É uma aventura entrar no mundo de Robert Walser. Não sei se ele era esquizofrénico ou louco, talvez fosse um pouco, ou mais que isso. Era sem dúvida diferente, especial, dotado de uma excepcional liberdade de escrita e segui-lo é um grande prazer. Porquê? Por causa da construção das frases; das palavras escolhidas (ele faz a mais bonita utilização de diminuitivos que já li: passo agora a acalmar-me, a moderar-me, a fazer-me pequenino como um dedalzinho); das imagens (A cama era dura como uma tábua, conquanto toda a gente saiba que os sentimentos do salteador são macios como aletria com molho de manteiga ou trutas cujas pintas avermelhadas sorriam como raparigas tomadas de febre.); da delicadeza («Sou gerente de um hotel», declarou ela numa curva do caminho. As árvores sorriram ao ouvir esta declaração tão directa. O salteador ficou corado como uma rosa e a mulher ficou corada como uma juíza, como se as juízas, no ardor de não abdicarem da sua função de juízas, não se pudessem enganar); do humor delirante (o episódio da colherzinha ou a visita ao médico são deliciosos); das ideias em sobreposições inusitadas; e por causa do imprevisto, acima de tudo por causa do imprevisto: E agora, com vossa licença, vamos tratar de uma criada e de um beijo no joelho e de um livro que foi entregue num chalé. […] O caso da entrega do livro foi o seguinte. Uma senhora de cabelo branco, que no seu íntimo se sentia pouco jovem, havia emprestado um livro ao salteador. Porque estará a vir-me à lembrança uma série de casacos de senhora? Onde irei eu arrumá-los? Subitamente, faz-se luz no meu espírito e, logo de seguida, essa luz desaparece. E, então, não é que o salteador se imagina, de tempos a tempos, como uma espécie de Fabrice del Dongo*! Não é um disparate? Esperem lá um pouco. Deixem-me reflectir. Pois, está bem, está bem. Sobre o livro que foi devolvido iremos, eventualmente, poder falar mais adiante.
N' “O Salteador” não há uma linha cronológica nem sequer uma lógica narrativa. A história segue por cortes, saltos e elipses impressionantes, tudo isto em alta velocidade e com um sentido de montagem não cinematográfica mas sim onírica. É tudo desconcertante como nos sonhos: Então, tudo entra em movimento e, no entanto, tudo fica parado, como num sonho. Aliás, que história? É certo que o narrador começa por dizer que Edite ama o salteador e no fim, bom, no fim ela comprova-o disparando sobre ele, mas pelo meio nada leva a nada. Walser perde-se em mil e uma deambulações sobre qualquer coisa, sobre a literatura, as mulheres ou a sua (dele) enigmática sexualidade. Há situações que ficam em suspenso, outras são retomadas sem mais e nem sequer nos podemos fiar nas personagens; por vezes o narrador é o salteador e o salteador é o próprio Walser (E cá está, de súbito, mais uma vez, este parvo do salteador, e eu a desaparecer para lhe ceder o lugar.).
E tudo isto por causa de uma simples aguarela pintado pelo seu irmão em 1894, em que Walser com quinze anos, aparece vestido de salteador. Um salteador que rouba agora impressões de paisagem e afeições. Toda a minha afeição. Fico à espera d’ A Rosa e de mais.
Sendo assim, torna-se apreciado e procurado todo aquele que tiver uma maneira muito própria, digamos, uma maneira um tanto inexacta de olhar o mundo, como se tivesse mantido um olhar de criança.
* personagem do romance "A Cartuxa de Parma" de Stendhal
Os itálicos são todos retirados de "O Salteador", de Robert Walser (tradução de Leopoldina Almeida e edição da Relógio d'Água