazio verdadeiro.
Começou antes do tempo dos piores livros. Por isso coloquei e tirei aspas, fiz e desfiz os itálicos na frase de Walter Tevis e acabei por deixá-la assim, por me parecerem mais necessárias as aspas e os itálicos no livro, mais irreal e mais longínquo que este dia.
Alguém me diga, por favor, que isto que eu vi foi uma partida de 1 de Abril.
Eu não compreendo isto, muito honestamente. Que seja possível não sentir algum pânico com estas coisas. E que se deixem continuar, que sejam consideradas normais, que se possa acreditar que daqui vem bem estar para quem quer que seja. Não é o direito ao mau gosto, é o vazio, e o vazio é vazio, isto é, coisa nenhuma, a desumanização total.
Um dia destes eu deixo de pagar impostos. Pena é não haver prisão e eu não poder depois dizer, como David Thoreau dizia sobre a escravatura, que num Estado que permite a desumanização o único lugar decente para pessoas com consciência é a prisão.