– Bom dia, Sr. Renoir. Não lhe colocarei mais do que uma questão: que pensa o senhor do tema?
– Do tema de quê?
– De um filme, claro… ou de uma peça de teatro… ou de um romance… de que havia de ser?
– Podia ser a ginástica matinal, ou o sentimento: o tema do meu amor…
– O objecto.1 – Obrigado.
– Adoro a sua casa.
– (orgulhosamente) Foi construída por Alexandre Dumas – o verdadeiro – quero dizer, o pai.
– Tem a certeza?
– Foi alguém que mo disse.
– Quem?
– Já não me lembro.
– Se Alexandre Dumas tivesse construído esta casa, haveria uma placa comemorativa. (Em tom severo) O senhor exprimiu diversas vezes a sua desconfiança em relação aos temas fortes. Que quer dizer com isso?
– Quanto mais ligeiro é o tema, menos o autor se prende nele.
– Uma comédia?
– Não forçosamente. Digamos um tema ou um assunto que se desenvolve e se termina sem esforço e que deixa ao autor todo o tempo para se ocupar das suas personagens. Pode ser um melodrama como Hamlet (quem é o culpado?) ou um vaudeville como La Serva Padrona (quem seduzirá a rapariga?).
– Estou a ver. Para o senhor, a única coisa que conta é a maneira como o autor exprime a sua personalidade. O senhor é um subjectivista.
– (aterrado) Pelo contrário. É quando o autor tenta mostrar os seus próprios sentimentos que menos consegue exprimir a sua personalidade.
– (satisfeito) Admite portanto a importância do tema.
– Tudo o que eu admito é que o autor se deve dissimular por trás da história que conta.
– É isso que pensa, verdadeiramente?
– Sim. É uma das poucas coisas de que estou certo. Tomemos Alexandre Dumas como exemplo… ele não escreve nunca sobre si próprio. Mas o leitor, por intermédio das aventuras de Chicot, d’Artagnan ou Ange Pitou, aprende a conhecê-lo de maneira íntima; mais do que alguma vez conhecerá o poeta subjectivo que despeja sem pudor tudo aquilo que tem no coração… Pode-se resumir tudo isto em três palavras: “O eu é detestável”.2 – (em tom definitivo) Boileau! O senhor é um clássico.
– Admiro o teatro clássico. Mas pertenço à minha época. Como toda a gente hoje em dia, sofri a influência dos Srs. Freud, Einstein e também, infelizmente, de cento e cinquenta anos de romantismo deprimente. Dumas sabia conservar o nariz acima do nível do mar para respirar. Sabe porque é que ele construiu esta casa?
– Admitindo que foi ele que a construiu.
– (historiador) À época, os muros de Paris seguiam o traçado do lado sul do boulevard de Clichy. Para além deles, havia apenas campos até à aldeia de Montmartre no pico da colina. Foi graças à permissão das autoridades militares que Dumas e os seus amigos puderam abrir uma passagem até àquilo que é hoje em dia a Praça de Pigalle. Aparentemente, esta elevação parisiense era apenas outrora, um terreno de caça às perdizes.
– Voltemos à vaca fria.3 O senhor citou Shakespeare e Goldoni.
– Podia acrescentar Labiche, Molière e muitos outros. Um jovem de boas famílias está noivo de uma jovem de um meio excelente. Não se conhecem. O jovem quer ser amado por si mesmo. Ele e o seu criado trocam as suas roupas. A jovem faz o mesmo com a sua criada. Eis um “quiproquo” e um pretexto suficiente para os melhores diálogos alguma vez escritos.
– O senhor situa-se, portanto, entre Shakespeare e Marivaux?
– Depois de alguns copos de whisky, sem dúvida. Mas na maior parte do tempo contento-me em pensar que se alguém se interessa pela pintura mais vale ir copiar Velasquez para um museu do que ficar em casa a copiar publicidades para salões de beleza. E quem sabe? Cézanne gostava de copiar flores artificiais. Estas coisas são demasiado complicadas… Conheço a maneira de salvar o cinema sem cinemascópio nem cinerama. Todos os realizadores deveriam trabalhar sobre o mesmo tema, um western ou um filme policial, e consagrar-se unicamente a ele durante dez anos. Encontrar-nos-íamos na mesma posição que os Gregos, que tinham o hábito de reescrever as mesmas histórias para um público que as conhecia de cor. Para haver mais segurança, o espectáculo começava por um resumo da acção para o caso de alguém se ter esquecido. Era o coro que se encarregava desta tarefa fundamental, libertando assim o autor e o público das facilidades do suspense.
– O autor, sempre o autor, mas no entanto ele não está sozinho; há também os actores e os técnicos.
– Felizmente, os seus feitos disfarçam os nossos falhanços. Sabe quem deveria ter sido o nosso mestre se tivesse vivido na era do cinema?
– (irritado) Alexandre Dumas. Mas ainda não respondeu à minha questão. Que pensa do tema?
– Acontece que duas maçãs em cima de uma mesa são um tema melhor do que Átila, o rei dos Hunos. Mas para conseguir qualquer coisa com duas maçãs, é preciso um Cézanne. Façamos então os filmes que o público deseja. Como diria Jouvet: ”A nossa primeira regra é ter sucesso”. Pode ser que um dia, um Cézanne nasça entre nós.
In The Observer Film Exhibition: “Sixty Years of Cinema”, Londres, Pall Mall East, 1955
Traduzido por Luís Miguel Oliveira para o excelente catálogo da Cinemateca Portuguesa dedicado a Jean Renoir em 1994
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1 brinca com o duplo sentido da palavra “sujet”, que pode querer dizer “tema” ou “assunto” mas também pode significar “sujeito”. (N. do T.)
2 No original: “Le moi est haissable”. (N. do T.)
3 No original: “Revenons sur nos moutons”. (N. do T.)
posted by Anónimo on 21:23