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segunda-feira, fevereiro 02, 2004  
KGB ATACA AO ENTARDECER
para a Marta


Entrou no Café Central, passo lento, vasta barba, camisola preta de gola alta. Sentou-se a uma mesa junto à porta e esperou, a olhar para a rua.
Veio o Bernardino atendê-lo.
- Que deseja o senhor?
- Bem, sou um escritor russo fugido à perseguição, compreende, não é?
- Pois - disse o Bernardino, que não tinha nada a ver com aquilo. - Mas que deseja o senhor?
- Sabe, consegui fugir. Tinham-me preso, davam-me banho todos os dias. Foi um submarino clandestino que me trouxe até aqui. Os amigos são para as ocasiões. Sou um escritor russo, sabe?
O Bernardino começou a alarmar-se. Um russo, a falar português assim, nunca se tinha visto. Nos jornais diziam sempre Da e Nyet que queria dizer sim e não, toda a gente sabia. Inquiriu:
- Mas então como é que o senhor fala português?
- Desde pequenino. Aprendi desde pequenino, para ler Os Lusíadas. Espantoso, Camões. O maior. E depois li também o doutor Augusto de Castro e o doutor França. Extraordinários. Os maiores. Quando fugi, resolvi logo vir para aqui. Magnífico. Mas querem acabar comigo, sabe? A KGB, é o que lhe digo.
O Bernardino, explicado o mistério, desinteressou-se. Mas insistiu:
- Afinal, que deseja o senhor?
- Um bife com dois ovos a cavalo. E uma cerveja. Mas cuidado.
O Bernardino foi tratar do assunto mas, ao passar pela mesa do doutor Beça, onde se encontravam o Oliveira da farmácia, o Leónidas da tabacaria e o Gutierrez dos negócios, segredou:
- Está ali naquela mesa um escritor russo que diz que fugiu a umas letras. Pediu um bife a cavalo.
Houve espanto. O doutor Beça dirigiu-se, digno, à mesa do refugiado com fome e quis logo saber coisas. O outro, olhando de soslaio para os passantes da rua, contou tudo. Os livros contestatários deslizando na clandestinidade, a prisão, os banhos, a fuga, a perseguição, o seu amor à epopeia e aos Lusíadas, o submarino, o arranque final através do areal até chegar ali.
O doutor Beça estava pasmado e orgulhoso também. Ali estava o que ele sempre dissera na Junta da Paróquia, ali estava a prova: o escritor russo, o intelectual soviético procurando abrigo em Camões. E virando-se para o Bernardino, que chegava com o bife a cavalo, lançou:
- Ponha tudo na conta, Bernardino, quem paga é o clube.
E correu à mesa, a contar o caso espantoso aos amigos. O Leónidas, que era também correspondente dos jornais, atirou-se ao telefone a informar a cidade. Entretanto o Oliveira perguntava ao russo voraz:
- Então como é que o senhor se chama?
- Eristov - respondeu o outro, a molhar o pão no ovo.
- Conheço, conheço, - gritou o Peralta, lá do fundo, levantando a cabeça da mesa - tenho um lá em casa - e mergulhou de novo a cabeça nos braços.
Ora aí estava. O russo era conhecido. Até o Peralta sabia. A coisa era séria.
O escritor foragido acabara o bife e os ovos. Espetou o dedo para o Bernardino:
- Traga-me outro bife, à Camões.
- À Camões? - espantou-se o Bernardino.
- Sim, só com um ovo - explicou o soviético, enfadado.
- Vê-se que conhece de literatura - Comentou o Gutierrez que, desconfiado, ficara na mesa a ver como iam as coisas.
A tarde foi correndo. O escritor, mastigados os bifes e os ovos, bebidas as cervejas, estava no café e no bagaço.
A mesa do doutor Beça mudara-se para o lado de Eristov. Conversa animada, complexa, perante o silêncio do russo empanturrado.
E, de súbito à porta, chiando os pneus, travou o carro dos jornais. Três lá dentro e um fotógrafo.
- Onde está esse russo foragido? - saiu berrando o da frente.
E avançaram. A entrevista, a pergunta, a fotografia. O doutor Beça explicando, o russo arrotando.
SOVIÉTICO PROCURANDO LIBERDADE ENCONTRA CAMÕES, escrevia o repórter do vespertino para abrir cabeça no artigo.
Então outro carro à porta, rangendo o travão num estoiro.
O Bernardino, especado a ver o que era aquilo, foi empurrado de reboleta, estatelou-se contra o balcão.
E entraram três indivíduos medonhos que se dirigiram para a mesa da conferência de imprensa.
- A KGB! A KGB! - berrou Eristov, erguendo-se de supetão, num pânico alucinado.
Mas não teve tempo para mais. Foi agarrado pelos braços, logo torcidos para trás, pelos dois que traziam uma espécie de uniforme desconhecido e sinistro. O terceiro, queixo quadrado, meio louro, parecido com os oficiais da OKRANA dos filmes dos anos trinta, olhou em volta e disse:
- Que trabalhão idiota!
O repórter do vespertino, estarrecido, lançou logo ao papel: KGB ATACA AO ENTARDECER.
- Não escreva asneiras, meu caro - disse o com cara de OKRANA, ao passar por ele, enquanto os outros dois levavam Eristov para a ambulância.

Mário-Henrique Leiria - Contos do Gin-Tonic

posted by camponesa pragmática on 22:39


 
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