segunda-feira, janeiro 19, 2004
Não resisto a publicar todo o artigo de Rui Pereira. Subscrevo todos os elogios do jornalista. No sábado a sala estava cheia e satisfeita, o concerto foi excelente e o Remix Ensemble continua a ser formidável. Uma vez por outra há boas surpresas na cidade.
Contos Musicais
O Remix Ensemble, dirigido pelo seu maestro titular, o britânico Stefan Asbury, deu no sábado um dos mais interessantes e bem executados concertos de que há memória. Desde a criteriosa programação que focou diferentes perspectivas sobre uma temática comum - a da infância como elemento pictórico de um imaginário colectivo e, de certa forma, intemporal - à escolha de uma primorosa solista ou à estreia de uma obra encomendada pela casa da música, foram muitas as razões para o estrondoso sucesso do concerto.
1 - O maestro: a razão de reforçarmos a sua excelência advém da justeza que imprime à formação sem prejudicar, com esse rigor, a flexibilidade necessária à projecção da plasticidade sonora. São raros os maestros que conseguem uma destas coisas sem prejuízo da outra. Asbury controla os mais ínfimos detalhes mantendo a frescura da espontaneidade, sendo de notar o altíssimo nível artístico que espelha no Remix sempre que o dirige.
2 - A solista: a finlandesa Piia Komsi deu voz a "Akrostichon-Wortspiel", sete cenas sobre contos de fadas para soprano e ensemble, da sul-coreana Unsuk Chin. Senhora de um vasto colorido vocal e conhecedora dos mecanismos que projectam emoções, Komsi surpreendeu pela expressividade e virtuosismo que ofereceu a esta música de execução transcendente. A peça explora a fusão sonora entre os diversos instrumentos e a voz, muitas vezes num jogo de ocultações dos transitórios de ataque, o momento essencial para a percepção tímbrica de cada instrumento, outras vezes num contraponto imitativo ao nível da articulação dos sons. A comunhão entre a soprano e o ensemble atingiu mesmo requintes de ilusionismo dando a sensação de que a cantora continuava a emitir som após a voz se extinguir.
3 - O ensemble: desde a exactidão com que mostrou a filigrana rítmica da atractiva estética, muitas vezes próxima de uma atitude minimalista, da peça de Hans Abrahamsen, até ao difícil desafio que cada músico passou ao manter uma afinação independente do resto do grupo na microtonalidade de Unsuk Chin, passando pelas reminiscências românticas de "Kinderszenen mit Robert Schumann", de Brice Pauset, o Remix foi superlativo.
4 - a estreia mundial: ao encomendar uma peça com base nas "Cenas Infantis" de Schumann, a Casa da Música estaria consciente do risco que se corre ao mexer numa obra-prima da música, pelas altas expectativas, ou mesmo desconfiança, que pode originar no público. No entanto, Brice Pauset foi extremamente feliz na sua abordagem, uma visão "Freudiana" mas repleta de bom humor e até uma certa rebeldia sobre o original de Schumann. Mantendo a integridade da peça que conhecemos, Pauset abriu vários parênteses que resultaram numa metáfora interpretativa, numa materialização do que está para além das partitura e que, tantas vezes, cruza o imaginário dos intérpretes.
Em resumo: Música contemporânea executada primorosamente e recebida com grande entusiasmo pelo público