O olhar que contempla; o olhar cativo; o olhar que fulmina; são variadíssimas as formas de olhar que podem ser lidas como uma longa história da projecção de ideias e ideais. Podíamos chamar-lhe visões, assim, à laia de leitmotiv, pequenos exemplos de visões ou utopias.
Comecemos pelo olhar medieval. Ligando a mente ao mundo e à imaginação, tudo podia depender do que os olhos viam.
diagrama do cérebro, segundo Avicena, c.1300, iluminura, University Library, Cambridge.
Seguindo os esquemas de Avicena, os tratados de óptica escolásticos acentuavam o poder do olhar na formação dos conceitos no cérebro. Os olhos são primeiro passo para receber as espécies que vão atravessar os vários graus de conhecimento. No interior do cérebro, as bossas ou células que guardam estes sentido internos, distribuem-nos hierarquicamente, à semelhança da teoria platónica. Em primeiro lugar forma-se o senso comum, que apenas apreende as aparências; depois vem a célula da imaginação formal que retém estas formas; por acima a estimativa que as julga. Atrás, ligada com a imaginação, encontra-se a célula cogitativa que compõe e combina imagens relacionadas com o fantástico. No topo do cérebro temos a célula da memória— a vis memorativa com a sua pequena válvula— o cerebelo— que permitia que as imagens voem para o exterior provocando todo o tipo de visões.
O esquema da visão medieval é também um derivado da teoria dos simulacros de Lucrécio. Segundo esta conjectura atomista, todas os objectos desprendiam, por emanação, duplos materiais, semelhantes a películas ou cascas. Estes simulacros (imagens matrizes) vagueavam no ar e, ao chocar com os nossos olhos, entravam no cérebro impregnando-o de marcas de figuras. As imagens dos sonhos eram explicadas de forma idêntica, como produtos dos simulacros que excitavam a mente e a faziam fantasiar. O corpo adormecia, a memória também e o espírito podia livremente acreditar no sonho. Noutros casos os simulacros tinham características diabólicas e aterrorizavam-no com pesadelos. A própria noção de mau-olhado provinha da ideia epicurista da liquefacção dos eidola de Epicuro que Leonardo da Vinci irá retomar para explicar a forma como a perspectiva "lança" imagens no espaço.
O olhar também pode ser o monstro da mente. Quando era um olhar excessivo que queria ver o que atemoriza facilmente se deixava seduzir pela desproporção excêntrica que provoca enganos e alucinações. A própria palavra monstro deriva de monstrare, é um prodígio, um excesso de olhar que se mostra; uma desordem que procede da loucura humana. Relaciona-se com a máscara, com o que fascina e com o sonho. Como bem referiu Max Müller, no alucinado há uma falsa percepção do que se vê e do que se diz. Os fantasmas perturbam a percepção, criando doenças no interior da linguagem.
Na Idade Média estes "fantasmas" também podiam germinar fisicamente no interior do corpo. Os demónios e possessões penetravam "realmente" pelos orifícios do corpo- pelo olhar. Como já vinha referido na Bíblia-Epístola aos Coríntios (II, Coríntios XI, 10) “as mulheres deviam usar um véu na cabeça por causa dos anjos incubos- os demónios que as engravidavam, dando origem a nascimentos monstruosos. Hipócrates já havia explicado a possibilidade de nascimentos de seres monstruosos em virtude da mulher grávida ter olhado para uma gravura ou imagem estranha.
O olhar era tentado de muitos outros modos; alguns deles buscavam o fim último- colocar o homem frente a frente com Deus. O bem supremo também se ligava com o deleito do espírito e a emoção do crente tinha uma natureza estética. Um pouco mais de olhar tanto podia gerar a visão mística como, por deleite físico demasiado terreno, dar origem ao pecado. Dividido entre o paganismo demasiado visível da tradição greco-latina e um deus demasiado invisível da religião judaica, o Cristianismo vai tentar ultrapassar esta dicotomia.
A história do Cristianismo inicia-se a partir de um anátema ao visível acabando, paradoxalmente, por se tornar a maior "fábrica" de imagens.
A imagem reporta-se a uma relação. Figurar consistia também em transportar o sentido daquilo que se queria significar para uma outra figura, implicava uma exegese do verbo feito imagem. Este problema já foi visto como uma dicotomia entre um reinterpretação do ícone pagão e o ídolo, seu oposto. A teologia admitirá a imagem que se apresente como um ícone, ou seja, aquela que transmite as verdades da fé, desde que seja feita a distinção entre o nível da fé e o imagético. Mas vai rejeitar toda a imagem que seja ídolo, no sentido do que existe de prodigioso em toda a imagem. O ícone reporta-se ao que é milagroso, enquanto que o ídolo se reporta ao que é maravilhoso; o ídolo figura, o ícone transfigura. A virtude da imagem está na sua capacidade de invocar o milagre de Cristo, fundando-se na marca do sacrifício; no contacto com a marca de sangue do sofrimento de Cristo.
A teologia na marca:São Bernardo aos pés do crucifixo, manuscripto do séc. XIV, Sshnutgen Museum, Colónia (Rheinisches Bildarchiv).
O episódio da Verónica (ainda que apócrifo) pode ser visto como a récita originária de todo o ícone cristão que se vai concretizar numa infinidade de objectos de culto e imagens miraculosas. Fala do rosto de Cristo marcado como cliché sobro o véu que uma jovem virgem apiedada lhe ofereceu no caminho para a cruz. É a récita da imagem primordial.
Livro de Horas, South Holland; c. 1480-1500
A Verónica representa um vestígio da desfiguração de um deus e da sua redenção. A grande demanda da arte cristã consistirá em seguir-lhe os traços. Por isso, com a Idade Média a figuração divide-se entre uma mimesis diabólica e uma imitatio Christi penitencial: o fascínio provocado pelo ídolo e a contemplação derivada do ícone.
O idólatra deixa-se possuir por uma fantasia fetichista, investindo uma espécie de desejo físico na imagem. Tal como no mito de Pigmaleão, desafia a criação divina e acaba por ficar preso da falsa criatura que adula.
A Idolatria é filha de Satanás. A sua função destina-se a converter a gente livre em escravos. O demónio da idolatria vive encerrado dentro da imagem que corrompe a alma do devoto. Cativa-lhe o olhar.
Pèlerinage de la vie humaine de Guilherme de Deguileville, Biblioteca Nacional de Paris, MS. Fr. 829, fol.114.
O peregrino que partira em demanda do sentido da vida, vai confrontar-se como um curioso idólatra— um carpinteiro a adorar uma estatueta em forma de rei, que havia confeccionado para colocar nos campos como espantalho. O pecado da idolatria precisa do terror para dominar. Depois de feita, a estatueta, possessa pelo demónio, empunha a espada e ameaça o carpinteiro de morte se este não lhe prestar culto.
Na iluminura que a acompanha, a Idolatria é figurada por uma velha bruxa que solta um riso sardónico, mostrando o carpinteiro de joelhos no chão, de incensório na mão, e boca aberta como um papa-moscas sem se conseguir desprender do ídolo. Na verdade, tanto ele como a imagem estão saturados da situação. Segundo a lenda, o demónio infiltrava-se no interior dos mawmets (ídolos) e corrompia pelo olhar aqueles que os fitassem em excesso. Mas o mawmet é uma falsa réplica: tem orelhas mas não ouve, tem boca mas não fala, tem olhos mas não vê e nem a espada ou o escudo desta imagem real o podem proteger. Por isso se dizia que a Idolatria se ria e troçava das suas vítimas. As representações, quando investidas de excesso de sensação, de excesso de desejo, podem controlar as mentes mas não as podem satisfazer.
Bibliografia: CAMILLE, Michael, The Gothic Idol, Ideology and Image-Making in Medieval Art, Cambridge New Art History and Criticism. Cambridge & New York: Cambridge University Press, 1989. Encyclopaedia Universalis- Corpus, Paris,EUA, 1989, III, p. 65-73 (Art et théologie)