“Vê lá se focas bem o filme”, disse a senhora que avia os cafés ao projeccionista. Imagino que lhes faz confusão um filme tão escuro, olham para nós com um ar caridoso como se precisassemos de ajuda ou de pena. Na sala encontrei a Alexandra, falámos por alto do João César Monteiro, do bom gosto gastronómico (uma lista de deliciosos pratos desde "À Flor do Mar" até "As Bodas de Deus"), do modo como ele retrata a cultura portuguesa nesse sentido profundo da palavra: o clima, a paisagem, a comida, as raízes, a literatura.
E a Branca de Neve? O filme começa com uma errata (é verdade, numa cena o princípe vai enganar-se e trocar a humidade pela humanidade), depois as imagens de Walser morto na neve e começa a acção: as cenas escuras quando há diálogos, entrecortadas por planos de céu enevoado que custam a suportar pela claridade e pela música agreste.
A história desenvolve-se, será a Raínha tão má como a pintam? E a doce Branca de Neve tão ingénua e boa? E o Caçador, porque faz o que faz? E o Príncipe vacilante? E o Pai tão ausente? Ninguém quer o seu papel, todos fogem. Às tantas a raínha ensina à filha que o amor e o ódio convivem lado a lado, que nada é simples, que a moral do conto foi inventada, que podem fazer jogos diferentes e fazem. Num diálogo brilhante com o Caçador (belíssima interpretação de Luís Miguel Cintra) Branca de Neve aquiesce a tudo, sim, a tudo diz sim, tudo aceita e porquê? É isto a doçura? Ou é o seu contrário?
É estranho ouvirmos apenas as vozes, há também uns pássaros mas nada mais, mais nenhum som, os personagens não se movem e isso é estranho, parece que estão todos mortos e talvez estejam, eles e nós?
No fim João César Monteiro avisa-nos que acabou mas não acabou nada, saímos e a noite estava gelada e escura.