Todos conhecem a Branca de Neve por causa do João César Monteiro mas já alguém ouviu a verdadeira história d’ A Bela Adormecida? Nós vamos contar. Em dois ou três episódios em prime-time explicaremos como a formosa rapariga foi bruscamente acordada do seu doce sonho por um forasteiro; como isso se revelou incómodo; como o forasteiro teve de explicar que, mesmo acordados, todos nós podemos continuar a sonhar; e como, assim apaziguados, eles resolveram, com muita sensatez e com a ajuda de um provérbio francês, casar e ser felizes para sempre.
É uma história de encantar, nem podia ser de outro modo, escrita com delicadeza e profundidade. Podiamos dedicá-la a muita gente (até a nós próprios se para isso tivessemos coragem), mas decidimos por unanimidade — e a pedido do autor — dedicá-la à querida Sophie porque… bom porque ela é muito parecida com a menina Edite...
Bela Adormecida: Vós, que aqui estais em redor,
por favor olhai com atenção
para este homem; acordou-me
de um profundo sono secular
e agora quer-me para esposa.
Rei: Não ousará tal atrevimento.
Que fez ele de importante?
Bela Adormecida: Veio até aqui e beijou-me,
e com o beijo acordei.
1ª Dama de Honor: Qualquer outro o poderia.
Raínha: Salvou, é certo, o palácio
e libertou-nos do encanto;
justo é pois o que pretende,
mas que não seja para já.
Rei: Também o espero.
2ª Dama de Honor: eu também.
Bela Adormecida: eu também.
Rei: Dizei, caro forasteiro,
podeis identificar-vos
convenientemente?
Bela Adormecida: Não tem ele olhos como o mar
e o rosto como mármore,
como granito os gestos?
Ai, não gosto de gente assim,
busque o amor noutro lado.
3ª Dama de Honor: Antes de tudo devia
ser um pouco mais amável.
Tal como um pau, não se mexe
nem abriu ainda a boca.
Ouve, sabes falar ou não?
Forasteiro: Depois falarei, quanto baste,
não há assim tanta pressa.
Rei: A nós despertou-nos do sono
mas ele parece dormir ainda.
Almoxarife: O favor que ele nos prestou
claro que é bem duvidoso
e tantos cuidados connosco
bem os podia ter poupado.
Durante o sono, não fluía
tudo, e excelentemente
não nos sentiamos todos?
Cocheiro: Estivesse eu a dormir, não
tinha agora de trepar p’rá
boleia e incomodar-me c’os
teimosos coices dos cavalos.
Cozinheiro: Estivesse eu a dormir, não
tinha agora de me zangar
com os moços da cozinha.
Cozinheira: Estivesse eu a dormir, não
depenava agora galinhas.
Governanta: e eu não sacudia almofadas
Criado: e eu não engraxava sapatos.
Caçador: A caça estaria a dormir
como eu se este senhor
não tivesse aparecido.
Intendente: Livro nenhum me maçaria,
nunca reveria as contas,
bem poucas preocupações
iria ter com os saldos.
Poeta de Corte: Estivesse eu a dormir, não
era agora preciso que
os versos fossem limados;
se estivesse ainda deitado
sobre a orelha, sonharia
apenas com a minha fama.
Assim afadigo-me a
versejar e em troca só
colherei ingratidão.
Por isso eu queria que ele
tivesse ido à fava ou
onde bem lhe aprouvesse,
deixando-nos dormir em paz.
É que isto, da parte dele,
não foi nenhuma obra-prima.
Ministro: Se estivesse como antes
deitado a dormir, não tinha
de espremer a cabeça
com difíceis combinações.
Ama: Não é que tenho de novo
de chamar constantemente
a atenção das crianças
para a conduta que levam?
Mas ninguém pensa no custo
que pago p’lo sacríficio.
Médico: Cá por mim, erudição e
ciência bem poderiam
calmamente ficar mais um
tempinho a cochilar.
1ª Dama de Honor: De facto ele considera uma
honra o êxito obtido.
Mais valia que tivesse
favorecido outra pessoa
com a sua presença e
dispensar-nos a nós.
Bela Adormecida: Mas ele agora está aqui.
Rei: Sim, infelizmente.
(continua amanhã, pela mesma hora)
tradução de Célia Henriques numa magnífica edição da & etc (que infelizmente não está disponível nas livrarias, é preciso encomendar e rezar para que o livro apareça)