Não me lembro de todos os pormenores mas calculo que, como era hábito, a minha mãe levou-me à escola de carro e seguiu para o emprego em Vila Nova de Gaia. O imprevisto começou depois; naquele dia não houve aulas, nem ninguém trabalhou. A avó trouxe-me para casa pela mão, dois ou três quarteirões separados por uma avenida. A mãe voltou a atravessar a ponte; viu militares na Serra do Pilar; recolheu o meu irmão; e foi ao supermercado comprar bolachas, latas de atum e coisas desse género. Em casa só havia crianças e mulheres, o meu pai nessa altura trabalhava longe, no alentejo ou no algarve. Suponho que elas tentavam esconder a aflição mas mesmo assim lembro-me de ver a minha mãe a chorar. Não sabiam o que se passava e temiam o pior, percebi mais tarde. A televisão e o rádio estiveram sempre ligados. Creio que passei o dia todo a brincar com o meu irmão. Não me recordo de mais nada. De certeza que nessa noite dormi com a minha mãe, em segurança.
Não tenho nenhuma fotografia dessa data. As duas que guardo com maior carinho são posteriores. Numa, o meu pai estende a mão com o “v” e tem um sorriso rasgado na cara. A outra foi tirada em 1975, tem a data escrita atrás: 18 de Julho, o verão mais quente da nossa história. Havia um grande comício nas Antas, perto de casa, e um fotógrafo apanhou-nos na rua, a mim e à minha mãe, de imprevisto. Quando tenho dúvidas volto sempre a ela, pela alegria, apenas isso, não há nem poderia haver nessa altura qualquer consciência política em mim, não há autocolantes ou outros símbolos, apenas o riso. Mais tarde compreendi que, para além de tudo o mais, a revolução significa para mim este riso. O 25 de Abril de 1974 foi uma das datas mais importantes da minha vida.