O homem morto baixa do cadafalso. Segura a ensanguentada cabeça debaixo do braço.
As macieiras estão em flor. Ele segue o seu caminho até à taberna da vila e ninguém despega o olho. Ali, senta-se a uma das mesas e pede duas cervejas, uma para ele e outra para a cabeça. A minha mãe esfrega as mãos no avental e serve-o.
Há tanto silêncio no mundo. Até se pode ouvir o velho rio, que na sua confusão às vezes se esquece e corre para a fonte*.
Chama a um cão Rimbaud e a outro Hölderlin. Ambos mestiços. «A vida inexplorada não vale a pena vivê-la», é o seu lema favorito. A sua esposa parece a Liberty meio-despida de Delacroix. Ela leva botas de cowboy e recolhe cogumelos de aspecto venenoso no bosque. Esta noite acenderão longas velas e beberão vinho. Depois abrirão a porta para que os cães entrem e comam as sobras debaixo da mesa. «Entrez mes enfants!» gritar-lhes-à ele na noite, fazendo uma profunda reverência.
«Todos sabem o que nos sucedeu, a mim e ao dr. Freud», diz o meu avô.
«Gostávamos do mesmo par de sapatos negros, no escaparate da mesma sapataria. Desgraçadamente, a loja estava empre fechada. Havia um aviso: MORTE DE FAMILIAR ou VOLTAMOS DEPOIS DO ALMOÇO mas não importa quanto se esperava, ninguém vinha abrir».
«Uma vez surpreendi o Dr. Freud num piropo desrespeitoso diante dos sapatos. Entreolhámo-nos enfadados antes de cada um seguir o seu próprio caminho, para nunca mais nos cruzarmos».
três histórias de Charles Simic traduzidas por António Cabrita e publicadas na revista Construções Portuárias #1
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* Escutada hoje à tarde na antena 2.
Os Separadeiros passam três vezes ao dia, um de manhã outro à tarde e outro à noite, num esquema flutuante. No dia seguinte repetem em ordem inversa e no terceiro dia na combinação que falta (ABC, BCA e CBA). Seis por semana, começam ao domingo e repetem em bloco no final do programa da manhã de Sábado.Isto é o esquema a que não faltam as excepções. A leitura é de Edite Sombreireiro e, esporadicamente, de Humberto Boto.