O olhar visionário é um olhar aliado do Poder: projecta-se num tempo demasiado longo para poder ser realizado na vida— é uma impossibilidade desejada e por isso mesmo infinita e perfeita.
As visões já foram explicadas como disfunções excessivas do olhar que vê demasiado longe, integrando-se na torrente da luz que desmaterializa os corpos e materializa os sonhos.
Foram também entendidas como uma doença, um desequilíbrio acompanhado de sintomas físicos: as dores de cabeça de Hildegarda de Bingen, por exemplo.
A visão e sempre um acto transitório, algo que se descentraliza, que sai do eixo e depois apaga-se, retoma o curso, esquece.
O visionário deposita a viagem nas formas, na escrita, na assistência; o visionário esvazia-se para deixar o testemunho.
Martiriza-se mas ao mesmo tempo torna-se imune ao sofrimento e à degenerescência.
As visões ultrapassam a racionalidade pela via da sobreexcitação cerebral— em muitos casos os visionários demonstram uma capacidade intelectual próximo dos sobre dotados. As mulheres videntes conseguem maiores proezas: diz-se, por exemplo, que Margarida de Kempe era capaz de prever o tempo e adivinhar o dia da morte.
O curso do olhar inverte-se: o visionário vira-o para dentro de si mesmo. Vê com o olho do espírito, como diz Hildegarda na Scivitas: “ nós não podemos ver o próprio Deus com a visão exterior do corpo, vemo-lo com os olhos do próprio interior”. Catarina de Siena faz idêntica distinção entre o que apelida de “vista do corpo” e “visão do espírito ”. Santo António vai mais longe: chega a dizer que um cego não se devia queixar porque se possui os olhos por onde se pode ver Deus.
A visão é também uma exegese. As verdades divinas não foram feitas para ser conhecidas, por isso mesmo só podem ser figuradas e sentidas. A visão é sempre algo que o corpo sente. São sinais que ocorrem quando o corpo se abre, como explica Hildegarda.
As visões provocam um grande prazer físico. Durante os interrogatórios Joana de Arc insistirá sempre neste aspecto. Não foram demónios que penetraram o seu corpo, foi um anjo. Foi um santo— S. Miguel Arcanjo. Sempre que o seu espírito o via era bafejado por um grande conforto. Sensação essa que a jovem afirma lhe dava uma enorme felicidade e, apesar do conforto físico, permanecia isenta de pecado durante esses momentos luminosos; os santos beijavam-na e abraçavam-na por bons motivos.
No caso de Hilegarda de Bingen, a interpretação das suas visões, feita por um religioso da época (Ricardo de Saint Victoir) torna-se bastante significativa. Diz o teórico que nestes momentos “ o do coração é governado pela semelhança das coisas visíveis e pelas imagens apresentadas como figuras e como sinais, para atingir o conhecimento das coisas invisíveis ”, numa clara demonstração da influência das teorias do Pseudo Dionísio o Aeropagita.
A metafísica da Lux associava o efeito estético e visual com o próprio Criador. A Lux é a fonte luminosa como a emitida pelo Sol, depois há a luz espalhada no espaço: o lumen e a que se reflectia nos objectos: o splendor. O espírito divino tanto podia ser achado no brilho das pedras preciosas e dos diamantes, no luxo da magnificência do que agrada a Deus, como encontrado na simplicidade radiosa do branco das paredes lisas da igreja, conciliando o Abade de Suger com S. Bernardo.
Criação da luz e das esferas: Livro de Horas, c.1340-50, British Library, Londres.
As imagens medievais são também locais de memória. Locais que se lembram uns aos outros: lembranças do destino, dos primórdios, das consequências; dos augúrios, prefigurando de mil modos o verbo.
Visões celestiais e visões apocalípticas têm em comum a figuração de um cosmo total, um espaço que engloba a personificação do Bem e do Mal supremo, com todas as variantes que estas ideias vão tendo ao longo dos tempos.
O milenarismo foi dos maiores produtores de visões, ainda que estas não tivessem um carácter popular. Os textos referem todo o tipo de prodígios de mau augúrio: os cometas, os combates de estrelas, prodigiosas intervenções malignas na natureza e até avisos que chovem do céu em forma de cartas.
O texto do Apocalipse torna-se a fonte por excelência da escatologia de todos os males, à semelhança das santas viagens peregrinas que exultavam a preparação para a morte e a salvação no além.
Inquieto, o sábio monge Raul Glaber manifestou a sua perplexidade pela pulsão misteriosa que levava milhares de peregrinos a partirem em excitantes caminhadas. Viu-as como um presságio dos últimos tempos, um devir dos homens ao encontro final; aquele bíblico momento em que, sem esperança e sem futuro, o homem ficaria finalmente face a face com Deus.
O Apocalipse transforma-se, assim, num devir pelo mundo, numa luta eterna entre locais do Bem e do mal; vistos como arquétipos de cidades: Babilónia e Jerusalém Celeste . O porto de abrigo estava para lá da Jerusalém terrena— o refúgio era a própria Cidade de Deus.
O magnífico apocalipse de Saint Sever (sec. XI) é um dos mais belos exemplos destas tas fantásticas deambulações visionárias.
décima segunda revelação, a grande barregã
Apocalypse 17 / 8
Na sua fronte estava escrito um nome, um mistério: Babilónia a grande, a mãe das impudicícias e das abominações da terra
nona revelação: Sob o olhar atemorizador do anjo do abismo, aparição dos locustos ou saturnais (espíritos dos mortos) com cabeça de mulheres coroadas e de longos cabelos negros, busto couraçado e cauda em forma de cabeça de escorpião pronta a matar. Detalhe: Apocalypse 1 / 11.
vigésima revelação: o anjo encadeia o dragão e o diabo é precipitado nos abismos
Apocalypse 20 / 1
o diabo, a besta e o falso profeta são precipitados no lago de fogo e de sofrimento.
Apocalypse 20 / 10
vigésima primeira revelação : longa descrição das belezas de Jerusalém Celeste
Apocalypse 21 / 11 - 22
O olhar também pode estar impregnado de avidez de espaço, avidez de infinitude que une peregrinos e cruzados.
O homo viator,fascinado pelos relatos de santos e heróis, despreza o mundo; anseia por cortar amarras e fugir das suas impurezas.
Bernardo de Claraval pensa neste viajante vagabundo quando, em 1130, redige a Laus novae militiae para a ordem recém formada dos Cavaleiros do Templo. O monge reformista sente-se um cidadão celeste mas sabe que, cá em baixo, é apenas um peregrino.
Dante, no canto XIII do Paraíso proclama a mesma ideia: “ viver na terra é caminhar sem fim” A precariedade da condição da na terra é consequência da Queda. Peregrinos e cruzados buscam o desconhecido, numa progressão das trevas em direcção à luz, numa ascensão da Cristandade à Cidade providencial.
O olhar do peregrino é um olhar fascinado pela Maravilha; ansioso por percorrer todos os seus lugares, por ouvir todos os seus oráculos.
A Cidade de Deus rodeada por demónios , Santo Agostinho, A Cidade de Deus Livro de Horas, I-X, Paris, c. 1474-1480
Rolando combatendo os sarracenos na batalha de Roncevaux, Jacob van Maerlant, Spieghel Historiael, West Flanders; c. 1325-1335
Milles e peregrini formam o povo de Cristo que parte no frenesim expiatório, no caos emotivo, na obsessão de atingir o Santo Sepulcro. Projecto mítico, eternamente adiado, que no final da idade Média se vai transformar numa autêntica instituição periódica, cheia de aventuras, propícia a escapadelas matrimoniais ou a chorudos ganhos materiais.
Cristóvão Colombo, depois da inaudita viagem que dilatou o mundo para paragens desconhecidas, faz a derradeira proposta à Igreja— da-lhe sete anos para o deixar preparar a última cruzada. No final bastariam mais cento e cinquenta para que esta convertesse a humanidade inteira num globo por ele unificado.
Não faltará muito para que este sonho adquira novos contornos visionários. O homem renascentista, mais seguro das suas potencialidades terrenas, não se quedará pelo anseio do céu. Vai procurar realizar o sonho na terra.
Para tal, importa mudar o espaço para um local sem marca, projectar uma nova ordem fora do tempo— visionar utopias.
O sonho de Colombo concretizar-se-á na Monarchia Hispânica de Campanella, ao mesmo tempo que novas cidades utópicas vão ser projectadas. Para tal, vai ser necessária uma nova cosmovisão que descentra a Cristandade.
A par, nova querela de iconoclastia despoleta no Norte da Europa. Usando as imagens como veículo de propaganda política e religiosa, ao mesmo tempo que as destrói, o movimento reformista queima-as, não tanto porque tema o seu efeito, antes porque o vê banalizado.
Urge destruir para refazer o percurso: regressar das imagens ao texto sagrado e materializa-lo de novo em seu lugar.
O iconoclasta, esvaziado na idolatria sem sentido, vai dar lugar ao utópico prenhe de imagens.
bibliografia:
CAMILLE, Michael, Gothic Art. Glorious Visons, Harry N. Abrams, incorporated; New York, 1996.
DUBY, Georges, O Ano Mil, Edições 70, Lisboa, 1967.
ZUNTHOR; Paul, La mesure du monde, Seuil, Paris, 1993.